Páginas

terça-feira, 24 de janeiro de 2006

SICAF: uma análise





por Redação MSM em 01 de abril de 2003

Resumo: Klauber Cristofen Pires escreve sobre um modelo perverso de burocracia. Especial para o MSM

© 2003 MidiaSemMascara.org


Klauber Cristofen Pires* - “A Secretaria de Estado da Administração e do Patrimônio do Ministério do Orçamento e Gestão, instituiu o SISTEMA DE CADASTRAMENTO UNIFICADO DE FORNECEDORES – SICAF, em cumprimento ao Decreto nº 1.094, de 23 de março de 1994, com abrangência nacional. O SICAF é um sistema automatizado de informações através do qual cadastrar-se-ão os fornecedores de materiais e serviços dos órgãos/entidades da Administração Pública Federal Direta, Autárquica e Fundacional, no âmbito do SISG. O SICAF é acessado ON-LINE, por todas as unidades de Serviços Gerais, através de equipamentos de informática interligados à rede de teleprocessamento do Governo Federal.



Toda pessoa, física ou jurídica, que pretenda fornecer bens ou serviços aos órgãos/entidades da Administração Pública Federal Direta, Autárquica ou Fundacional, tem que estar, necessariamente , registrada no SICAF. A inscrição de fornecedor no SICAF, será efetuada nos órgãos/entidades da Administração Pública Federal, no âmbito do Sistema de Serviços Gerais – SISG, ou naqueles que, eventualmente, venham a aderir ao Sistema, por intermédio de Unidades Cadastradoras – UASG’s.

A inscrição ou renovação do cadastramento no SICAF implica no recolhimento de importância, em favor do Ministério do Orçamento e Gestão, que terá valor diferenciado em função do porte da empresa ou quando se tratar de pessoa física.



A importância referida será fixada e atualizada, periodicamente, por meio de Portaria a ser baixada pelo Ministério do Orçamento e Gestão, e divulgada no Diário Oficial da União, devendo ser recolhida em banco oficial, em formulário específico, o qual se encontra previamente preenchido”.



Os parágrafos acima foram retirados do Manual do SICAF, instituído pela Portaria nº 11/1999, para fins de introdução ao tema que pretendemos desenvolver: o SICAF, quanto à sua eficácia, justiça, legitimidade e economicidade. A Instrução Normativa Nº 05, de 21 de julho de 1995, do extinto Ministério da Administração Federal e Reforma do Estado é o documento principal que regulamenta a implantação do SICAF. O Decreto Nº 3.722, de 9 de janeiro de 2001, estabelece e complementa, em linhas gerais, os mesmos termos da legislação pertinente anterior.



Nos parágrafos seguintes procuraremos demonstrar que o SICAF, longe de oferecer maior agilidade e transparência nos processos de compra do Governo, age justamente ao contrário, criando custos e embaraços à Nação, tanto ao Governo, quanto à sociedade.



O SICAF é imoral, pois inverte o ânimo das relações humanas, transformando o princípio do inocente até prova em contrário em culpado até prova em contrário. O SICAF é filho de uma filosofia cujo corolário vem a ser o que determinados cientistas sociais denominam de A Sociedade de Desconfiança, isto é, uma sociedade policial, onde todos são tratados preventivamente como culpados de algo, e onde prosperam mais os sistemas de fiscalização, vigilância e por que não, dizer, de delação, do que a produção de bens e serviços.



Na Sociedade de Desconfiança, uma empresa de noventa anos de existência é emparelhada a uma de um mês. Ora, nas sociedades livres, nas Sociedades de Confiança, um dos mais respeitados costumes do comércio é reverenciar a antiguidade de uma firma. Não creio que alguém consiga defender a tese, pela técnica de presunção, de que uma empresa antiga deva ser igualada a uma empresa criada por ocasião da licitação. Se aquela possui tanta antiguidade, é de se presumir que vem atendendo à Sociedade com competência, inclusive com relação às suas obrigações fiscais, pois pensar o contrário é denunciar a negligência de seus órgãos fiscais (Ora, já pensaram uma empresa de noventa anos nunca ter sido acompanhada ou auditada pelo fisco?). A empresa novata, no entanto, pode aparecer na tela do SICAF como regular, mas quem garante que poderá arcar com competência quanto ao cumprimento do objeto? E quem garante que não será extinta logo depois, para lograr o fisco?



O SICAF é imoral, pois, invertendo o sentido das relações humanas, abre precedente para a distorção psicológica de toda a Nação, e prepara-a para uma Sociedade controlada por um Estado totalitário. Há, de imediato, uma perturbação da ordem pública. Entenda-se este termo, ordem pública, não como um estado de pessoas resignadas, submetidas à força a um estado apenas aparente de paz social. Entenda-se sim a ordem pública como um conjunto estável de relações sociais, nas quais a franca maioria de seus indivíduos aderem voluntariamente, tanto às leis, como quanto aos seus costumes. Numa sociedade onde esta ordem pública impera, as leis, como diz a gíria, costumam colar, pois são legítimas, onde só os que não a respeitam são uma exceção, uma minoria, os fora-da-lei.



Para discernirmos a legitimidade e o acolhimento destas leis, um pequeno teste demonstrativo pode ser ilustrativo: imagine estarmos por fundar um país: vamos combinar, isto é, vamos criar uma lei: não nos mataremos. Quem matar, será punido pela lei, em seus termos. Ora, a receptividade desta lei é óbvia, pois ninguém deseja matar, muito menos ser morto, de forma que seus transgressores são obviamente caracterizados e reconhecidos pela grande maioria como os foras-da-lei. Mas vamos agora criar uma lei onde as pessoas deverão ser presumidas como culpadas de algo, de antemão, a não ser que, por via de uma custosa burocracia, provem serem dignas de sua cidadania e de serem partes integrantes de seu país. Será que as pessoas desejarão associar-se a um acordo como este? Bem, mas esta lei existe: é o SICAF. O que desejamos demonstrar aqui é que, numa Sociedade como esta, nesta Sociedade de Desconfiança, os cidadãos não são bem-vindos em seu próprio país.



Uma prova muito clara e concreta de que esta distorção psicológica está já em pleno processo de consolidação em nosso país é o caso das comunicações telefônicas por meio de telefone pré-pago utilizadas por bandidos dentro dos presídios. Os telefones pré-pagos são uma das mais importantes invenções em benefício da sociedade dos últimos tempos. Pela sua simplicidade e pelo seu custo extremamente barato, milhares de eletricistas, chaveiros, enfermeiras e outros profissionais deste país estão dinamizando seus negócios e aperfeiçoando seu atendimento à população. Mas um conhecido político de um importante Estado, não pensa assim. Ele comunga de um grupo que entende que toda a população deve pagar com a perda de um direito, – a abolição dos telefones pré-pagos - uma verdadeira conquista da civilização para que, pretensamente, os bandidos deixem de se articular, quando o certo é simplesmente que ele é que deveria exercer maior controle sobre os presídios e sobre os bandidos.



O SICAF é imoral, pois contraria o princípio da licitação, reduzindo competidores. Ora, há empresas cujo mercado alvo não é voltado para o setor público, de forma que, tendo de arcar com os custos financeiros e com o tempo que tal burocracia, a de se inscrever no SICAF, exige, desistem de competir, no caso de licitações de objetos que não são típicos e de vendas diretas.



O SICAF é imoral, pois há o caso de empresas que não procuram o Serviço Público para prestar suas vendas/serviços, muito embora não se neguem a fazê-lo, ou seja, o interesse em contratar é evidente da parte do Serviço Público. Isto cria uma situação-embróglio de difícil solução, principalmente quando se trata de empresas cujo serviço é essencial, como fornecimento de água, luz e telefone.



Ora, uma lei deve se impor a todos, e este é um dos mais consagrados princípios democráticos, inclusive abraçados por nossa Constituição. Mas há inúmeros casos em que o serviço ou material, para ser conseguido, passa por uma fórmula original, a de ser declarado essencial, sendo assim suprida a lacuna legal, MESMO se o fornecedor estiver na condição de devedor de impostos, ou pior, tiver cometido algum crime tributário qualificado, como a fraude. Ora, uma lei que se curva ao peso das circunstâncias não pode ser considerada como moralmente aceitável: enquanto para pequenos fornecedores ou no caso do que pode ser chamado de mercado típico, impõem-se-lhes a regra burocrática, para os casos em que o pretenso controle que o SICAF deveria exercer se torna inviável, o Serviço Público encontra fórmulas alternativas!



O SICAF é imoral, pois, apesar, de flagrantemente inconstitucional, o que demonstraremos adiante, e mesmo sob as ordens dos Tribunais de Contas no sentido de que os órgãos abstenham-se de exigi-lo, a verdade é que estes dão de ombros, e continuam a fazer constar em seus editais tal exigência. Como os fornecedores estão mais interessados em vender do que entranhar-se ainda mais em questões jurídicas, desistem de cobrar seus direitos junto à Justiça. Isto é abuso de poder.



O SICAF é imoral, pois uma licitação tem de ser endereçada à Sociedade, e não a um grupo de empresas previamente cadastradas. Importante ressaltar que o TCU/DF, por meio de sua Decisão nº 887/01 – Plenário (DOU de 6.11.01), declarou ilegal a exigência de prévio cadastramento no SICAF para habilitação em processo licitatório, tendo ordenado à Escola Agrotécnica Federal de Santa Teresa que, ...por ausência de amparo legal, abstenha-se de incluir nos editais de licitação, como participação no certame, exigência de que o interessado seja cadastrado ou habilitado parcialmente no Sistema Integrado de Cadastramento Unificado de Fornecedores – SICAF;



O SICAF é imoral, pois compromete a segurança dos contratos e da manutenção da ordem econômica. Ora, segundo a legislação, a empresa regularmente contratada deve ser notificada em caso de apresentar seu SICAF vencido, após o que, se não cumprida a exigência, deve ter seu contrato rescindido. Ora, aqui se faz presente a sanção não por uma inadimplência contratual ou por um crime cometido, mas pela presunção do que, sem esta ter provado o contrário, pode ter acontecido, ou seja: a falta da prova passa a valer como prova da falta! Esta é uma flagrante inversão de valores. Ora, sabe-se que, dependendo do objeto de licitação, tal sansão pode importar em ruína da empresa contratada, pois que pode ter investido vultosos investimentos para o cumprimento do objeto.



O SICAF é inconstitucional, pois desobedece claramente o que dita a Carta Régia de nossa Nação, em seu art. 37, inc. XXI: Ressalvados os casos especificados na legislação, as obras, serviços, compra e alienações serão contratados mediante processo de licitação pública que assegure igualdade de condições a todos os concorrentes, com cláusulas que estabeleçam obrigações de pagamento, mantidas as condições efetivas da proposta, nos termos da lei, o qual somente permitirá as exigências de qualificação técnica e econômica indispensáveis à garantia do cumprimento das obrigações. (Grifos nossos).

Há uma exceção constitucional ao caso em tela, preconizada pelo art. 195, § 3º A pessoa jurídica em débito com o sistema de seguridade social, como estabelecido em lei, não poderá contratar com o Poder Público nem dele receber benefícios ou incentivos fiscais ou creditício.



Mesmo assim, a Constituição é enfática ao afirmar que desmerece contratar com o Poder Público a pessoa jurídica em débito com o sistema de seguridade social, isto é, aqui não se trata de uma presunção, mas de uma verdade sabida: a pessoa jurídica está efetivamente em débito, e não suspeita de estar em débito!

Recorremos, a seguir, ao auxílio da ilustre administrativista Maria Sylvia Zanella di Pietro, 11ª Edição, pág. 324:



O que não parece mais exigível, a partir da Constituição de 1988, é a documentação relativa à regularidade jurídico-fiscal, ou seja, prova de inscrição no Cadastro de Pessoas Físicas (CPF) ou no Cadastro Geral de Contribuintes (CGC), prova de inscrição no cadastro de contribuintes estadual ou municipal e prova de regularidade para com a Fazenda Federal, Estadual e Municipal, pois isto exorbita do que está previsto na Constituição; além disso, não se pode dar à licitação – procedimento já bastante complexo – o papel de instrumento de controle de regularidade fiscal, quando a lei prevê outras formas de controle voltadas para essa finalidade . A única exigência que tem fundamento constitucional, dentre as contidas no art. 29, é a do inciso IV (esclarecemos: da Lei 8.666/93), referente à regularidade perante a seguridade social, exigida pelo artigo 195, § 3º, da Constituição, ...



O SICAF é inconstitucional, pois fere o art. 5º, inc. XXXVI: a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada. Ora, ordenar a rescisão de um contrato por questão de uma presunção é claramente prejudicar o ato jurídico perfeito, isto é, a firma de um contrato.



A prática reiterada dos órgãos públicos em exigir o SICAF constitui-se em infringência constitucional, pois fere o preceito contido no art. 5º, § XX: Ninguém poderá ser compelido a associar-se ou a permanecer associado. Ora, se os tribunais já definiram que o SICAF deve ser visto apenas como um serviço à disposição de quem o desejar utilizar, devendo os órgãos abster-se de exigi-lo em edital, a sua exigência remete à coação para a associação obrigatória, prática inadmissível pela nossa Carta Maior.

Pelos motivos expostos, somos de sugerir que o SICAF seja extinto. Em seu lugar, sugerimos um cadastro inverso, o qual denominaríamos SICAFI (Sistema Integrado de Cadastro de Fornecedores INIDÔNEOS). Este cadastro traria as seguintes vantagens para a Administração e para a Sociedade:



Resgataria o império da dignidade da pessoa humana e dos valores sociais do trabalho e da livre iniciativa, princípios fundamentais, tidos mesmo como cláusulas pétreas de nossa Constituição (Art. 1º, inc. III e IV).



Reduziria o Custo-Brasil, bandeira de luta inarredável para o ganho de produtividade dos nossos produtos e serviços, pois as empresas não teriam mais de arcar com os custos e a perda de tempo com a burocracia necessária para a manutenção do SICAF. Reduziria o custo de manutenção para a Administração, pois um cadastro positivo de fornecedores inidôneos constituirá um banco de dados infinitamente menor do que o cadastro negativo que é o SICAF. Além do mais, reduziria em muito a quantidade de servidores alocados para a tarefa de cadastramento. Uma sugestão muito simples seria a de uma empresa, considerada inidônea, ser denunciada ao SIASG ou SIAFI, o qual, por meio de uma mensagem COMUNICA, informaria a todas as unidades da Administração Pública que mantém com aquela algum contrato, para que tomassem providências a respeito. A manutenção do cadastro seria concentrada em um único local (O Administrador SIASG ou SIAFI), ao invés das centenas de seções espalhadas nos inúmeros órgãos de todas as esferas de governo deste país. Desconheço as estatísticas a respeito, mas acredito que a manutenção do SICAF custa ao Erário algo como algumas dezenas de milhões de reais. Vale a pena conferir (Considerando-se a manutenção do sistema e os custos com pessoal, equipamentos e locais alocados para o cadastramento).



A concentração de um cadastro muito mais enxuto, em um único órgão, por meio da técnica da verdade sabida, fecharia em muito as portas para a corrupção, evitando-se assim que determinadas repartições adulterassem dados em troca de propina, ou que imponham dificuldades às empresas para a manutenção do cadastro, para então venderem facilidades.



Diminuiria sobremaneira os impedimentos e desentravaria os procedimentos licitatórios. Hoje, o SICAF é exigido para a habilitação, para a adjudicação, para a assinatura do contrato e de seus termos aditivos e para cada pagamento efetuado. Um cadastro positivo seria exigido somente por ocasião da habilitação, sendo que seria justa a rescisão a qualquer tempo acaso a unidade administrativa viesse a receber notícia COMUNICA em que constasse denúncia sobre sua empresa contratada.





*Klauber Cristofen Pires é Técnico da Receita Federal, onde atualmente trabalha como chefe do setor de recursos materiais e humanos de uma unidade da SRF.