Por Klauber Cristofen Pires
Publ. em Parlata, em 29/03/2006.
Publ. em DiegoCasagrande.com.br, em 29/03/2006.
Publ. em O Estadual.com, em 06/04/2006.
Há alguns dias atrás, estive em Manaus, a trabalho, e, ao dirigir-me ao local de reunião, percebi a presença, na central dos ônibus coletivos, de um senhor, evangélico, a pregar a palavra divina.
Lá estava ele, vestindo um terno surrado sob o calor úmido e "preguento" de Manaus e, empunhado a Bíblia Sagrada, interpelava os transeuntes a conheceram das passagens dos testamentos. O que me chamou a atenção foi tê-lo reconhecido desde que eu morava em Manaus, em 1998. E desde este tempo, ele permanece a cumprir a tarefa que elegeu para si. Pelo jeito, também estava lá bem antes daquela época.
Em meio à indiferença dos passageiros apressados, aos arranques ruidosos, aos ambulantes e enfim, a este observador curioso, o homem não vacilava; não posso deixar de registrar aqui o testemunho da sua fé: em duas ou três tentativas, era eu perceber não estar recebendo a devida atenção e já abandonaria o local, desanimado. Mas o nosso persistente pregador possivelmente tem consciência que o negócio dele não é com as pessoas que passam, mas com o próprio Deus. Neste sentido, não posso deixar de admirá-lo, e por que não, até mesmo invejá-lo.
Hoje, residindo em Belém, é sempre deste senhor que eu me lembro quando, ao voltar do trabalho para casa, deparo-me, nas avenidas Presidente Vargas ou Nazaré, com mais uma passeata. Nesta cidade, onde abundam belas e amplas praças, bem como outros tipos de espaços públicos, propícios para toda a sorte de aglomerações, as manifestações sociais soem ocorrer com freqüência justamente nas artérias mais importantes, e não poucas vezes, à hora do almoço. De tão freqüentes, desconfio se já não estejam programadas mediante uma escala de revezamento.
Para o amigo leitor que talvez ainda não tenha percebido a correlação entre o pregador evangélico de Manaus e as passeatas de Belém, estou a falar sobre a liberdade de expressão e de reunião, e de quando estes instrumentos são usados para o aperfeiçoamento da democracia, ou, ao contrário, para aniquilá-la.
Será justo que um indivíduo, ou algum grupo humano, no afã de exercer o direito de se reunir e de se expressar, simplesmente desconheça direitos alheios e equivalentes? Serão as pretensões políticas de uns, mais dignas de proteção pelo Estado do que os direitos jurídicos de outros?
A nossa Constituição Federal, confusa e contraditória, apelidada de "Constituição-Cidadã", afronta o princípio da igualdade de direitos perante a lei para albergar o desrespeito entre cidadãos, em nome da valorização exagerada de direitos que nos foram negados no passado. Não sem razão, Ney Prado afirmava que esta constituição foi feita com os olhos voltados para o passado (1).
E o exemplo que desta afirmativa está sintetizado na Carta Maior quando prevê, em seu artigo 5º, inciso XVI - "todos podem reunir-se pacificamente, sem armas, em locais abertos ao público, independentemente de autorização, desde que não frustrem outra reunião anteriormente convocada para o mesmo local, sendo apenas exigido prévio aviso à autoridade competente;".
Bem entendido, o dispositivo constitucional visa a proteger os cidadãos contra os arroubos de totalitarismo, que o Estado, a pretexto de manter a ordem, pode agir com desvio de finalidade, apenas com o intuito de sufocar dissidentes. No entanto, esqueceram nossos constituintes de que os direitos de uns terminam quando começam os dos outros. No caso em tela, milhares de belemenses são impedidos de chegarem a seus destinos, por conta de gente (quase sempre, por sinal, os mesmos rostos) que usa da lei não para expor as suas idéias, mas para impô-las, pelo método de, sem eufemismos - seqüestrar - dos seus semelhantes, o direito de ir e vir.
Os direitos políticos são muito importantes, sem dúvida. As liberdades de expressão e de reunião formam o berço imprescindível das novas leis, tomara que cada vez mais justas e perfeitas, a garantir a prosperidade de nossa sociedade. Mas elas não devem se sobrepujar, em um legítimo estado democrático, aos direitos jurídicos já estabelecidos. O meu desejo de transitar em uma via que foi construída com a finalidade de propiciar passagem, às horas mais críticas, a milhares de veículos dos habitantes desta Santa Maria de Belém do Grão-Pará, constitui-se em sólido direito jurídico, isto é, já foi reconhecido e pacificado, e à custa de muito sofrimento. Não convém, portanto, sufocá-lo no altar de reivindicações que ainda precisam ser assimiladas e aprovadas pela sociedade.
Se, a pretexto de defender pretensões ainda não estabelecidas de forma democrática, sonega-se a proteção aos direitos jurídicos pré-existentes, o resultado será uma eterna roda viva de lindas novas leis e o exercício de nenhum direito - bem assim como o de nenhum dever. Este é o verdadeiro retrato de um estado bárbaro.
Muito antes de existir o inciso XVI, aliás, muito antes de existir o Brasil, os helênicos já utilizavam as praças para a prática de oratória. A existência de um digno homem a pregar em uma parada de ônibus marca o apogeu da tradição dos povos livres ocidentais, forjada por séculos de aventuras. Este homem respira a atmosfera da humanidade, a reconhece e a respeita. A qualquer um será dado dizer que ele é "piegas", "cafona", "quadrado", sei lá, mas ninguém poderá dizer que ele desrespeita, agride ou constrange seus conterrâneos. Que seu exemplo toque as mentes mais eufóricas e impetuosas. Que fique este singela lembrança aos que pensam haver só direitos, desacompanhados dos respectivos deveres.
(1) "As Constituições brasileiras têm apresentado vícios e peculiaridades específicas, razão por que se sucederam atabalhoadamente. Sem falar das mil e uma emendas que sofreram ao longo dos anos. Sempre foram elaboradas contra alguma coisa, em repúdio a algum sistema ou até a grupos e pessoas.
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Os notáveis, para não ficar atrás, fizeram um texto contra o regime que acabou de ser substituído a 15 de março de 1985. Poderiam até dispor de fortes motivos para tanto, como a nação inteira dispõe. Sua obrigação, porém, seria a de dar a volta por cima e pensar no futuro. Jamais ficar punindo o passado. Porque não chegaremos a parte alguma enquanto continuarmos a agir olhando para trás, tentando dirigir de marcha à ré, pelo espelhinho retrovisor." (NEY PRADO, Os Notáveis Erros dos Notáveis, p. X a XI, Forense, 1987)
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terça-feira, 28 de março de 2006
quinta-feira, 16 de março de 2006
Sobre SICAF e Certidões Negativas
Por Klauber Cristofen Pires
Hoje seria o dia em que receberíamos, em nossa repartição, as impressoras multifuncionais da nova empresa contratada. A empresa venceu a licitação, feita na modalidade pregão-eletrônico, há exatamente dois dias atrás, para o fornecimento, por locação, de impressoras multifuncionais. Mas isto não aconteceu. O contrato não pôde ser assinado, porque a empresa vencedora do certame, no dia da assinatura do contrato, estava com a sua situação irregular no SICAF. Problemas como este acontecem diariamente no serviço público. A burocracia sem limites simplesmente trava o funcionamento das Administrações, com prejuízos incalculáveis sobre toda a população.
Aos que acompanham os jornais, impressos ou televisivos, possivelmente já devem ter visto uma notícia que "tal ou qual ministério recebeu tantos milhões mas não conseguiu executar sequer 20%". Em grande parte, saibam, isto se deve ao emaranhado de exigências que, pouco ou nada tendo a ver com o ato de adquirir produtos ou serviços de fornecedores privados por meio de uma fórmula isonômica, pode ensejar a anulação de meses de trabalho.
Um destes estorvos chama-se SICAF (Sistema de Cadastramento Unificado de Fornecedores). Foi criado pelo decreto nº 1.094, de 23 de março de 1994, pela então Secretaria de Estado da Administração e do Patrimônio do Ministério do Orçamento e Gestão, e consiste em um documento que reúne, numa só folha, podendo ser acessado on-line, a situação fiscal e econômica da empresa que pretenda contratar com a Administração Pública.
A inscrição no SICAF é válida por um ano, mas, em relação a cada tributo, prevalece o prazo de validade constante da respectiva certidão negativa de débito. O SICAF reúne os seguintes tributos: Receita Federal, Dívida Ativa da União, FGTS, INSS, Balanço, Receita Estadual e Receita Municipal. Isto significa que, vencido o prazo de validade de cada uma destas certidões negativas, a empresa deve comparecer ao órgão onde foi feita a inscrição e, de posse de uma nova CND, solicitar a sua atualização no cadastro. As certidões do FGTS têm validade de apenas trinta dias; as dos fiscos municipais, em geral, noventa dias. A superposição das datas de vencimento de sete certidões diferentes faz com que a empresa deva comparecer ao órgão cadastrador, pelo menos umas trinta vezes durante o ano, apenas para manter como válida sua situação no cadastro!
A falta de atualização de qualquer dos itens coloca a empresa em situação "irregular", o que a impedirá de participar de licitações e de contratar com a Administração Pública. Mas não é só isto. A cada pagamento de fatura, o servidor responsável pelo pagamento deve consultar o SICAF; se a situação da empresa perdurar como irregular, poderá ter o seu contrato extinto após o segundo mês.
Durante um bom tempo, o SICAF foi considerado obrigatório para a participação em licitações. No entanto, julgados do TCU e do Poder Judiciário, de forma sábia, têm entendido que a exigência de prévio cadastramento no SICAF como pré-requisito de habilitação em licitações afronta o Princípio da Licitação, que é o de abrir o maior leque possível de oportunidades aos competidores. Mas isto somente significa que eles não precisam aderir a este cadastro, pois que ainda lhes é exigido comparecer ao certame de posse de todas as certidões aqui citadas.
Interessante é verificar que a situação de algum item, apontado como irregular no SICAF, não significa necessariamente que a empresa esteja em débito com algum tributo, mas que, apenas, não o atualizou junto ao órgão cadastrador, o que pode significar a prática de uma injustiça quando a Administração se nega a assinar o contrato ou a sujeitar o pagamento da fatura à regularização do cadastro.
Por outro lado, a própria Certidão Negativa de Débito não garante que a empresa está em dia com suas obrigações tributárias, e isto pode ser demonstrado no seu próprio texto, que declara que a entidade poderá vir a cobrar eventuais créditos tributários que forem lançados após a expedição da certidão. Isto acontece porque a entidade tributante não tem conhecimento de atos que o contribuinte possa realizar sem declará-los.
Uma certidão "positiva" não tem o efeito de coisa julgada, mas apenas se define como a declaração de algum alegado crédito tributário, por parte de um órgão fiscal; o contribuinte, por sua vez, poderá pagá-lo, se concordar (ou se conformar), ou, ao contrário, procurar a justiça. Se o Poder Judiciário julgar como improcedente o crédito tributário, é de se concordar que o contribuinte possa processar o Estado, alegando perdas e danos por tê-lo impedido de participar em licitações. Neste sentido, pode-se concluir que a exigência de certidão negativa como pré-requisito para participar em licitações ofende os princípios de unicidade de jurisdição e de presunção de inocência, consagrados, respectivamente, em nossa constituição no artigo 5º, incisos XXXV ("a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito") e LVII ("ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória").
A exigência do SICAF, ou mesmo de CND's, como requisito de habilitação em licitações, não guarda nenhuma relação com qualquer alegação de princípio de moralidade pública. Não é mais imoral que uma empresa em situação fiscal irregular venda à Administração Pública do que aos demais particulares. Os prejuízos que o sonegador de tributos causa à sociedade não são menos indignos do que os causados ao Estado.
Mas, pasme o leitor, a própria Constituição Federal, em seu art. 37, inc. XXI, proíbe expressamente a instituição de exigências outras que não as de capacidade técnica e econômica, e mesmo assim, que estas sejam apenas as indispensáveis à garantia de cumprimento das obrigações: "Ressalvados os casos especificados na legislação, as obras, serviços, compras e alienações serão contratados mediante processo de licitação pública que assegure igualdade de condições a todos os concorrentes, com cláusulas que estabeleçam obrigações de pagamento, mantidas as condições efetivas da proposta, nos termos da lei, o qual somente permitirá as exigências de qualificação técnica e econômica indispensáveis à garantia do cumprimento das obrigações." (Grifos nossos). Há uma exceção constitucional ao caso em tela, preconizada pelo art. 195, § 3º: "A pessoa jurídica em débito com o sistema de seguridade social, como estabelecido em lei, não poderá contratar com o Poder Público nem dele receber benefícios ou incentivos fiscais ou creditícios".
Isto coloca a lei 8.666/93, em seus artigos 27, IV e 29 e incisos I a IV*, em flagrante inconstitucionalidade. É de admirar que até então ninguém tenha proposto a arguição de inconstitucionalidade desta lei. É possível que, a fim de socorrer a lei, tenha sido dada à clausula da Carta Maior uma interpretação mais ou menos assim: "que, em relação às exigências de qualificação técnica e econômica, só serão exigidas aquelas indispensáveis à garantia do cumprimento das obrigações". Não vejo, contudo, como tal idéia possa prevalecer. Porque isto significaria liberar à vontade toda a sorte de exigências, sendo que somente as de qualificação técnica e econômica encontrariam limitações. Ora, isto fere de morte o próprio espírito do texto constitucional, que justamente procurou dar um sentido de objetividade às licitações. Seria um absurdo imaginar que o constituinte tenha autorizado toda a sorte de exigências, enquanto impusesse limitações justamente sobre os aspectos mais caros da licitação. Imagine-se que uma nova lei viesse a exigir que e empresa demonstrasse que seus produtos foram produzidos pela comunidade quilombola de Sei-Lá-Onde, ou que metade de seu quadro de funcionários deva ser formado por negros ou deficientes físicos, ou que seu processo de fabricação somente utiliza insumos que não agridam a natureza... (já começo a temer dar idéias...).
Adicionalmente, a exceção prevista no art. 195, § 3º, tornar-se-ia inócua. Por quê a Constituição se preocuparia em criar uma cláusula impedindo empresas em débito com a Seguridade Social de contratar com a Administração Pública, se a mera lei ordinária fosse autorizada a exercer este mister?
A conseqüência da imposição de tais requisitos atrapalha - e muito - o andamento das licitações e dos contratos administrativos; interrompe o fornecimento de produtos e serviços, muitas vezes considerados indispensáveis; abre campo para intermináveis recursos administrativos e abarrota os tribunais com disputas jurídicas que não precisariam existir. Não vejo como uma alegação abstrata de proteção ao princípio da moralidade pública possa prevalecer ante a ofensa concreta do princípio da eficiência, que infelizmente, em nosso Estado, anda tão a desejar.
Mas o pior resultado ainda não se encontra aí. O que se vê de pior, realmente, é a inversão do ânimo com que permitimos que o Estado trate a nós, cidadãos, e ao instrumento da nossa livre iniciativa, que são as empresas. Em uma sociedade livre e civilizada, as pessoas e suas empresas são consideradas, a priori, como ordeiras e honestas. São juridicamente capazes de realizar todos os atos lícitos, e isto inclui vender produtos e serviços a toda a sociedade (inclusive o Estado). Em uma sociedade livre, é inadmissível que o cidadão tenha de provar que é honesto, para praticar atos fundamentalmente honestos.
Certamente, o Estado deve combater a sonegação, assim como todos os tipos de delitos. O Estado que provê aos seus cidadãos uma Administração Tributária bem aparelhada e eficiente garante o reinado da justiça, da paz e da ordem, por meio de uma atuação ostensiva e igualitária, mas aquele que faz uso de medidas casuísticas que trazem no seu corpo a marca do desvio de finalidade apenas denuncia o seu apetite imediatista de arrecadar a qualquer custo, enquanto emporcalha justamente o objetivo de arrecadar, que é o de prestar eficientemente aos cidadãos os serviços públicos.
* Lei 8.666, de 21 de junho de 1993, Das Licitações e Contratos Administrativos:
art. 27: Para a habilitação nas licitações exigir-se-á dos interessados, exclusivamente, documentação relativa a :
...
IV - regularidade fiscal;
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...
Art. 29: A documentação relativa à regularida fiscal, conforme o caso, consistirá em:
I - Prova de inscrição no Cadastro de Pessoas Físicas (CPF) ou no Cadastro Geral de Contribuintes (CGC);
II- Prova de Inscrição no cadastro de contribuintes estadual ou municipal, se houver, relativo a domicílio ou sede do licitante, pertinente ao seu ramo de atividade e compatível com o objeto contratual;
III- prova de regularidade para com a Fazenda Fderal, Estadual e Municipal do domicílio ou sede do licitante, ou outra equivalente, na forma da lei;
IV- prova de regularidade relativa à Seguridade Social e ao Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS), demonstrando situação regular no cumprimento dos encargos sociais instituídos por lei.