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sexta-feira, 24 de junho de 2011

De quem é a Constituição?



A Constituição não deve pertencer a um grupo seleto de magistrados, e mais exatamente, a ninguém em particular, pois o perigo de atos equivocados ou flagrantemente traiçoeiros contra a pátria não podem geram consequências nefastas e incalculáveis. Muito melhor que a jurisprudência emerja naturalmente da soma e do confronto das melhores decisões, possibilitando que se reformem quando necessário. 

Por Klauber Cristofen Pires


Há coisa de uns dez anos atrás, estava discutindo com alguns colegas sobre os requisitos para que alguém pudesse ocupar o cargo de Ministro do Supremo Tribunal Federal. A Constituição Federal de 1988 assim dispõe em seu art. 101: "O Supremo Tribunal Federal compõe-se de onze Ministros, escolhidos dentre cidadãos com mais de trinta e cinco e menos de sessenta e cinco anos de idade, de notável saber jurídico e reputação ilibada.". O debate seguia caloroso acerca da possibilidade de qualquer brasileiro com notórios conhecimentos jurídicos poder ocupar uma daquelas onze cadeiras, ou se estas estavam reservadas apenas a quem tivesse em mãos um canudo de bacharel em Direito.

O meu entendimento era o de que qualquer brasileiro com notável saber jurídico perante a sociedade seria capaz de preencher o requisito constitucional, segundo a literalidade do art. 101 e segundo a inteligência do caráter político daquele cargo, haja vista que os onze magistrados também constituem-se como representantes de um dos Poderes da República.

Meus colegas, a seu turno, munidos da doutrina de um livro de Curso de Direito Constitucional, escoraram-se no entendimento da autora, aliás, uma renomada jurista, especialmente para os candidatos a concursos públicos (perdoem-me por ter olvidado o seu nome), cuja posição era a de que a exigência constitucional em tela "notório saber jurídico" pressupõe a inafastável posse do titulo de bacharelado em Direito, de acordo com a recorrentemente burocrática visão brasileira nestes assuntos. 

Obviamente, o meu objetivo de convencê-los a favor da minha tese terminou fracassado, muita embora eu também não tivesse me dado por satisfeito com a deles, que "venceram" o debate, por assim dizer, por argumento de maioria, se é que este é um argumento válido...

Relembro deste pequeno acontecimento em minha vida para refletir hoje sobre a história do STF desde a promulgação da Constituição, em 1988. Com efeito, desde então, a doutrina daquela famosa jurista acabou consagrando-se com o passar do tempo, de tal modo que ouso dizer, praticamente supriu a necessidade de averiguação do notório saber jurídico, aliás, um dever criminosa e traiçoeiramente negligenciado pelo Congresso Nacional durante toda a sua existência. O fato é que de longe os indicados têm sido escolhidos muito antes por suas características particulares do que pelo dom do saber excelso presumidamente indiscutível por parte da sociedade.

A quem quer que estranhe as sentenças tais como as que expulsaram os arrozeiros da Reserva Raposa Serra do Sol em Roraima, ou da contraditória manutenção do terrorista e assassino italiano Cesare Battisti, ou ainda do excêntrico alargamento da interpretação do conceito constitucional de família para a legalização do casamento gay, recorro às palavras simples do historiador Thomass E. Woods Jr, quando se expressa com tocante simplicidade ao falar das perseguições aos cristãos nos países comunistas, que um juiz não precisava ter formação ou amplos conhecimentos jurídicos, mas apenas uma boa consciência revolucionária, de tal forma que as suas sentenças eram justificadas pelos argumentos mais estapafúrdios.

Todavia, venho aqui cruzar este problema com mais outro, igualmente preocupante. Durante esta semana, o Exmo Juiz Jerônimo Pedro Villas Boas, do Estado de Goiás, proferiu uma sentença de anulação de um casamento gay havido naquela unidade da Federação sob o argumento de que o STF descumprira a sua função jurisdicizante ao desobedecer a Constituição Federal, agindo portanto, como legislador constitucional derivado, em flagrante usurpação de competência.

Com base no que vi nos noticiários televisivos, tenho que praticamente todo o debate nacional focou-se a favor ou contra o casal gay e a anulação posterior da decisão do magistrado singular, com os possíveis efeitos colaterais que o caso possa ter deflagrado, conquanto o verdadeiro cerne da questão foi inovador e em nada se relaciona com a união civil homossexual, mas sim quanto ao questionamento frontal sobre o ato dos Ministros do STF, qual seja, se eles podem realmente reescrever a Constituição onde o texto não permite, pela sua literalidade, clareza e inteligência, interpretações extensivas de direitos. 

Lembro aqui de tradicional princípio de hermenêutica amplamente ensinado nas faculdades de Direito (aquele lugar que confere diploma de bacharel em Direito e por extensão, "notório saber jurídico") que diz que a Constituição não possui letra inútil, porquanto, no caso específico do julgamento do casamento gay, os termos "homem e mulher" afastam inapelavelmente a hipótese de ser lido sob a forma "homem e homem" ou "mulher e mulher". Se o texto fundador do sistema jurídico estivesse gravado como "entre cidadãos", ou "entre seres humanos" ou ainda "entre cônjuges", aí sim certamente haveria a brecha providencial. 

Em outros artigos anteriores, discorri sobre a viabilidade de todo um sistema de serviços de produção de segurança, incluindo os de polícia, julgamento e apenamento, serem providos pela iniciativa privada, nos moldes defendidos pelo filósofo Hans-Hermann Hoppe, sendo que, destes artigos, diversos estudantes e operadores do Direito retornaram-me com palavras de rejeição pelo fato que um tal sistema ofenderia o princípio da segurança jurídica, precisamente pela falta de um tribunal constitucional que proferisse a palavra final  em matéria de direito ao uniformizá-lo para todos os cidadãos. 

Realmente, não há que se teimar quanto ao fato de que o STF, o nosso tribunal constitucional, de fato, "uniformiza" o direito, mas desde quando isto deve ser confundido com segurança jurídica? pelo contrário, em diversas questões, o STF tem se mostrado um grande malfeitor da segurança jurídica, ao demonstrar mais apreço pelo seu ativismo ideológico do que pelos fundamentos da democracia representativa e pior, estendendo à toda a sociedade os efeitos deletérios de julgamentos errôneos, por conta do efeito erga omnes de suas decisões. 

Ao termos criado um tribunal constitucional, criamos um grupo de onze pessoas que simplesmente passam a se tornar as donas ou posseiras da Constituição, e isto,  enquanto durar a ordem vigente, há de se perpetuar permanentemente a desfavor das futuras gerações, gerando questões incontornáveis e sem volta. 

Apenas como exemplo, cito os recentes movimentos de retorno à indexação da economia que pretendem reajustar o salário mínimo e os salários dos servidores públicos segundo a inflação passada. Sendo eu servidor público, até que mal idéia não seria, pelo menos o meu estrito ponto de vista pessoal. Porém, não tenho como não repudiar tal medida, conhecendo-a como o moto-contínuo de uma futura hiperinflação. Como isto um dia poderá ser consertado se vier a consolidar-se como direito adquirido julgado em última instância pelo STF?

Decisões corretas e justas, isto são o que esperamos de juízes e de tribunais, e nisto não há mal quando se voltam para cumprimento por toda a sociedade. Todavia, decisões parcialistas, injustas, e equivocadas, quanto mal há de fazerem quando um só tribunal as impõe sobre todos os cidadãos? Não há aí maior mal do que eventuais discordâncias entre um tribunal de um estado e outro, sendo que as melhores e mais acertadas se destacariam ao longo do tempo, emergindo como vencedoras buriladas pelo tempo e pela realidade?

Por isto, defendo a inutilidade de uma instituição voltada para a defesa da Constituição, um problema que, aliás, não é só nosso: nos EUA, a título de ilustração, a Suprema Corte decidiu à revelia que as propagandas comerciais não se enquadram no mesmo conceito de liberdade de expressão conferidos às pessoas físicas, muito embora a própria Constituição daquele país não faça nenhum tipo de distinção. A Suprema Corte proferiu tal decisão para legitimar os poderes estatais das agências reguladoras de regular os reclames comerciais. 

Garet Garret, em The American Story (p. 171/172), também registra este fenômeno curioso de substituição do espírito da Constituição por todos os cidadãos pelo que a Suprema Corte passa a ditar (minha tradução):

Tome o ano de 1898. .A República tinha então 110 anos; e este foi propriamente o seu último aniversário.
...
Dificilmente você acreditaria que o caráter de um povo iria mudar tão enormemente durante a brevidade de uma geração.
...
A palavra República tornou-se estranha na língua popular...A Nova palavra era Democracia...
...
Em uma geração:

Ele (o americano) havia aprendido que a Constituição era o que a Suprema Corte dissesse o que ela era...
 
Agora consideremos quando um tribunal constitucional afronta diretamente o texto da Carta Magna, para pavimentar um projeto totalitarista de poder, tal como aconteceu na Nicarágua: Leiam o artigo 147 da Constituição daquele país e me digam se tem jeito ou maneira de ser entendido justamente no seu contrário:  

Artículo 147:
...
No podrá ser candidato a Presidente ni Vicepresidente de la República:
a.      el que ejerciere o hubiere ejercido en propiedad la Presidencia de la República en cu alquier tiempo del período en que se efectúa la elección para el período siguiente, ni el que la hubiera ejercido por dos períodos presidenciales;


Concluindo: a Constituição não deve pertencer a um grupo seleto de magistrados, e mais exatamente, a ninguém em particular, pois atos equivocados ou flagrantemente traiçoeiros contra a pátria podem gerar consequências nefastas e incalculáveis. Muito melhor que a jurisprudência emerja naturalmente da soma e do confronto das melhores decisões, possibilitando que se reformem quando necessário.


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