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segunda-feira, 19 de dezembro de 2011

Industrialização de Cara Suja (13/06/72)


“Aqueles que não buscam uma perspectiva histórica acabam prisioneiros de uma perspectiva histérica” (Do Diário de um Diplomata).  *Roberto de Oliveira Campos

Por Ricardo Bergamini





Sempre me preocupei com duas coisas. Uma é alcançar uma perspectiva histórica para escapar a uma perspectiva histérica. Outra é não cair no fácil vezo da interpretação conspiratória da história, atitude que segundo Arthur Schlesinger, é tão atraente quanto falsa.

Um exemplo de interpretação conspiratória – na qual o provocante mistério dispensa a percuciente análise – é a celeuma que há tempos se levantou no Brasil em torno do tema do planejamento familiar. Ou, em termos mais grosseiros, do controle da natalidade... Algumas cabeças imaginosas entretinham sinistros pesadelos e passaram a enxergar, por trás das exortações do Banco Mundial aos países subdesenvolvidos para moderarem sua reprodução descuidada, missionários americanos esterilizando índios na selva amazônica, a fim de manter espaços vazios para futura invasão. Felizmente, essa onda amainou e muita gente passou a descobrir o óbvio: a ocupação de territórios exige investimentos na infra-estrutura, de sorte que multiplicar a população antes de multiplicar a capacidade de investir é garantir o favelamento urbano e não o desbravamento da selva. Ainda que lentamente, perde popularidade a teoria leporina do desenvolvimento e começa a se diferenciar entre produtividade sexual e produtividade econômica,

Agora, alguns de nossos recintos cranianos, de duvidoso conteúdo, passaram a descobrir uma outra conspiração: a preocupação com a poluição ambiental, objeto da atual Conferência das Nações Unidas em Estocolmo, seria o novo complô dos países industrializados para dificultar a industrialização dos subdesenvolvidos e distraí-los dessa premente tarefa.

O JOIO DO TRIGO


Detenhamo-nos no útil, porém não excitante, esporte de separar o joio do trigo. Há três razões válidas na inquietação dos países subdesenvolvidos quanto à presente “moda” de combater a poluição. A primeira é que certamente o grau de prioridade do esforço antipolutor é menor nos países em desenvolvimento do que nas economias saciadas. Aqueles sofrem ainda da mais rudimentar das poluições – a poluição da pobreza. A preocupação fundamental é ainda aumentar a quantidade de bens.

Nas economias ricas, a um tempo beneficiárias e escravas da civilização de consumo, o problema é melhorar a qualidade de vida; e já se discutem seriamente teses como a do crescimento zero da população ou a economia do não-crescimento. Há sem dúvida um certo perigo de que, obcecadas com o conservadorismo, as instituições financiadoras dos países industrializados se esqueçam de que o desenvolvimento econômico pregresso desses países não se fez sem um bocado de devastação construtiva. Preservar é, às vezes, uma receita de prudência e não uma fórmula de mobilização; e é inescapável que o desenvolvimento econômico envolva um ciclo de uso, desperdício e reposição.

A segunda preocupação válida diz com a repartição de responsabilidade entre Governo e a iniciativa privada no combate à poluição. A tendência nos países mais industrializados tem sido a fixação de normas e a imposição de exigências pelos governos, com severo encarecimento de custos para a empresa privada. Nos países em desenvolvimento, onde o setor privado é geralmente mais débil, cabe aos governos assumir maior responsabilidade e maior parcela dos custos, sob pena de estiolarem o crescimento da indústria privada.  Quando há elevação substancial de custos pela exigência de dispositivos antipoluentes, cabe aos governos compartilhar o custo adicional, ou subvencionar o custo adicional das instalações.

A terceira preocupação válida diz com o problema de tecnologia. A responsabilidade da pesquisa de métodos e equipamentos não-poluentes deve caber aos países industrializados; e o acesso a essa pesquisa deve ser facilitado aos países em vias de desenvolvimento. Pois é claro que os países industrializados não apenas são os principais responsáveis pela poluição, como dispõem de maiores recursos financeiros e tecnológicos, enquanto os parcos recursos dos países subdesenvolvidos devem ser obsessivamente concentrados no aumento da produção. 

PRAGMATISMO SEM HISTERIA


Essas, as preocupações válidas. Daí a julgar-se que o mundo industrializado “inventou” o tema da poluição para retardar ainda mais a industrialização do Terceiro Mundo vai uma grande distância. Há que lembrar, de um lado, que o acréscimo do investimento presente, para controle de poluição, significa evitar deseconomias futuras que exigiriam investimentos de correção ou reposição do ambiente, cujo valor, descontado no tempo, pode superar o sobreinvestimento inicial em dispositivos antipoluentes. Há que fazer um delicado e complexo balanço entre o custo dos investimentos preventivos e corretivos.

De outro lado, o receio de substancial encarecimento dos investimentos pode ser temporário. Na medida em que, como resultado do novo evangelho conservacionista, melhore a tecnologia e aumente a escala de produção de equipamentos antipoluidores, os custos destes tenderão a declinar mais ou menos rapidamente. Dessarte, ao invés de se encarar o movimento antipoluidor como um capricho bizarro de países ricos, ou como um complô para dificultar nossa industrialização, deveríamos marchar para uma atitude mais pragmática. Sempre que as agências financeiras internacionais, ou os governos doadores de auxílio, insistirem em encarecer instalações, em virtude de exigências antipoluidoras feitas aos países em desenvolvimento, esse custo adicional deveria ser financiado com uma ampliação de auxílio, ou com empréstimos mais suaves e lenientes, de forma que o investimento preventivo não subtraísse recursos ao investimento produtivo. Muitos entre nós defendem a industrialização de “cara suja” como se fora uma atitude heróica, mas trata-se de heroísmo fútil se aumenta o consumo de sabão....

Lembremo-nos, finalmente, de que se o grande e dramático problema dos países em desenvolvimento é a poluição do homem pela pobreza, há outros tipos de poluição quase tão graves: a poluição do coração pela suspicácia e da mente pela burrice.


*Defensor apaixonado do liberalismo. Economista, diplomata e político também se revelou um intelectual brilhante. De sua intensa produção, resultaram inúmeros artigos e obras como o livro A Lanterna na Popa, uma autobiografia que logo se transformou em best-seller. Foi ministro do Planejamento, senador por Mato Grosso, deputado federal e embaixador em Washington e Londres. Sua carreira começou em 1939, quando prestou concurso para o Itamaraty. Logo foi servir na embaixada brasileira em Washington, e, cinco anos depois, participou da Conferência de Bretton Woods, responsável por desenhar o sistema monetário internacional do pós-guerra.

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