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sábado, 21 de abril de 2012

A lição dos cemitérios

A sua existência efêmera foi sentida pela família. Ou melhor, faz parte agora do túmulo da família. O nascituro, ao menos, tinha um sobrenome 

Por Leonardo Fonseca de Olveira

Certa vez passeava por um antigo cemitério da cidade e eis que me deparei com uma cena curiosa: um túmulo de um natimorto. Aquela criança surgiu no ventre da mãe, durante nove meses, apenas para nascer morta. Porém, a dignidade daquele ser permaneceu intacta. Por mais que não houvesse um nome específico, por mais que não houvesse em si uma identidade, a criança tinha um túmulo. Talvez o nome dela tenha ficado apenas na cabeça e nos sonhos frustrados dos pais. Mas ter um túmulo é melhor do que ser jogado no ralo. A sua existência efêmera foi sentida pela família. Ou melhor, faz parte agora do túmulo da família. O nascituro, ao menos, tinha um sobrenome. Era uma morte que fazia mais de um século.


 Nesta época, as crianças que morriam, no imaginário da população, eram consideradas “anjinhos”, tais como aquelas figuras barrocas com asinhas no céu. E as perdas infantis eram muitas. A morte era um lugar-comum na vida das pessoas de priscas eras. Neste aspecto, os cemitérios têm muitas histórias de mortes para contar. A morte será comum a todos. Todos serão pó e tão apenas pó. No entanto, cada morte será sentida diferentemente. E o túmulo do nascituro demonstrou o quanto fez falta aquele ser que nem sequer chegou a viver. Hoje, a morte de alguma criança ou mesmo de um jovem nos parece, felizmente, bem mais rara. A vida melhorou qualitativamente a ponto de possuirmos uma geração bem mais saudável. A juventude está imune a muitas doenças. E vive-se mais.

 Todavia, há uma campanha mundial pela descriminalização do aborto, pela desumanização do nascituro. Este, mesmo o saudável, não terá mais um direito à vida e a um túmulo, e sim à lata do lixo hospitalar. As justificativas são as mais espúrias. Apela-se à propriedade da mãe sobre o corpo. Ou que os fetos não seriam desejáveis. Ou que seriam defeituosos. Ou que até seriam pobres demais. Na prática, porém, os túmulos não serão mais nos cemitérios. Os próprios ventres femininos serão os túmulos, e a clínicas de aborto, abatedouros. 


 Se não bastasse a matança dos pequeninhos inocentes, cujo direito de nascer será recusado, os arautos da morte querem ampliar sua sanha aos doentes e aleijados de todas as idades. A eutanásia é a bandeira de “caridade” aos fracos. A inversão de valores não seria mais óbvia. Ajudar aos necessitados é expressão de “sadismo” cristão para com o sofrimento humano. Como uma espécie de catarismo, de revolta gnóstica contra a realidade, matar o corpo libera a alma do sacrifício da vida. Morrer tornou-se um “direito”, um culto, uma idolatria, um objeto de veneração dó ódio pela vida. Ou mais, as pessoas devem se adaptar a um projeto idealizado de perfeição física e mental, sob pena de serem eliminadas. 


 Houve pessoas que comemoraram, vergonhosamente, a decisão do STF, pelo culto da morte. O anencéfalo, este ser imperfeito, foi proscrito e usurpado de seus direitos. Antes, estes eram resguardados. Hoje, ele pode ser exterminado, por não se adequar aos princípios da nova eugenia neonazista disfarçada de caridade para com a mãe. Por mais que houvesse evidências de que a anencefalia não significava necessariamente a morte, por mais que houvesse exemplos de menores sobreviventes, o Supremo resolveu optar absolutamente pela eliminação. Antes, as mortes naturais eram aceitas. Ninguém se propunha a controlar a vida. Agora querem controlar e causar a morte. E se antes, se chorava a ausência do morto, agora querem se livrar dos vivos. 

 Os cemitérios ensinam certa lição: cada ano de vida e de morte registrado no túmulo é um retrato mínimo de vida que se foi. Alguém ali viveu, com a força de seus ossos e carne aderidas a terra, ao fazer a diferença. Pode ter feito o mal neste mundo, mas pagará pelos seus pecados noutro mundo, se é que já não pagou neste.  Quem duvidará disso passeando pelos túmulos? Sem eles, a vida e a morte parecem não existir. Até o natimorto tem o direito de existir lá. Para ser enterrado, é porque foi lembrado por alguém e teve a dignidade de sua existência efêmera guardada. Teve um velório e um funeral. Aquele ser no cemitério me causou grande impressão. . .

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