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quarta-feira, 11 de setembro de 2013

O fim da inocência da ONU

Félix Maier
Vários textos foram escritos para lembrar os 10 anos sem o diplomata brasileiro Sérgio Vieira de Mello, que faleceu no dia 19 de agosto de 2003, junto com mais 21 funcionários da ONU, após explosão da sede da entidade que ele comandava em Bagdá.
Vieira de Mello havia realizado trabalhos importantes na Organização, como as atividades para imposição da paz nos Bálcãs e no Timor Leste. Por isso, seu nome era certo para ser aclamado futuro secretário-geral da ONU.
No dia 25 de agosto de 2013, o Ph.D. José Flávio Sombra Saraiva, professor da Universidade de Brasília (UnB), escreveu para o Correio Braziliense um texto sobre Vieira de Mello, cujo título é “O dia do fim da inocência da ONU”. Chamou minha atenção a palavra “inocência”, justamente na semana em que eu estava lendo o livro de Robert Fisk, A grande guerra pela civilização - A conquista do Oriente Médio, um calhamaço de 1495 pág. lançado pela Planeta em 2007. E o livro de Fisk, um veterano correspondente de guerra, que chegou a entrevistar Osama bin Laden, apresenta fatos envolvendo a ONU que não são nada inocentes.
Refiro-me às sanções feitas pela Organização ao Iraque após a I Guerra do Golfo (1991), conduzida pelos EUA e aliados, quando centenas de milhares de crianças e adultos morreram por inanição e por falta de medicamentos - um verdadeiro crime contra a humanidade.

Antes das sanções propriamente ditas da ONU, a I Guerra do Golfo destruiu centros vitais do Iraque, ocasionando um verdadeiro genocídio: “Em 1991, os aliados haviam inutilizado as centrais elétricas e bombardeado intencionalmente as instalações de tratamento de águas potáveis e residuais, uma decisão que causaria uma catástrofe humanitária na população civil. (...) O índice de mortalidade havia quase quintuplicado entre as crianças menores de cinco anos, que aproximadamente um milhão de crianças sofria de desnutrição e que cerca de 100 mil morriam de inanição. A investigação descobriu que 46.700 crianças menores de cinco anos haviam falecido pelos efeitos combinados da guerra e das sanções nos sete primeiros meses de 1991” (FISK, 2007: 961).
Vale lembrar que a I Guerra do Golfo teve como objetivo libertar o Kuwait, invadido pelas tropas de Saddam Hussein - além de defender os verdadeiros interesses americanos no Oriente Médio: o petróleo. No entanto, os ataques não se restringiram ao território do Kuwait e entorno, mas atingiram todo o Iraque. A destruição da infraestrutura desse país - além das instalações militares - foi quase total, provocando um atraso que levará décadas ou séculos para o país vencer. Mal comparando, é como se o Brasil tivesse tido um litígio com a “República Ianomâmi” - perfeitamente possível depois que o Brasil assinou a Declaração dos Direitos dos Povos Indígenas -, e a ONU autorizasse os EUA a atacar e destruir toda a infraestrutura brasileira, como as refinarias e as plataformas de petróleo, instalações militares, centrais elétricas, a Embraer, a Base de Lançamentos de Alcântara e outros ativos estratégicos. Afinal, se ontem o ataque da “polícia do mundo” foi contra o Iraque (em 1991 e 2003) e a Líbia (2011), se hoje pode ser contra a Síria, por que amanhã não pode ser contra o Brasil, um país sem nenhuma estrutura de defesa?
Como a I Guerra do Golfo ficou pelo meio do caminho, pois o regime de Saddam não foi deposto, umaintifada contra o ditador foi fomentada pela CIA, através do rádio, e houve rebeliões dos curdos no Norte e dos xiitas no Sul, porém não houve suporte bélico dos países aliados. O resultado foi um massacre ainda maior do que havia ocorrido antes, quando Saddam utilizou até armas químicas contra vilarejos curdos. A ONU, não contente com a desgraça iraquiana, aprovou sanções extremas ao país, proibindo a venda de petróleo e a compra de alimentos e medicamentos. Foi uma catástrofe humanitária como nunca havia ocorrido no país. “Em 1996, estima-se que meio milhão de crianças havia falecido como resultado das sanções” (FISK, 2007: 961). “Se a substancial redução da taxa de mortalidade infantil observada no Iraque durante a década de 1980 houvesse se prolongado durante a década de 1990, teria havido meio milhão de falecimentos a menos de crianças menores de cinco anos de idade no intervalo de oito anos compreendido entre 1991 e 1998” (idem, pág. 966).
Na mesma época, muitos iraquianos, que haviam sobrevivido à fome, morreram devido à irradiação ocasionada pelas bombas americanas e inglesas que utilizavam urânio depletado (enfraquecido). “Esse tipo de projétil era fabricado a partir de dejetos da indústria militar; são de uma liga mais resistente que o tungstênio, que se inflama e forma uma ‘nuvem’ incandescente de urânio depois que o projétil perfura a blindagem dos tanques e veículos” (pág. 995). “Era cada vez mais evidente que uma praga química desconhecida estava se difundindo pelo sul da Mesopotâmia, uma trilha angustiante de leucemias e cânceres de estômago que ceifava a vida de milhares de crianças e adultos iraquianos que viviam perto das áreas de guerra do conflito de 1991” (pág. 995). Segundo dados do Ministério da Saúde do Iraque, confirmados pela ONU, 50 a 75% dos casos de leucemia ocorreram com crianças.
A utilização de mísseis com urânio depletado também foi feita pela OTAN - vale dizer “o cérebro inglês e o músculo americano” - contra a Bósnia (1995) e o Kosovo (1998). Mais de 300 refugiados de um bairro de Sarajevo atacado por aviões da OTAN em 1995 morreram de câncer. Segundo a revista alemã Der Spiegel, também foi usado urânio depletado pelos EUA em sua intervenção na Somália, em 1993, sob o comando da ONU. E tem gente que fica surpresa com ataques “terroristas” islâmicos contra alvos americanos, como o visto em Boston, em 2012.
Atualmente, Barack Obama ameaça atacar a Síria, devido a denúncias ainda não comprovadas de que o governo de Bashar al-Assad tenha usado armas químicas contra sua população. É muito cinismo do comandante das Forças Armadas do país que enterrou, com equipamentos pesados de engenharia, entre 8.000 e 10.000 soldados iraquianos vivos, que estavam abrigados em trincheiras durante a I Guerra do Golfo, e matou milhares de pessoas utilizando as tais armas radiológicas com urânio depletado.
Obviamente, a ONU já realizou importantes missões de paz ao redor do mundo. No entanto, essa Organização não perdeu sua inocência com a morte de Vieira de Mello, como afirma aquele professor da UnB. Vale lembrar que a criação da ONU, em substituição à Liga das Nações, é uma tentativa de estabelecimento de um “governo mundial”, limitando a soberania das nações, “tendo a Fundação Rockefeller, então dirigida por Raymond Fosdick, doado o terreno e 8,5 milhões de dólares, em dezembro de 1946, para o estabelecimento da sede da organização, em Nova York” (CARRASCO, 2013: 69).
E nada foi dito por mim sobre a II Guerra do Golfo, o covarde ataque americano contra o Iraque, em 2003, com a desculpa esfarrapada da procura por armas de destruição de massa, que nunca foram encontradas. Precisa ser dito?
Notas:
CARRASCO, Lorenzo; PALACIOS, Silvia. Quem manipula os povos indígenas contra o desenvolvimento do Brasil - Um olhar nos porões do Conselho Mundial de Igrejas. Capax Dei, Rio, 2013.
FISK, Robert. A Grande Guerra pela Civilização - A Conquista do Oriente Médio. Planeta, São Paulo, 2007 (Tradução de Sandra Martha Dolinsky).

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