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domingo, 23 de março de 2014

Confraria de Artes Liberais - Retórica e Oratória

Publicado em 15/03/2014
Sexta palestra do I Congresso de Artes Liberais, realizado em Porto Alegre nos dias 8 e 9 de março.

Palestrantes: Rodrigo Naimayer e Renan Santos

Nos comentários abaixo, resumo da palestra e bibliografia.



RETÓRICA E ORATÓRIA


- Uma mestra de oratória: Margaret Thatcher. Vídeos. O modelo do debate no Parlamento Inglês. Sem anfiteatro. Duas alas frente à frente buscando convencer seu auditório, incluindo a adesão do partido oposto. E bem diferente do ambiente brasileiro, é uma bancada tensa, bélica. A vestimenta da Lady Thatcher: sempre azul, muito dificilmente usava vermelho. O orador na Inglaterra passa por vários estágios. Aprender a fazer as perguntas certas, tanto para ajudar o amigo quanto para derrubar o inimigo. 

- Organização do discurso. Resposta de bate-pronto, sem titubear. Ele não pode demonstrar fraqueza. Habilidade de expressão facial.

- Classes de debate em Eton, uma das escolas preparatórias mais importantes, junto de Harrow School, onde se formou Winston Churchill. O líder tem que saber argumentar e responder. É claro que isso pode ser feito de forma errada: Goebbels.

- A retórica busca expressar da melhor forma uma verdade. O bom retórico é aquele que consegue entender seu interlocutor. E isso só se aprende com muita experiência e estudo. Nosce te ipsum e alium.

- S. Josemaria Escrivá era um gênio da retórica, conseguindo apresentar o Evangelho de acordo com cada público, adaptando-se prontamente, como quando perguntaram sua opinião sobre os judeus: "As duas pessoas que eu mais amo no mundo são judias: Nosso Senhor e Nossa Senhora." Você abre o horizonte do interlocutor, mostrando que o seu discurso é aceitável. É uma arte tremendamente dominada pelo Chesterton. É o grande escritor do senso comum, conseguindo subverter imagens que tomamos como padrão e dando novo sentido para elas.

- Por que a retórica surge no contexto grego? Muito do discurso ali era altamente simbólico, como em outras civilizações, mas eis que na Grécia surgem os aedos, treinados para ilustrar os eventos narrados. A sabedoria da distinção entre o próprio e o vulgar. Tolstói em Anna Karenina retrata o adultério sem expor o leitor à indignidade do ato, mostrando aí uma finura de alma. A cena de No Country for Old Man, onde o assassino sai da casa dando uma conferida no sapato e sabemos que a mulher foi morta. Além da informação da morte, ele está te dando a forma como ele quer você receba essa informação. Como contar sobre vida sexual para uma
criança. 

- Hoje em dia a palavra "retórico" ganhou contornos pejorativos, mas todo mundo é retórico ao se comunicar, mesmo um pai ao falar com seu filho pequeno. Toda comunicação se dá ao modo do falante e ao modo do receptor. Quando uma criança pergunta de onde ela veio, ela não está querendo uma aula de biologia. O que vai dar sentido para a vida de uma criança não é ela saber que veio de uma corrida de espermatozóides.

- A experiência do comunicar. As fábulas com animais se comportando como homens: a necessidade do homem de se comunicar com todas as coisas.

- A polis forma-se da congregação de famílias num determinado local que vai exigindo uma administração maior. Assim se forma uma aristocracia: é um dado da realidade, não uma forçação de barra. As colônias gregas. Tentativas de governo mais social e tentativas de tirania. Mesmo os tiranos se baseiam (e abusam) num discurso, como Pisístrato. Acabada a tirania, muitas famílias queriam reaver suas propriedades confiscadas. Para isso, é necessário um tribunal. Não havia nenhum especialista em defesa. E então começa uma demanda por esse "artista".

- O surgimento de instrumentos humanos dentro da sociedade humano, o aumento da série de intermediários entre a autoridade e a ação efetiva nasce junto com a necessidade retórica. Há um distanciamento entre o autor (daí "autoridade") e a ação efetiva. Então é preciso a palavra, para convencer o agente efetivo.

- Nós mesmos temos que nos convencer de várias coisas. Como disse Marcus Boeira, a consciência é o primeiro tribunal que existe. É como se com a complexificação da sociedade houvesse uma imitação de uma ordem que já existia na alma humana, que também é repleta de intermediários internos. Às vezes é mais fácil se comunicar com um próximo do que consigo mesmo. É um grande drama.

- Homens livres, maiores de idade, com uma certa renda, é que são os debatedores desse mundo grego. Não é qualquer discurso retórico que ganhará legitimidade aí. Quem articula isso, fazendo a cidade sentir-se unificada num só ideário, é Péricles - embora tenha havida uma tentativa anterior mal-sucedida com Sólon. O discurso para o homem livre consciente da sua liberdade - não quer anestesiar os homens livres para a verdade, que é o desejo do populista. 

- Mas como fazer surgir mais pessoas como um Péricles? Tísias e Corax. Os primeiros manuais de retórica. Discursos de Péricles estão em Tucídides. 

- 427, Górgias, ganha até um diálogo platônico. Parece que sua intenção já condensava essa tentativa de manipular as estruturas políticas da polis. No "Górgias", Platão defende a verdadeira retórica, estabelecendo uma série de pressupostos para a ação da palavra. Hoje em dia só sacamos a "retórica" como esforço de convencimento do outro, independente do fim. Mas a verdade é que essa é uma necessidade da própria comunicação humana. Que alguns usem-na viciosamente não impugna a matéria. Como dizia Sócrates: todo homem, por pior que seja, sempre busca um bem. Mesmo o suicida busca um bem: por mais que haja aí uma contradição no nível lógico, não há uma contradição humana. O homem é o animal que ainda não se acostumou ao Logos, aquilo que unifica todas as coisas.

- Então é claro que o homem sempre comunicará com algum ruído. O fenômeno da tentativa de convencimento é da própria estrutura da linguagem. O próprio Platão, que tanto dizem ser contrário ao ensino literário e às artes, o Platão que vai falar na República contra os poetas, é o sujeito que tem uma das literatura mais brilhantes de todos os tempos, com seus diálogos. É como se ele percebesse o drama da linguagem, que não poder ser absolutizada, mas tratada como ferramenta.

- Da mesma forma, as artes liberais não devem ser absolutizadas; elas se fundam sobre a busca pela verdade. É esta que fundamenta aquelas. 

- Gramática, lógica e retórica estão intimimamente ligadas, mais do que o quadrivium. Elas refletem a imagem usada por Clístenes na primeira palestra. O círculo, a comunicação constante. É impossível se falar de gramática sem se falar de expressão retórica. Quando Arthur explicou a Metamorfose do Kafka, ele de certo modo falou de recursos retóricos, p. ex., a imagem da mosca.

- A linguagem, como símbolo, sempre aponta para além dela mesma. Os victorinos da Idade Média diziam que existem dois livros: antes do livro sagrado, existe o livro da vida, que é a realidade. Os antigos tinham muito mais apurada essa percepção de que tudo à nossa volta remete a outras coisas.

- A retórica é como um movimento de saída de um sujeito que compreendeu certas verdades e coisas. Todo sujeito que se expressa começa se expressando a si mesmo, no palco da sua consciÊncia. Todo homem é um descobridor da palavra e ao mesmo tempo um recomunicador da palavra. Entender retoricamente o homem é entendê-lo como fonte ou espelho de verdades.

- O discurso interior. A prudência. Como empregar a retórica aqui? Falar sozinho é uma maravilha. É preciso fazer esse exercício, seja em voz mental ou alta. O parlamento da alma. Certas conversas são intrinsecamente perversas, é o que os mestres espirituais chamam de tergiversar com o pecado. É o momento em que o rei fecha o parlamento. É a hora de jogar uma água fria, se atirar nos espinhos, etc. As conversas lícitas: pegar ou não este emprego, ficar ou não com esta pessoa, etc. As pessoas se enganam inventando sofismas contra argumentações óbvias que surgem em sua alma. Botar cabeça no lugar de perna, etc. O bom retórico deve começar por si. Cada uma dessas conversas é morrer um pouco e nascer um pouco. Eis a vida que temos de enfrentar.

- A ordem dos 10 mandamentos: ninguém rouba nada de ninguém sem primeiro cobiçá-las. Ninguém de repente tropeça no ato sexual com a mulher do próximo. Há uma ordem, um discurso. A desordem interna foi externalizada em desordem externa.

- A facilidade de falar que temos nos tempos atuais. A linguagem nasce sacra, segundo Rosenstock-Huessy. É a poiesis, o fazer-se, o colocar no ser o que era não-ser, é o que nos coloca como imagem de Deus, o criador exemplar. Isso nos traz uma responsabilidade tremenda, sobre a qual nem mais refletimos. 

- Nós condensamos muito rápido imagens fugazes que formamos na mente, ou que nos são forçadas desde fora. A inteligência no homem é um processo orgânico. Há um início, meio e fim. É como a digestão da vaca, símbolo da paciência.

- Pior ainda: esquecemos que esse processo necessariamente se dá em outros agentes humanos. Precisamos ter noção das histórias das palavras, dos conceitos. Uma alma imortal um dia pensou que determinada palavra designava determinada natureza. "Eidos" vem do grego "idein", ver. Isso já exibe a relação que os gregos viam entre visão e verdade, como aparece no início da Metafísica de Aristóteles e na República de Platão.

- "Fedro" e o mito do cocheiro (a alma) e seus dois cavalos, um indomado e o outro obediente, que nos carregam pela realidade. O esforço do homem é retornar para o super-ouranos, o supra-céu, de onde ele caiu em sua existência física. E não é por acaso que nesse diálogo esse mito vem um pouco antes do assunto da retórica: a retórica tem como fim uma verdade na alma alheia, não à verdade enquanto tal, inteligida no próprio sujeito. Falar em verdade retórica é falar em uma verdade expressa para alguém. O receptor terá que captar o discurso como apontando para algo além do discurso. A verdade de quem expressa permanece naquela alma que exprime. 

- As três artes do trivium são como o sol (gramática), seus raios (lógica) e seu calor (retórica). 

- Todo receptor faz um esforço de investigação sobre as palavras do seu interlocutor.

- O que é análogo a isso também no cotidiano? A contemplação de uma obra de arte. Nos perguntamos: quem pintou isso? ou de onde vem essa idéia? A beleza da obra de arte nos remete à sua causa, à sua origem. Eu não fico abismado com a tinta; as várias tintas congregadas de uma determinada forma me convidam para ir além do que estou vendo. A beleza é a porta para a verdade. É isso o que quer dizer "transcender."

- Não é por acaso que no simbolismo astrológico, em que cada planeta corresponde a uma arte liberal, a Retórica esteja associada a Vênus, a deusa da beleza. O brilho de Vênus é convidativo, doce. Como o azul, que nos convida a penetrar naquilo.

- Por isso que o discurso tem que ser belo, e por isso que devo me adequar ao sujeito ao qual me dirijo. A verdade não tem como cair como uma pedra sobre cada sujeito.

- A dureza da linguagem acadêmica, o abuso de conceitos prontos, sem penetração efetiva na beleza das coisas. 

- Para Aristóteles necessariamente a verdade tem que fundamentar a retórica, afinal ele fala do verossímil, do provável, e não há probabilidade onde não há certeza, não há reflexo onde não há luz.

- Precisamos reaprender a contemplar as coisas. As artes liberais não são meras disciplinas. A retórica é o plano da expressão.

- O grande mestre da Retórica é Jesus Cristo. Condensava em todos seus ditos o maior número de tipo de almas e vidas.

- Oratória x Retórica. A oratória é meramente uma ferramenta da retórica. É a arte do bom uso da palavra falada, à qual não pode ser reduzido todo o campo da expressão.

Pergunta: Sofística é degeneração da retórica?
- Tomando no sentido técnico, um sofisma é um silogismo vicioso, com uma aparência de verdade. É difícil saber quando é má intenção, quando é simples torpeza, mas há um sofista quando há um sujeito que busca apenas um bem útil ou aprazível mediante o discurso.

Pergunta: e a erística?
- Assim, como o sofisma é o silogismo corrompido, a erística é a dialética corrompida. O debater pelo debater, ou para meramente vencer o inimigo.
Pergunta: e a questão de vencer e não levar? o público.
- Com o público degenerado, é claro que é mais fácil pro sujeito levar ao aplauso deles. É como sua alma, que estando totalmente desordenada e entregue às paixões, não será convencida pelo mais correto dos discursos. É importante saber a qual público você está se dirigindo.

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