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quinta-feira, 15 de janeiro de 2015


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Hayek e o uso circunspecto dos modelos econômicos

A filosofia da ciência é uma ferramenta imprescindível para que se faça um bom uso da teoria econômica. Sem conhecimento dessa área, o analista com frequência deriva das teorias conclusões falaciosas a respeito de política econômica. A desconsideração de sutilezas metodológicas impostas pelas peculiaridades inerentes ao objeto de estudo da economia leva, em particular, a crenças errôneas sobre a possibilidade de que uma agência governamental possa conhecer as informações necessárias para que ocorra uma intervenção satisfatória nos mercados. Nos próximos parágrafos, exploraremos algumas teses metodológicas de Hayek e outros autores, com o objetivo de ilustrar algumas falácias típicas que a incompreensão dessas ideias tende a gerar.
Hayek é um herdeiro de uma tradição metodológica da qual pertencem John Stuart Mill e Ludwig von Mises. Tradição essa que enfatiza o caráter necessariamente abstrato da teoria diante do elevado grau de complexidade dos assuntos econômicos. Hayek define complexidade a partir do número mínimo de variáveis que devem ser levadas em conta para que tenhamos uma explicação satisfatória de um fenômeno [1]. Ao contrário da física, área na qual encontramos facilmente fórmulas que relacionam apenas algumas grandezas e que, no entanto, são capazes de fazer previsões acuradas, nas ciências sociais isso nunca ocorre. Mill [2] nota que a complexidade dos fenômenos sociais exigiria a observação de incontáveis variáveis, sendo que a maioria delas não pode ser controlada pelo cientista social. Ao contrário do empiricismo indutivista que reconhece nas demais ciências, Mill defende o caráter necessariamente dedutivo e abstrato do conhecimento econômico. Suas hipóteses operam em um nível alto de generalidade. Por exemplo, para o economista é útil a afirmativa genérica de que o homem busca o melhor a partir do menor sacrifício, mas dificilmente serviria para alguma coisa partir da observação de que um empresário em particular, em certo momento e local, tinha um objetivo especificamente determinado. A partir de um conjunto de hipóteses genéricas e abstratas como a do exemplo, o analista deduz apenas leis de tendências e nunca previsões precisas.
Por mais que cientistas de inclinação positivista tentem minimizar essas diferenças e identificar ciência em geral com previsão acurada, o fracasso do fluxo contínuo de físicos que migram todo ano para a economia na esperança de aplicar o pretenso método correto a essa área, sem no entanto obter sucesso, corrobora a proposição tantas vezes enunciada por Mises [3]: não existem constantes na Economia, como aquelas existentes nas ciências naturais. Em vez de concluir erroneamente, como muitos, que a falta de relações empíricas estáveis entre variáveis econômicas implique alguma forma de historicismo, Mises, partindo do subjetivismo austríaco, mostrou como os fenômenos sociais podem de fato ser explicados dedutivamente a partir de poucos princípios de caráter bastante geral, relacionados com a lógica da ação humana proposital. Para esse autor, esses princípios básicos são aplicáveis sempre, ao passo que hipóteses mais específicas, de origem empírica, geram conhecimento de valor apenas histórico: embora toda escolha possa ser descrita em termos de comparação do valor de uma via de ação com seu custo de oportunidade, a mensuração da elasticidade-preço da demanda por um bem é apenas um dado relevante para um determinado local e instante no tempo.
Hayek, seguindo essa tradição, nota que as teorias sobre fenômenos complexos, como a teoria econômica, têm caráter necessariamente “algébrico” [4], ou seja, é impossível de forma proveitosa substituir as variáveis da teoria por valores concretos, obtidos por medição. Tudo que se pode almejar, para o autor, é fazer previsões de padrões que relacionam os poucos elementos típicos do fenômeno estudado, já que as configurações específicas desse dependem de uma infinidade de fatores, muitos deles de natureza subjetiva, não observáveis, como preferências e expectativas. Keynes compartilha essa opinião, afirmando que a tentativa de preencher com valores reais as variáveis de um modelo destrói sua utilidade como modelo, pois este perde sua generalidade diante da falta de constância das configurações particulares dos objetos de investigação econômica [5]. Temos assim autores tão diferentes como Mill, Mises, Keynes e Hayek compartilhando a crença metodológica que afirma o caráter necessariamente genérico e abstrato dos pressupostos da teoria econômica, em contraste com a extrema riqueza de detalhes e complexidade de suas contrapartidas no mundo real.
Esses pressupostos da teoria, no entanto, além de obtidos por introspeção e não por observação, não podem ser testados empiricamente se forem interpretados da maneira abstrata e geral, como fizemos acima. A mentalidade positivista que domina a teoria moderna, por outro lado, em sua busca pela verificação empírica dos princípios da economia, tende a interpretar os mesmos princípios de forma mais específica, concreta. Dessa maneira, a afirmação de que no curto prazo a curva de custos médios tem forma de U significa apenas, na interpretação abstrata, que dado um tamanho de planta, é muito caro produzir seja uma única unidade do bem, seja toda a produção mundial, de forma que existe uma quantidade produzida intermediária que resulta em custos menores possíveis. Ainda assim, nessa ótica, minimizar custos, lembra Hayek, é uma batalha diária a ser travada pelo empresário, dado o infinito número de fatores em constante mudança que influenciam a magnitude dos custos esperados, como as expectativas de mudanças nos preços dos fatores produtivos disponíveis no local e no período. O economista ortodoxo, por outro lado, ao postular uma função de produção específica, tende a perder de vista a complexidade do fenômeno estudado, imaginando que existe uma estrutura de custos fixa e dada, facilmente obtida via acesso às planilhas de gastos da firma. Sob esse ponto de vista, inevitavelmente o aspecto empresarial da administração da firma rapidamente desaparece da análise, substituída pela crença no caráter meramente rotineiras das atividades administrativas.
Neste ponto, o economista ortodoxo inevitavelmente invoca o artigo metodológico de Milton Friedman [6] - tipicamente o único da área que conhece - notando ironicamente que todo modelo é necessariamente uma simplificação. A invocação desse truísmo raramente é acompanhada pela não menos evidente observação de que qualquer ferramenta teórica é adequada para explicar apenas um conjunto de problemas e não todos eles, de forma que certas simplificações são legítimas em alguns usos, mas enganadoras em outros. Hayek, em inúmeras ocasiões em sua carreira de economista, se deparou com os erros derivados do mal uso da teoria. O abandono da interpretação “algébrica”, em particular, faz com que a complexidade do fenômeno estudado seja perdida de vista. Isso, por sua vez, se reflete na confusão entre a natureza do conhecimento do economista, por um lado, e do agente econômico, por outro [7]. O conhecimento do primeiro, como vimos, é genérico e de natureza abstrata, ao passo que o conhecimento do agente é concreto, tendo que lidar com todos os complexos detalhes do mundo real.
Desse modo, é legítimo o uso pelo teórico da noção formal de função de produção, que contém conceitos genéricos, como a ideia de que a produção de um bem exige quantidades mínimas de fatores produtivos ou que em geral enfrentamos retornos decrescentes desses fatores e outras informações do gênero. O conhecimento do agente, por outro lado, como mostra Hayek, é de natureza concreta, referente às “circunstâncias particulares do tempo e lugar” e, em larga medida, tácito e inarticulado. Supor que os agentes do mundo real trabalhem com as funções emprestadas da teoria, porém, induz o candidato a planejador à falsa ilusão a respeito da complexidade da tarefa a que se propõe. Um autor sofisticado, como o prêmio nobel Leonid Hurwicz [8], por exemplo, acreditava que poderia resolver o problema hayekiano de transmissão do conhecimento disperso entre os agentes por meio de um mecanismo alocativo segundo o qual as firmas transmitiriam a um órgão de planejamento central os coeficientes de suas funções de produção Cobb-Douglas! Neste texto exploraremos dois exemplos de erros derivados da confusão entre conhecimento teórico e prático: o primeiro relativo a regulação de monopólios e o segundo referente a teoria de comércio internacional.
Na sala de aula, é perfeitamente legítima a prática do professor de supor que conheça, como um deus onisciente, as curvas de custo e de demanda. Com isso, ele pode mostrar como no monopólio é possível a existência de lucro extraordinário ou mostrar como, sob competição, existem forças que fazem com que o preço não se afaste do custo médio ou ainda explicar as forças que levam as firmas a adotarem suas escalas ótimas de produção. Os problemas ocorrem, porém, quando o mesmo professor passa a acreditar que tais curvas refletem os dados do mundo real. Somos então expostos a várias alternativas regulatórias: o ponto eficiente (a demanda cruza o custo marginal), o ponto que reduz o peso morto sem exigir subsídios (preço igual a custo médio), taxas pigouvianas que refletem os “custos sociais” não levados em conta pela firma e assim por diante. Nesses casos, invariavelmente, silencia-se diante da pergunta feita por Hayek na década de 30 do século XX: como o regulador/planejador/empresário conhece os custos que prevaleceriam sob competição se não for permitido o processo competitivo de descoberta por tentativas e erros? A proposição hayekiana que vê a competição como um mecanismo de descoberta, razoável entre os leigos, é a ideia mais difícil de ser compreendida pelos economistas profissionais, que insistem em supor que conhecem informações que de fato desconhecem. Essa ilusão só pode ser nutrida mediante a crença de que o conhecimento prático do agente de fato é da mesma natureza do conhecimento abstrato do teórico.
O segundo exemplo de falha na compreensão das diferenças entre conhecimento teórico e prático, embora menos comum entre economistas, é bastante frequente entre pessoas que procuram derivar conclusões de política econômica a partir da teoria das vantagens comparativas do comércio internacional. Novamente, é perfeitamente legítimo da parte de David Ricardo, para expor o argumento, se colocar na posição de um deus onisciente e supor que ele conheça os dados do problema. O autor cria então um mundo com dois países (Portugal e Inglaterra) e dois bens (tecidos e vinho). Embora Portugal seja mais eficiente na produção dos dois bens, mesmo assim é mais vantajoso para os dois países que eles se especializem na produção do bem que tenham vantagens comparativas (Portugal é tão melhor na produção de vinho, que não pode se dar ao luxo de deixar de produzi-lo para confeccionar tecidos, tendo então “vantagens comparativas” na produção do vinho).
Quantas vezes, porém, devido à incompreensão a respeito da natureza abstrata do conhecimento teórico, ouvimos alguém defender a opinião segundo a qual essa teoria implicaria que o Brasil deva se especializar na agricultura e abandonar a produção industrial? Aqui a confusão entre o conhecimento teórico e prático é óbvia: no mundo real, naturalmente, não existem apenas dois setores, mas milhões de produtos classificáveis em setores diferentes. Qual é a probabilidade de que as vantagens comparativas de um pais sejam criadas e/ou descobertas todas elas no setor agrícola ou industrial, por mais que hajam efeitos de transbordamento entre firmas do mesmo setor? Se um engenheiro escreveu sua tese sobre um um certo polímero e cria um grupo de pesquisa no Brasil sobre o assunto, podem surgir vantagens comparativas nesse setor, ao mesmo tempo que em diversos bens agrícolas.
Para o argumento ter sentido, seria necessário que o conhecimento dos agentes coincidisse com o conhecimento do analista, de forma que existissem de fato apenas duas alternativas no mundo real ou ainda que apenas o analista conhecesse os custos relevantes, de forma a impor sua opinião por meio de políticas públicas. Essas hipóteses, naturalmente, não têm sentido se lembrarmos do caráter abstrato e geral do conhecimento teórico e com certeza não fazem parte do argumento original da teoria. A especialização apenas em um setor, aliás, tende a ocorrer naqueles países cujos governos, movidos pela “pretensão do conhecimento” de que fala Hayek, favorecem durante longos períodos certos “setores” à custa dos demais e não em países nos quais as forças de mercado fazem com que a cada dia incontáveis bens e serviços diferentes sejam recompensados e punidos pelo sistema de lucros e perdas. A única maneira de descobrir quais são as vantagens comparativas é através do teste de viabilidade econômica em um mercado livre. Para quem acha o contrário, ou seja, para quem acredita conhecer os detalhes existentes na economia melhor do que todos os outros agentes, faça o teste da proverbial pergunta americana: “Se você é tão esperto, por que não é milionário?”
* Publicado originalmente em 22/08/2011.

Notas
[1] Hayek, F.A. (1967) The Theory of Complex Phenomena, in Studies in Philosophy, Politics and Economics, London, UK: Routledge & Kegan Paul.
[2] Mill, John Stuart, Essays on Some Unsettled Questions of Political Economy. 1874. Library of Economics and Liberty.
[3] Mises, L. Ação Humana. Rio de Janeiro: Instituto Liberal. (versão online)
[4] Ver o mesmo artigo citado acima, nota de rodapé 14.
[5] Keynes, J. M. Carta a Roy. In Hausman. D.M. The Philosophy of Economics. Cambridge University Press, 1994.
[6] Friedman, M. The Methodology of Positive Economics. In Hausman. D.M. The Philosophy of Economics. Cambridge University Press, 1994.
[7] Hayek, F.A. (1945) “The Use of Knowledge in Society” American Economic Review, XXXV, no. 4, pp. 519-30.
[8] Hurwicz, L. (1973) “The Design Mechanisms for Resource Allocation”, The American Economic Review 63, p. 1 -30.
 Matéria extraída do website do Instituto Ordem Livre

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