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segunda-feira, 23 de março de 2015

Filosofia, Religião e Mercado (I)

FILOSOFIACULTURARELIGIÃO

Por que tratar do tema “FilosofiaReligião e Mercado”? Não seriam simples produtos de alguma sociedade em questão? Ritos religiosos ou até mesmo sistemas de crenças inteiras não estariam embasados, tanto quanto filosofias, esquemas de trocas, valores e compras, em simples funções ou construções sociais? Uma grande parte da academia acredita que sim.

Por mais que o funcionalismo já tenha sido refutado – era “moda” na Inglaterra no começo do século XX –, ecos e descendentes diretos da sociologia funcionalista ainda existem no mundo atual. Tudo o que existia na sociedade era por conta de alguma função. Se há médicos na Londres atual e curandeiros existem em algumas regiões nos vales do Peru, isso se deve a uma função social. A sociedade, portanto, deteria uma “mão invisível” que regeria seus próprios mecanismos internos – Não pretendo argumentar de maneira fixa contra o funcionalismo, exibir todas as visões funcionalistas existentes, ou até mesmo negar todo e qualquer discurso funcionalista, todavia, é importante exibir certos fatos.

A religião estaria, assim como o mercado, sujeita a sociedade. A filosofia ou diferentes correntes filosóficas também. Todo e qualquer discurso existiria por conta de uma função social. Mas qual é a necessidade de mostrar tal visão? Seria a interferência da religião no mercado (ou do mercado na religião) apenas um mero ato de necessidades sociais que teriam, em certas épocas, suas funções? Se assim for, a relação de ambos não passaria de uma afinidade normal entre dois sistemas (ou vários sistemas que toquem no religioso, no filosófico e no mercado) sociais e os frutos de tal relacionamento seriam, em suma, o mesmo esquema e teriam o mesmo meio, motor e fim. Mas analisemos para além dessa visão.

Mesmo que o funcionalismo tenha, em seu âmago, caído por terra, tal pensamento é um eco funcionalista ou, caso algum tenha o mesmo núcleo argumentativo, um filho bastardo de tal corrente de pensamento.
A filosofia, entrementes, entraria no mesmo barco. Sua existência e herança grega não seriam frutos de uma árdua “jornada” através dos milênios e culturas, e sim modos que as sociedades durante milhares de anos arranjaram para defini-la, justifica-la e pratica-la. Com isso a teologia e, os princípios básicos para uma economia liberal estariam sujeitos ao mesmo ponto; quer os Padres da Igreja, ou os economistas ingleses, tudo seria de sua época, de sua cultura, de seu lugar. O problema de um pensamento assim é que ele está correto, porém, o modo como é apresentado, isto é, de maneira total (ouso dizer, inclusive, de maneira cosmológica, uma vez que abarca todo o conhecimento humano, o que afeta as concepções cosmológicas) é um erro crasso.

Afirmar que tudo vem de sua época, é se esquecer de que, se a mesma argumentação estiver correta, ela mesma tem a obrigação de ter coesão e congruência consigo própria – uma vez que depende de uma lógica interna para poder ser minimamente montada e expressada –, isto é, a ideia de que “cada pensamento tem sua época” é um pensamento de uma época, fruto de um mundo e uma cultura, mas qual seria a incoerência? O problema é que esta argumentação se predispõe a abarcar todo o contexto humano, ou seja: é uma tese atemporal.

Não há problemas em existirem teses atemporais, no entanto, para essa em específico, o problema é colossal. Ao se afirmar como atemporal, logo pétrea, não é apenas algo “de nossa época”. Consiste em um saber superior e, assim, acima dos demais, que ficariam presos aos seus tempos e sociedades. Aristóteles, por exemplo, estaria preso por seus preconceitos e cosmovisões, por isso que ele tem um pensamento de “sua época”, fechado e, portanto, com muitas incapacidades. Economistas entrariam no mesmo palco, assim como teólogos; só que a atemporalidade, neste caso, tem seu custo.
Se for um achado pétreo[1], o argumento-chave precisou ser formado. Para ser formada uma proposição tão grande assim, seriam necessárias ferramentas tão verdadeiras quanto a mesma proposição (ou acham que é possível construir um prédio com ferramentas de mentira?). A observação, a crítica, lógica, o princípio da evidência, a dúvida, etc., são essenciais para moldar tal tese, logo, elas também têm que ser, em suas circunstâncias específicas, pétreas, pois a teoria-mor do entendimento humano (esse filho bastardo do funcionalismo com o relativismo) é de caráter universal.

Pois bem. Onde são formados tais princípios? No passado. Mas se estão no passado, e ele é altamente necessário para construir o presente, a afirmação de que tudo tem “sua época” não vale. Os princípios os quais a teoria-mor[2] defende seriam a prova cabal para a incoerência da mesma; somos dependentes de conquistas passadas.
Onde o Mercado e a Religião entrariam nisso? Se o passado pode atingir verdades imutáveis[3], e talvez até mesmo universais, afetando umas as outras em termos de “buscas da verdade”, princípios religiosos podem ter afetado princípios econômicos de maneira decisiva para a formulação do liberalismo clássico, mas não só isso: tais princípios se veem extremamente agarrados ao liberalismo, de modo que sem estes, o liberalismo sucumbe.

Sem noções teológicas medievais, Locke, por exemplo, não poderia jamais “chegar à propriedade privada” e os direitos do homem. Locke usa argumentos religiosos para comprovar sua tese.
Por mais que cosmovisões realmente possam atrapalhar ou até mesmo fazer sucumbir todo um trabalho filosófico, é um erro fatal crer que todos os trabalhos filosóficos são sinônimos de cosmovisões de suas épocas e culturas. Platão não é um reflexo da filosofia anterior a ele, ou da contemporânea; o aluno de Sócrates é um resultado dela, e como tal, difere por individualidades de seu pensamento e obra com o resto. Como essa individualidade é possível? Não existe possibilidade de ser algo totalmente comunitário, completamente cultural. No caso de Platão, seus trabalhos lançaram a filosofia a um nível sem precedentes, “causaram” a filosofia aristotélica, influenciaram a estoica, a teologia, política, etc. Muitos dirão que a própria quantidade de pensamentos diversos seria uma prova do “relativo”, mas esse relativo teria dependências que remontariam ao exemplo que dei da tese-mor. A individualidade consegue chegar até verdades pétreas, estas que darão base para alcançar outras em outros pontos.

Com base nisso, pode-se chegar à conclusão que sem as verdades alcançadas pela filosofia grega, não haveria espaço para a teologia, e também não haveria espaço para a economia liberal clássica. Uma negação total é impossível para se montar qualquer estrutura de pensamento[4], uma vez que faria o pensador a retornar as mesmas indagações (todas) que o primeiro teve. Seria como negar toda a filosofia e ciência para recomeçar tudo da imaginação mito-poética, e desta para as primeiras explicações antropomórficas da natureza.

Sem a ideia de uma alma humana, uma entidade que detém identidade, requer uma justiça que não seja determinada por um meio social, mas sim por algo metafísico, que transcenda as sociedades. A Verdade de Deus é necessária para a verdade dos homens, mas não por conta de um capricho cultural, ela seria necessária a nível natural (usando o significado clássico da palavra “natural”) para a modelagem do sistema do mercado, ao próprio conceito de honestidade e sobriedade em vários temas – filosofia pagã também chegou a tal ponto, porém apenas os conceitos teológicos cristãos puderam fazer tal característica chegar a um patamar deveras transcendente. Cícero, por conta do conceito de justiça, imaginara uma espécie de purgação e paraíso, todavia o fenômeno do cristianismo, com suas diferenças e novos conceitos, aprofunda e intensifica tal fator.
O princípio da justiça divida, da alma humana e do ser alcançados pela teologia enxertam os princípios básicos do liberalismo econômico. Mas quanto a essa dependência, e se ela vale para o indivíduo ou apenas para o sistema liberal, é tema para a segunda parte deste artigo.

NOTAS
[1] Mesmo que quem a proclame não creia nisso, toda a configuração de tal tese depende irreversivelmente de tal fator, a não ser se ela se autodominar incapaz, o que levaria, da mesma forma que aceitando a lógica no âmago do argumento, a ilegitimidade de uma proposta com tais proporções.
[2]  E eu realmente espero que captem minha ironia.
[3] É triste utilizar o termo “verdades imutáveis”. Trata-se de um pleonasmo, uma vez que é redundante dizer que uma verdade não muda, mas é preciso na triste mentalidade atual.
[4] Sto. Tomás de Aquino, por exemplo, não aceitava todo o discurso de Aristóteles, porém tampouco o negava totalmente. O santo é dependente da filosofia aristotélica, pois sem ela não existiria seu trabalho, e o mesmo vale em relação a Aristóteles e Platão, ou até mesmo de Einstein para com Sócrates, de Smith à Locke, do Empire State as construções no paleolítico, etc. Somos dependentes do passado. O seu ontem governa seu hoje, uma vez que toda a sua vivência e experiência é passada, e o mesmo vale para a humanidade.

*Hiago Rebello está cursando o terceiro período em História, na Universidade Estadual do Rio de Janeiro. 

Sobre o autor

Instituto Liberal
Instituição sem fins lucrativos
O Instituto Liberal é uma instituição sem fins lucrativos voltada para a pesquisa, produção e divulgação de idéias, teorias e conceitos que revelam as vantagens de uma sociedade organizada com base em uma ordem liberal.
Matéria extraída do website do Instituto Liberal

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