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sábado, 28 de março de 2015

O filme “Equilibrium” e a cultura da liberdade

equilibrium1Tenho tido grande interesse recente em distopias – para quem não sabe, são cenários conceituais que levam perspectivas negativas de futuro social a pontos extremos. As diferentes distopias exacerbam variados aspectos da natureza humana ou do comportamento dos indivíduos em sociedade, levando suas piores consequências à sua maior expressão imaginável. Distopias são uma forma didática de refletir, com modelos objetivos, conquanto imaginários, sobre os caminhos e descaminhos que trilhamos.

Fazendo mais uma incursão às riquezas simbólicas que o cinema pode oferecer, desta vez percebemos uma forte crítica ao totalitarismo e ao coletivismo, com influências de obras anteriores e seminais na matéria (como os livros “1984” e “Admirável mundo novo”), e provavelmente influenciando produções cinematográficas posteriores (como o recente “O Doador de Memórias”, de temática parecida), no filme de ficção científica e ação “Equilibrium”, de 2002.

A trama americana, do diretor Kurt Wimmer, estrelada por Christian Bale, se passa em um futuro indeterminado, depois de uma Terceira Guerra Mundial, ocorrida em circunstâncias não explicadas, nos primeiros anos do século XXI. Os impactos dessa guerra foram colossais, e um grupo de sobreviventes percebeu que a humanidade não seria capaz de resistir aos efeitos de uma quarta guerra.  Algo precisava ser feito. A solução encontrada foi diagnosticar a fonte primária de todas as disposições belicosas do homem e erradicá-la de uma vez por todas. A conclusão “genial” desses “engenheiros sociais” foi que a origem do mal estava na capacidade humana de “sentir”, de ter sentimentos. Desenvolveram então uma droga que, consumida regularmente, com horários controlados, suprimiria todo e qualquer sentimento. Não mais ódio, raiva, orgulho, inveja, medo, ansiedade, cobiça, desejo. Entretanto, não mais, também, amor, amizade, fraternidade, carinho, paixão, entusiasmo, alegria, qualquer dessas coisas que estamos acostumados a apreciar. Estabeleceu-se um Estado totalitário chamado Libria, em que, subordinados às orientações e comandos centrais de um líder, o “Pai”, os seres humanos vivem apenas para manter a estrutura funcionando, utilizam roupas semelhantes e são incapazes da rebeldia, mas também incapazes de sentir tudo aquilo que, em primeira e última instância, nos torna humanos.

O protagonista, John Preston, é um dos “sacerdotes” mais dedicados do Clero Grammaton, a instituição suprema criada para procurar e erradicar a “resistência” – um grande grupo clandestino que se propõe a enfrentar a ditadura de Libria. Ele cumpre fielmente esse papel, permitindo mesmo que matassem sua esposa sem manifestar o menor remorso, até que para de tomar sua dose. Então, diante da experiência inédita de sentir, vive o dilema inicial entre trair a ordem que viveu para defender e permitir que as sensações aflorem, ou permanecer fiel ao Pai.

O discurso religioso – com o exército do Pai sendo chamado de “Clero” e os oficiais superiores, de sacerdotes – pode ser compreendido como uma representação do sentido devocional com que os regimes totalitários costumam ser encarados, a partir da massiva propaganda governamental. A ideologia oficial da Coreia do Norte, a Juche, é um excelente exemplo. No caso de Libria, no entanto, essa “devoção” é fria e maquinal, dado que os sentimentos estão inteiramente ausentes.
Libria é a absoluta anulação de toda a subjetividade humana. Em determinado momento da história, uma das integrantes da resistência, presa, é interrogada por John Preston, e pergunta a ele: “por que você vive?”. A resposta é titubeante; ele sabe dizer apenas que existe para manter a ordem social estabelecida, sem guerras e conflitos, sem sequer o risco de elas ocorrerem – posto que sem diferenças, sem a possibilidade de dar vazão às individualidades, às subjetividades, aos caracteres pessoais, os conflitos desaparecem. A personagem insiste: “para quê?”.

O filme não busca responder à questão sobre qual é o propósito da existência humana. Para essa, cada um que abrace ou não os sistemas com que mais se identifica. Mas mostra o que NÃO é esse propósito, de maneira alguma. O que acontece em Libria, em que todas as riquezas da tradição cultural de nossa civilização – produzidas pelas mentes inventivas, o que só é possível em ambiente de diversidade e pluralidade – são suprimidas, é que os seres humanos, mergulhados em um mar totalitário, não vivem verdadeiramente. Eles apenas existem. Uma existência condenada ao atraso, que garante a continuidade da mesquinha dominação de uma classe seleta, sustentando indefinidamente sua posição de governo.

Um dos elementos mais interessantes do filme é a perseguição implacável a qualquer objeto de arte, qualquer objeto colorido ou chamativo, qualquer decoração, qualquer livro clássico, ou até mesmo qualquer animal de estimação, que possa lembrar à humanidade que um dia os sentimentos e as diferenças deram origem a um longevo patrimônio cultural, que sedimentou os progressos e as riquezas em todas as esferas da existência. E que a pluralidade, capaz de potencializar esse processo e a troca de experiências e referências, só é concebível em regime de liberdade. Já no começo do filme, o Clero Grammaton se dispõe a incinerar um original de Da Vinci sem hesitação. Apesar de muitos cantores, escritores e quejandos infelizmente paparicarem os regimes tirânicos de esquerda, não são poucos os casos de perseguição a artistas em regimes comunistas.

“Equilibrium” nos mostra que, se há o grave risco de fazermos as escolhas erradas e até mesmo nos autodestruirmos se mantivermos nossas liberdades, é seguramente desastroso viver sem elas. Entregá-las a uma liderança paternalista e centralizadora, que decide por nós o que é “melhor”, é abdicar de todas as inúmeras possibilidades que somente elas nos podem propiciar – e sem as quais, francamente, é preferível mesmo não existir.



Sobre o autor

Lucas Berlanza
Acadêmico de Comunicação Social, com habilitação em Jornalismo, na UFRJ, e colunista do Instituto Liberal. Estagiou por dois anos na assessoria de imprensa da AGETRANSP-RJ. Sambista, escreveu sobre o Carnaval carioca para uma revista de cultura e entretenimento. Participante convidado ocasional de programas na Rádio Rio de Janeiro.
Matéria extraída do website do Instituto Liberal

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