segunda-feira, 6 de abril de 2015

Os caminhos da vida

vendedor de picolé
Sempre que volto à casa de minha mãe e à cidade onde fui criado, reencontro tanto memórias quase perdidas quanto pessoas das quais não me lembrava. Memórias e pessoas dos tempos de infância, de adolescência, de juventude e de faculdade. Ao contrário da crença socialista de que a origem social e até a cor da pele determinam o futuro das pessoas quando a sociedade está sob a “opressão capitalista”, o que constato em cada uma dessas visitas é o quanto os caminhos de amigos, vizinhos, colegas e conhecidos foram abertos a partir de escolhas e de esforços particulares, refletindo o perfil intelectual de cada uma dessas pessoas, na maioria dos casos levando-as a destinos surpreendentes.
Como sempre digo, a melhor forma de entender o mundo ao redor é direcionarmos o olhar para nós mesmos. Não foram livros sobre liberalismo que me possibilitou enxergar os absurdos do discurso socialista que resume o homem a um ser abominável quando rico, admirável quando pobre e confiável quando simplesmente se diz de esquerda. A literatura apenas me ajudou a fundamentar histórica e teoricamente o argumento. Minha repulsa ao socialismo sustenta-se na realidade de que cada pessoa é o que é independentemente de sua classe social, da cor de sua pele, de sua inclinação sexual ou de suas convicções religiosas ou ideológicas, o que torna absurda qualquer afirmação de que o destino de cada pessoa, numa sociedade relativamente livre, lhe é imposto logo ao nascer.
Da parte de minha mãe, meus avós nasceram em famílias ricas, proprietárias de fazendas de gado no sertão nordestino mas, antes de terem idade escolar, perderam tudo na grande seca da década de 1930. Meu avô nunca chegou a entrar numa escola. Analfabeto, deixou o sertão aos 18 anos para tentar a vida no “mundo”. Aprendeu a ler sozinho. De bicos em bicos conseguiu se estabelecer como comerciante de porta em porta no interior de Minas Gerais, o que lhe proporcionou constituir família, encomendar a um arquiteto o projeto de uma casa no melhor bairro de Belo Horizonte, onde criou 6 filhos, todos educados na melhor escola particular da cidade. O destino dos filhos: Um se tornou inventor de equipamentos para criação de pássaros, o outro se tornou apicultor e o terceiro vai e volta entre a profissão de protético e a prática de alguns crimes. Das três mulheres, uma se tornou pedagoga e psicóloga respeitada, outra se tornou uma advogada picareta e a última dona de casa.
Da parte de meu pai, meus avós nasceram em famílias ricas ligadas à política e à produção de laticínios. Apesar disso, todos os cinco filhos tiveram que trabalhar duro para construir a vida. Nenhum deles conseguiu atingir a riqueza de seus avós, mas todos conquistaram, por si mesmos e em áreas diferentes, vidas confortáveis.
Meus pais começaram a vida conjugal sem nada, alugando kitnets para morar. Ele, engenheiro, chegou a fundar e fazer crescer diversas empresas, mas acabou perdendo tudo. Hoje, dedica-se a cuidar de duas pequenas e decadentes pousadas. Ela, formada em pedagogia, manteve uma pequena escola de ensino fundamental por quase 30 anos, sempre à beira da falência, até decidir entrar na faculdade de psicologia aos 50 anos de idade. Formou-se, vendeu a escola e hoje é uma psicóloga disputada.
Dos três filhos, o mais novo se tornou um prodígio da informática, muito bem remunerado na empresa onde trabalha há quase 20 anos; minha irmã, formada em história, tem uma vida mais difícil enquanto o sujeito que vos escreve optou por viver equilibrando-se na corda bamba da vida pintando telas e paredes.
Convivemos bem de perto com uma família que também representa muito bem os diferentes caminhos que as pessoas tomam na vida, a despeito de suas origens e condições. Beth, mulher negra e pobre, nascida e criada numa favela, criou sozinha 4 filhos homens, todos no mesmo ambiente, sob as mesmas dificuldades, estudando nas mesmas escolas. Um se tornou proprietário de duas lojas de telefones celulares, o outro estacionou-se na posição de balconista, o terceiro é representante comercial e o quarto trilhou carreira no crime, tendo cumprido alguns anos de prisão por tráfico de drogas. Lembro-me agora de um amigo, loiro dos olhos azuis e de família de classe média, que também se inclinou para o crime, tendo sido preso por assalto a banco; e também de muitos conhecidos que da pobreza construíram vidas dignas e confortáveis enquanto alguns, da riqueza, reduziram-se à sarjeta.
Certa vez surgiu, em frente ao edifício onde mora minha mãe, um vendedor de coco. Sua história: cansado da miséria do interior de Goiás, saiu andando pelo mundo a procura de oportunidade, até chegar ao litoral, onde fez diversos bicos que lhe rendiam apenas o que comer. Um dia conseguiu uma caixa de isopor, um facão e R$ 5 (sim, foi apenas 5 reais!) emprestados de um amigo. Com isso, iniciou seu pequeno empreendimento. Ainda dormindo na rua, foi ganhando e juntando dinheiro até a prefeitura (ah, o Estado!) proibi-lo de vender coco no calçadão. Sem desanimar, conseguiu trabalho como servente e depois como pedreiro, passando a dormir nas obras até que, em menos de dois anos, conseguiu juntar dinheiro suficiente para comprar um terreno e construir sua própria casa. Quando o encontrei pela última vez, poucos anos atrás, ele já tinha uma pequena empreiteira que construía e reformava casas; trouxe suas filhas para junto de si enquanto seus irmãos prefeririam continuar na miséria, sobrevivendo à custa dos programas assistências do governo.
Lembro-me também de duas pessoas que começaram a vida como vendedores ambulantes. O primeiro foi meu cliente; em menos 10 anos, passou de camelô a proprietário de três lojas, duas delas em shoppings centers. O segundo foi meu patrão; em menos de 20 anos, de camelô se tornou um grande atacadista de frutas, tocando também outros negócios, incluindo a pousada onde trabalhei como recepcionista.
Apenas na feirinha do calçadão da praia onde minha mãe mora trabalham uma dúzia de pessoas que construíram suas vidas sem diplomas, sem carteira assinada, sem qualquer auxílio do governo além da permissão para trabalhar. O negão que vive de vender cachorro-quente mora num apartamento a uma quadra da praia, próximo ao sujeito que construiu sua vida vendendo doces numa banquinha de 60 x 90cm. “Alemão”, um dos vendedores de picolé mais antigos da praia, além de ter sua própria casa, ainda pode se orgulhar de ter educado duas filhas que hoje são profissionais respeitadas e independentes.
Esses são apenas alguns casos mais próximos a mim, pessoas que o conheço pessoalmente e sobre as quais tenho segurança para dizer que cresceram por si mesmas, por meio de seus próprios esforços. Infelizmente, para cada uma dessas pessoas, há muitas outras que não conseguiram progredir na vida porque simplesmente não tiveram talento e força de vontade. Cada indivíduo é responsável por suas vitórias e derrotas.
Finalizo citando o caso mais exemplar que conheço, o de um menino que estudava na escolinha de minha mãe. Dudu chegava para a aula se arrastando pelo chão, pois não conseguia andar sobre suas próprias pernas devido a uma paralisia cerebral. Ao seu lado vinha sua irmã, andando normalmente. Apesar das dificuldades, seus pais, mesmo tendo boas condições financeiras, se recusavam a lhe colocar numa cadeira de rodas. Aquilo me chocava demais… Revoltava-me, confesso, até que alguns anos depois, quando eu estava saindo do mar, o vi chegando à praia arrastando não apenas a si mesmo, mas um caiaque. Sem a ajuda de ninguém, ajeitou-se dentro do caiaque, entrou na água, posicionou-se entre os surfistas e pegou suas ondas. A partir desse dia, fui me informando sobre sua vida, que era praticamente igual à de qualquer outra pessoa. Tendo desenvolvido um jeito próprio de se equilibrar, Dudu estudou, casou-se, teve filhos e montou seu próprio negócio.
Citando esses exemplos, não quero dizer que devemos ser indiferentes à miséria e às tragédias do mundo. Cito-os com o objetivo de apenas deixar claro que a caridade muitas vezes tira a necessidade e o potencial das pessoas de elas mesmas superarem suas dificuldades. Quando nós, enquanto indivíduos, promovemos a caridade, as consequências boas ou ruins reduzem-se ao ambiente privado, porém, quando a caridade vem do Estado, sempre em massa, de forma genérica e ineficiente, as consequências podem reduzir toda a sociedade à condição de dependência, com grandes chances desse mesmo Estado se tornar uma força mais opressora do que as limitações natas de cada indivíduo.
As dificuldades da vida não justificam as facilidades que o Estado promete. Dificuldades particulares exigem esforços particulares, estes, que se desenvolvem na proporção da liberdade oferecida pelo Estado.

Sobre o autor

João Cesar de Melo
Arquiteto, artista plástico e escritor. Escreveu o livro “Natureza Capital”.

Matéria extraída do website do Instituto Liberal

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