Papa Francisco, David Cameron e os mártires do século XXI
Da sacada do palácio pontifício, na Praça de São Pedro, no Vaticano, após o domingo de Páscoa, o Papa Francisco fez um apelo para que “a comunidade internacional não desvie o olhar para outra parte”, referindo-se aos cristãos perseguidos na Síria, Iraque, Líbia, Iêmen, Nigéria e outros países da África. “Nossos irmãos e nossas irmãs são perseguidos, exilados, mortos, decapitados, exclusivamente por serem cristãos”, disse Sua Santidade. “Eles são os mártires do nosso século, talvez até mais numerosos que os primeiros”. Francisco denunciou o “silêncio cúmplice” do mundo enquanto os cristãos são mortos. O discurso abordou o ataque à Universidade em Garrisa, leste do Quênia, no qual militantes do Al-Shabab mataram 148 pessoas por não serem muçulmanas e referiu-se, ainda, aos vinte e um cristãos decapitados pelo Estado Islâmico em Fevereiro.
Diferentemente da atitude sempre contida de Barack Obama, que faz de tudo para evitar que o seu discurso contra os extremistas islâmicos possa ser interpretado no sentido de uma guerra religiosa, abrindo espaço para a acusação de islamofobia, David Cameron, primeiro-ministro do Reino Unido e líder do partido conservador, fez um discurso de Páscoa firme, lúcido e transparente; sem meias palavras, sem evasivas:
“[…] Temos o dever de falar claramente sobre a perseguição de cristãos ao redor do mundo também. É realmente chocante que em 2015 ainda existam cristãos sendo ameaçados, torturados e até mortos por causa de sua fé. Do Egito à Nigéria, da Líbia à Coréia do Norte, cristãos têm sido arrancados de suas casas, forçados a fugir de aldeia em aldeia, muitos deles forçados a renunciar a sua fé ou serem brutalmente assassinados. A todos esses grandes cristãos, no Iraque e na Síria que praticam a sua fé ou a compartilham para os outros, devemos dizer: nós nos posicionamos com vocês.”
Não demorou para que alguns intelectuais (sempre eles!) assinassem uma carta, publicada no jornal Daily Telegraph, criticando as declarações do primeiro-ministro e acusando-o de sectário.
Segundo uma pesquisa americana, o ano passado vai entrar para a história como o maior índice de perseguição global de cristãos da era moderna. As pesquisas apontam um crescimento absurdo da violência contra os cristãos. A estimativa, por baixo, é de que aproximadamente 4.344 cristãos tenham sido mortos em razão da sua fé no período entre 01 de dezembro de 2013 e 30 de novembro de 2014. O ano de 2015 começou com as decapitações no Egito e o massacre no Quênia. Mas quando uma autoridade vem à público posicionar-se firmemente em favor dos cristãos, ele é criticado pela intelligentsia patrulhadora contrariada com a afirmação do caráter cristão do Reino Unido.
Ora, não é apenas o Reino Unido que é cristão, é o próprio ocidente. Nossas bases históricas estão fincadas na tradição cristã de sorte tal que a tolerância requerida para a pluralidade de idéias é uma das conseqüências da difusão de um ideal de amor e benevolência que se estende a toda a humanidade. Não há nenhum problema em afirmar o caráter cristão de uma cultura, muito embora essa afirmação se dê dentro de um Estado laico. Só não é possível para aqueles que querem estabelecer um califado mundial. Não é o nosso caso.
Já tive a oportunidade de dizer e volto a repetir que somente na democracia, criação ocidental, é possível abrigar a pluralidade e a divergência. Por isso a democracia é algo delicado, porque diferente de um regime totalitário seja ele o nazismo, o fascismo, o comunismo, ou o califado islâmico, ela abriga em si a própria dissidência capaz de miná-la. Não podia ser mais pertinente a frase com que David Cameron inicia seu discurso: “Sim, somos uma nação que acolhe e aceita toda e qualquer fé, mas somos ainda um país cristão.”
Não sei se Cameron tinha consciência da profundidade do que acabava de proferir. Mas eu tenho. Somos um país que acolhe toda e qualquer fé porque somos uma democracia, e somos uma democracia porque albergamos determinados valores, dentre os quais o da liberdade e da fraternidade, em cuja difusão o cristianismo teve um inegável papel.
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