Páginas

quarta-feira, 17 de junho de 2015

Profeta Ezequiel: responsabilidade individual e propriedade privada no Antigo Testamento

ezekielAntes de tudo o mais, vale dizer que quem aqui escreve não é católico, nem adepto de igreja reformada, nem tampouco judeu; minha crença é outra. Assim sendo, nada do que direi se baseia em qualquer técnica hermenêutica ou exegética ao estilo das igrejas cristãs, ou em alguma tradição interpretativa rabínica. Quem escreve, entretanto, é alguém que, independente disso, reconhece o valor da tradição judaico-cristã para a civilização ocidental. Em minhas leituras da Bíblia, identifiquei que, entre os diversos textos bíblicos que podem ser entendidos como matrizes para valores substantivos dessa civilização, especialmente de um ponto de vista mais propriamente liberal, o livro do profeta Ezequiel, no Antigo Testamento, traz contribuições interessantes que achei por bem dividir com os leitores.
O individualismo metodológico e de responsabilidades fica claro no capítulo 18. Selecionamos alguns trechos:
“A palavra do Senhor foi-me dirigida nestes termos: ‘Por que repetis continuamente este provérbio entre os israelitas: Os pais comeram uvas verdes, mas são os dentes dos filhos que ficam embotados? Por minha vida (…) não tereis mais ocasião de repetir este provérbio em Israel. É a mim que pertencem as vidas, à vida do pai e a vida do filho. Ora, é o culpado que morrerá.
O homem justo, que procede segundo o direito e a equidade, (…) que não oprime ninguém, que restitui o penhor ao seu devedor, que não exerce a rapina, que dá seu pão aos famintos e cobre com vestimenta o que está nu, (…) esse homem é um justo: certamente viverá. (…)
Porém, se esse homem gerou um filho violento e sanguinário, que comete (contra seu irmão) uma destas faltas – embora ele próprio não tenha cometido nenhuma; um filho que come nas montanhas e desonra a mulher do próximo, que oprime o infeliz e o indigente, (…) esse rapaz não poderá permanecer em vida. Após as abominações que houver cometido, ele deve perecer, e seu sangue recairá sobre ele. Se, pelo contrário, o homem gerou um filho que, à vista de todas as faltas cometidas por seu pai, tem cuidado para o não imitar, um filho que não come nas montanhas e não volve os olhos para os ídolos da casa de Israel, que não desonra a mulher do próximo, não oprime ninguém, e não retém o penhor, (…) – esse filho não perecerá pelas iniquidades de seu pai, mas certamente viverá. É seu pai que, pelas violências e rapinas que cometeu contra o próximo e pelo mal que fez no meio do seu povo, é este que há de perecer por causa de suas faltas. (…)
É o pecador que deve perecer. Nem o filho responderá pelas faltas do pai nem o pai pelas do filho. É ao justo que se imputará sua justiça, e ao mau sua injustiça.”
O que temos são passagens muito objetivas que transmitem para os indivíduos a responsabilidade direta pelos seus atos, certos ou errados; não importa discutir aqui, volto a frisar, as crenças ou problemas teológicos a respeito da natureza das punições e recompensas divinas aos erros e acertos humanos, ou mesmo se Deus existe ou não. Trata-se de um detalhe cultural: o componente judaico da matriz do Ocidente já aparece trazendo, há séculos, uma fonte inspiradora dessas ideias que tantas conquistas motivaram.
Ainda em Ezequiel, encontramos, no capítulo 46, a partir do versículo 16, que figura prescrições de organização social, mais esta passagem:
“Eis o que diz o Senhor Javé: ‘Se o príncipe fizer a um de seus filhos uma doação do seu domínio, esse donativo pertencerá a seus filhos a título de propriedade patrimonial. Se fizer semelhante donativo a um de seus servidores, a doação pertencerá também a este, mas unicamente até o ano da libertação no qual ela retornará ao príncipe. É só a seus filhos que continuará como herança. O príncipe não usurpará nada do patrimônio do povo, despojando-o de alguma de suas propriedades; ele constituirá um patrimônio a seus filhos unicamente de sua propriedade, a fim de que ninguém dentre o meu povo seja privado de suas posses.”  
O trecho expressa uma clara sustentação da propriedade privada. Limita a expressão potencialmente tirânica do poder do príncipe, que então representaria a força do Estado, sobre os bens materiais e propriedades dos seus “súditos”. Já nesse texto bíblico, portanto, temos resguardadas as dimensões dos direitos individuais de uso e disposição de recursos, a necessidade imperiosa de respeitá-los. Os pronomes possessivos já se fazem presentes; “suas posses”. Estamos diante de um conceito, portanto, que já nos acompanha há muito, muito tempo.
Dividimos essas interessantes referências apenas para chamar a atenção para o fato de que, dessa ou daquela maneira, as boas ideias estão, mais ou menos bem expressas, com clareza ou em gérmen, atravessando os tempos, antes de serem solidamente concretizadas na prática e na organização social. É por isso que devemos, na intenção de desfraldar essas mesmas boas ideias e esses mesmos bons princípios, em primeiro lugar, identificá-los, e esse fato é uma evidência forte a seu favor; em segundo lugar, manifestar algum respeito pelo patrimônio cultural e histórico que os legou e possibilitou.

Sobre o autor

Lucas Berlanza
Acadêmico de Comunicação Social, com habilitação em Jornalismo, na UFRJ, e colunista do Instituto Liberal. Estagiou por dois anos na assessoria de imprensa da AGETRANSP-RJ. Sambista, escreveu sobre o Carnaval carioca para uma revista de cultura e entretenimento. Participante convidado ocasional de programas na Rádio Rio de Janeiro.
Fonte: Instituto Liberal

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Olá! Seja benvindo! Se você deseja comunicar-se, use o formulário de contato, no alto do blog. Não seja mal-educado.