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segunda-feira, 13 de julho de 2015

Símbolos dedicados à morte

morgen1A escritora Anne Applebaum, ganhadora do Prêmio Pulitzer em 2004 pelo obrigatório livro Gulag: Uma história dos campos de concentração soviéticos, conta que percebeu a importância de tal tema ao caminhar pela ponte Karluv Most, atração turística de uma Praga recém liberta do totalitarismo socialista, e ver hippies vendendo toda sorte de bugigangas, mas dentre elas muita parafernália militar soviética: “quepes, insígnias, fivelas e pequenos buttons com as imagens de Lenin e Brejnev”.

Turistas ocidentais, que podiam finalmente visitar a belíssima capital da ex-Tchecoslováquia após o banho de sangue da Primavera de Praga, compravam, experimentam e saíam vestidos com os distintivos da organização mais assassina do mundo alegremente, como uma piada inocente.

morgen2A presumir o bom coração médio, estas pessoas não tinham consciência do que significavam aqueles emblemas policiais que mataram tantos inocentes. As mesmas pessoas que teriam nojo apenas de ver um uniforme nazista ou uma suástica compravam, usavam e riam de signos de morte como uniformes militares do Exército Vermelho ou o símbolo da foice e do martelo.

A conclusão era óbvia: o Ocidente sabe muito bem o que é o horror nazista (e, infelizmente, hoje tenta comparar qualquer coisa a ele, sobretudo seus inimigos liberais, fragilizando o forte significado do conceito). Todavia, seu desconhecimento sobre um totalitarismo ainda mais genocida além da Cortina de Ferro era quase absoluto.

Palavras como Auschwitz, Holocausto, Heinrich Himmler, Joseph Goebbels ou anti-semitismo ainda causam arrepios em qualquer ocidental, independentemente de posicionamentos pessoais. Já palavras como Gulag, Holodomor, Lubianka, Lavrentiy Beria, samizdat ou expurgo são tão vazias de significado para o ocidental como os nomes das disciplinas Vajrayana e as posições corporais
pranayama da yoga.

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Símbolos, portanto, não são matéria apenas de simbolismo abstrato e poético, que podem ser “ignorados” com boa dose de positivismo e materialismo vulgar. Ao se cruzar com qualquer grupo de carecas fortões de coturnos, suspensórios e tatuagens com suásticas, cruzes solares e de ferro e siglas como SS e 88 (“Heil, Hitler”), é quase uma linguagem universal que o recomendável é dar meia volta o mais rapidamente possível.
A cultura ambiente é que define símbolos e significados – mesmo a tentativa de uma visão “científica” fria não é, senão, tentar usar símbolos simples, que nos aproximem da realidade.
O maior filósofo político, Eric Voegelin, em uma das mais rigorosas definições de cultura, percebeu que a cultura são todos os símbolos usados pelo homem para decifrar a realidade e trabalhar sobre ela. A língua, o mito, a revelação, a história, a filosofia: todas são símbolos culturais com maior ou menor capacidade de decifrar a realidade para o homem – e quando temos crises intelectuais, antes de argumentos, são os símbolos e sua adequação à realidade que devem ser questionados e reavaliados.

morgen4Muito antes de uma objetividade universal, portanto, os símbolos de cada homem, cada nação e cada grupo permitem apenas contato com uma parcela da realidade, fechando-se a outra parte. Uma incomunicabilidade que gera análises disparatadas de dentro de uma mesma cultura – como o temor moderno de “discursos de ódio” e apelos a uma “tolerância” igualmente esvaziada de referências à realidade (como se odiar o Estado Islâmico, por exemplo, não fosse senão amor à humanidade e à civilização, e como se “tolerar” e preferir “diálogo” com tal grupo terrorista não fosse senão um misto de suicídio com tolerância ao genocídio).

São como os clichês profissionais, ao verem um problema concreto. Um menino de rua fumando crack debaixo da ponte ativaria os discursos de “desigualdade social” de um assistente social; o problema das drogas e do custo de seu combate em um economista; a má qualidade da ponte como moradia urbana para um arquiteto; os riscos à saúde causados pelo crack para um médico; uma música eivada de “crítica social” para um músico de MPB ou rap.
Pessoas com símbolos culturais diversos não vêem a mesma coisa, como se possuíssem óculos de cores diferentes – bem antes de alguma “objetividade” ou “imparcialidade” que, invariavelmente, coincide com o que o defensor da objetividade defende. A cultura é anterior ao contato com o real, pois é ela que define como se dará tal contato.

morgen5Não é por mero acaso, por conseguinte, que a esquerda, que teve como obra máxima um livro de economia, tenha desaparecido justamente da economia e se concentrado na linguística, na crítica literária, na psicologia, na análise social, nas artes e na comunicação: especialista em criar e modificar símbolos e trabalhar o imaginário coletivo, pode se furtar ao complexo e argumentativo mundo da economia, do Direito ou da administração e empreendedorismo, onde é completamente inútil, para trabalhar símbolos que serão aceitos imediatamente por sua carga psicológica – como social, desigualdade, exploração, empoderamento, participação ou os usos cada vez mais escorregadios e genéricos de racismo, homofobia, machismo, democracia.

Munidos deste arcabouço teórico, podemos entender com mais rigor o que se passou nesta semana com Jorge Bergoglio, o papa Francisco, em visita à Bolívia.
Evo Morales, o caudilho bolivariano que governa a Bolívia sem previsão de troca de poderes, “presenteou” o Sumo Pontífice da Igreja Católica com um “crucifixo” em formato de foice e martelo, com Jesus Cristo pregado ao símbolo supremo do comunismo.
Bergoglio, que recebe aplausos da esquerda mundial por suas declarações progressistas e por defender a Teologia da Libertação (criada pelo próprio Khruschev de dentro da KGB), reduziu-se a um muxoxo (“no está bien eso”) após um longo sorriso amarelo. Atitude bastante distinta da de João Paulo II, papa polonês que, junto a Lech Wałęsa, foi o principal nome a derrotar a ditadura comunista na Polônia, quando repreendeu com dedo em riste Ernesto Cardenal, na Nicarágua, por sua defesa da Teologia da Libertação.

Tal se deu porque o papa progressista, antenado ao mundo 2.0, tem ele próprio deficiências em decifrar símbolos complexos, misturados e herméticos, com os quais as culturas locais e os debates públicos mundiais tentam explicar a realidade.
No Brasil e na América Latina, os signos que geram o discurso aceito de imediato pelo público partem de palavras de forte apelo psicológico (positivo ou negativo), como o termo “bolivarianismo”, de maneira deliberadamente dúbia.

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É comuníssimo ler veículos de mídia associados ao governo criticarem a “paranoia” dos adversários do governo do PT e do discurso progressista por “acreditarem” em uma “suposta” “ameaça comunista”. Tal como os quepes e insígnias comunistas na ponte checa de Applebaum, um termo como “bolivarianismo” é tratado como brincadeira – como algo verdadeiramente engraçado ­– pela esquerda. Não só pela adolescência que tem seus primeiros contatos com a política ainda com professores de História trotskystas, mas pela maioria dos veículos de médio ou grande porte no país.
Sempre, então, se ridiculariza quem chama o PT de “comunista” por suas origens e por seus aliados globais: não apenas os bolivarianos Chávez, Maduro, Correa e Morales, mas pela longa amizade com Fidel e Raúl Castro, por chamar até Kadafi de “meu amigo, meu irmão e líder”, pelo banco com Rússia e China, e até por inaugurar uma embaixada brasileira em Pyongyang  e construir uma embaixada palestina (dominada hoje pelo grupo anti-semita e terrorista Hamas) com acesso estratégico ao Congresso em Brasília.

Todavia, a um só tempo em que se tenta essa ridicularização, os mesmos veículos fazem toda sorte de propaganda possível da mesmíssima ideologia bolivariana. Notícias sobre Cuba supostamente ter “vacina” para curar o câncer, ao invés de serem tratadas com o mesmo grau de verossimilhança e derrisão da Coréia do Norte anunciar que curou Mers, AIDS e ebola, são propagadas como grandes verdades, uma nova vitória contra o capitalismo (defender abertamente algo “a favor do comunismo” já pegaria muito mal).
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Tenta-se avacalhar quem se preocupa com a influência do Foro de São Paulo ditando as políticas nacionais e transnacionais na América Latina (que visa transformar todo o continente em países-satélite do velho socialismo de Cuba), tratando o grupo político como um “inofensivo Rotary Club da esquerda latino-americana” – narrativa que não logra muito êxito.
Contudo, ao mesmo tempo, se criam blogs de nomes como “Boteco Bolivariano” ou se comemora que “o papa é bolivariano”, enaltecendo as “conquistas sociais” da Venezuela – para, na linha seguinte, garantir que o Brasil não caminha para a venezuelização, que isto é disparate de uma direita “raivosa”, paranóica e exagerada. Defesas claras do capitalismo como guardião da liberdade, entretanto, permanecem inexistentes – um tabu ainda da fase oral psicanalítica que a esquerda ainda não superou.

A um só tempo em que se enaltece o governo petista por construir um porto em Cuba apenas para os ditadores Castro utilizarem (Cuba é a única ilha do mundo sem comunidade pesqueira, do contrário todos fugiriam para Miami ou o país capitalista mais próximo), tenta-se ironizar e menosprezar quem percebe que a blogosfera progressista brasileira, financiada a soldo estatal (ou seja, nosso dinheiro, tomado à força, mesmo que não gostemos de suas publicações), faz propaganda comunista.
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Isto se dá porque estes especialistas em comunicação e em retrabalhar o imaginário coletivo sabem que palavras como comunismo, socialismo, estatização, nacionalização, luta de classes, proletariado, materialismo histórico-dialético, marxismo etc são datadas – e, com a internet, não possuem mais o mesmo apelo de quando não se sabia o morticínio que era um regime socialista e seu totalitarismo tão violento que só perde para o Estado Islâmico e o jihadismo 2.0 em atrocidades. Tais palavras são psicologicamente negativas, trazem uma carga muito pesada ao serem utilizadas.
Trocar então de ideologia? Não, basta trocar as palavras, mantendo-se o mesmo sentido bolchevique. Surge o bolivarianismo, o socialismo do século XXI, a “elite de olhos azuis”, o progressismo, os impropérios contra os “coxinhas”, o “vai estudar História”.
Mantém-se o mesmo significado, mas defende-se o “bolivarianismo” (e seu verdadeiro simbolismo, a foice e o martelo do velho totalitarismo soviético) ou se ridiculariza quem “acredita” em bolivarianismo ao mesmo tempo, conforme as circunstâncias e a platéia.
Nossa cultura, portanto, possui símbolos doentes, afetados, falsos, que ao invés de elucidar a realidade, quanto mais são possuídos pelos “cultos” e “estudados” nesta cultura, mais vão afastando o indivíduo do contato direto com o real para se perder num denso amontoado de cacoetes e automatismos verbais, que só conseguem ser discernidos pelos sentimentos positivos ou negativos a eles temporariamente atrelados.
Esta era a situação da Atenas de Sócrates, quando este indivíduo corajosamente desafiou os sofistas, mestres da argumentação e do malabarismo retórico, espécies de advogados de porta-de-cadeia ou de defensores de criminosos da modernidade, a terem uma definição adequada, única, universal e clara sobre as coisas de que falavam.

Ao perguntar o que era a justiça, a virtude, o bem, Sócrates inaugurou a filosofia e relegou ao reino da falsidade e da manipulação dos incautos estes conceitos pouco claros, indiscerníveis, permeáveis, nebulosos e maleáveis que são usados apenas histericamente hoje.
morgen9O papa Francisco é causa e conseqüência desta infelicidade, ao comprar tanto o discurso progressista que precisa “reformar” a Igreja, ao mesmo tempo em que sabe que o socialismo é algo que não faz parte dela. Sua confusão não poderia ficar mais clara do que em não fazer parte da Teologia da Libertação, mas aceitá-la e fazer discursos claramente anticapitalistas, como o realizado na Bolívia, logo após recusar o “crucifixo” em formato de foice e martelo.

A Igreja, instituição religiosa, trabalha com símbolos universais (o próprio sentido do termo grego katholikos), como amor, caridade, compaixão, justiça, perdão. Não são signos para situações muito concretas e definidas, recortadas do real: a ideia do sagrado católico é justamente o universal. O conflito entre o sentido sagrado e o profano (e, pior: moderno) de termos como “igualdade” ou “país justo”, claramente, confunde o Sumo Pontífice em todas as suas declarações.

Sem símbolos adequados e comprando a verborragia modernosa (como os ataques ao “racismo” cada vez mais indefinido), a própria capacidade de Jorge Bergoglio ter contato com a realidade é sempre dando um passo para frente e, logo, outro para trás. Devido à responsabilidade de seu cargo, cada passo para trás é quase uma maratona inteira em sentido inverso.

Sobre o autor

Flavio Morgenstern
Analista político, palestrante e tradutor. Escreve para jornais como Gazeta do Povo, além de sites como Implicante e Instituto Millenium. Em breve lançará seu primeiro livro pela editora Record.
Fonte:Instituto Liberal

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