Há um erro grave no Enem deste ano
– mas ele não tem nada a
ver com feminismo
Nem mesmo economistas de esquerda
concordariam
com a resposta da questão sobre globalização
e desemprego
Por: Leandro Narloch
Muita gente reclamou da dose de feminismo do Enem de 2015.
Não costumo concordar com a maioria das feministas, mas nesse caso não vi nada
errado. O tema da redação foi violência doméstica – não é preciso ser feminista
para reconhecer a relevância desse problema. Além da redação, uma questão
reproduzia o seguinte trecho de Simone de Beauvoir:
Ninguém nasce mulher: torna-se mulher. Nenhum destino biológico,
psíquico, econômico define a forma que a fêmea humana assume no seio da
sociedade; é o conjunto da civilização que elabora esse produto intermediário
entre o macho e o castrado que qualificam de feminino. Somente a mediação de
outrem pode constituir um indivíduo como um Outro. Enquanto existe para si, a
criança não pode apreender-se como sexualmente diferenciada…
Os alunos
não precisavam concordar com a frase, apenas assinalar qual movimento a ideia
acima inspirou nos anos 1960 (resposta certa: “igualdade de gênero”; fácil).
Dando um desconto para a primeira frase (é claro que várias pessoas nascem
mulheres) e à definição de mulher como um “macho castrado” (se eu usasse essa
definição me chamariam de machista, misógino e opressor), o trecho de Simone de
Beauvoir não é de todo ruim. Mesmo o mais adepto da evolução natural como forma
de explicar o comportamento humano há de concordar que a biologia escreve parte
do livro – que é completado pela cultura e pelas relações sociais.
O problema
do Enem não foi o toque de feminismo, mas o habitual anticapitalismo. Uma
questão, inspirada no geógrafo Milton Santos, está evidentemente errada.
Deveria render processos de estudantes pedindo sua anulação. É esta:
No final do século XX e em razão dos avanços da ciência,
produziu-se um sistema presidido pelas técnicas da informação, que passaram a
exercer um papel de elo entre as demais, unindo-as e assegurando ao novo
sistema uma presença planetária. Um mercado que utiliza esse sistema de
técnicas avançadas resulta nessa globalização perversa.
SANTOS, M. Por uma outra globalização. Rio de Janeiro: Record, 2008 (adaptado).
Uma consequência para o setor produtivo e outra para o mundo do
trabalho advindas das transformações citadas no texto estão presentes,
respectivamente, em:
a) Eliminação das vantagens locacionais e ampliação da
legislação laboral.
b) Limitação dos fluxos logísticos e fortalecimento de
associações sindicais.
c) Diminuição dos investimentos industriais e desvalorização dos
postos qualificados.
d) Concentração das áreas manufatureiras e redução da jornada
semanal.
e) Automatização dos processos
fabris e aumento dos níveis de desemprego.
A resposta
E, a correta segundo o Enem, é risível. Não, globalização não provoca
desemprego – provoca prosperidade. A autossuficiência, como David Ricardo
mostrou há quase 200 anos, é a receita mais testada e comprovada para a
pobreza. Leva pessoas e países a gastar tempo demais em atividades que não
dominam tão bem. A vida é mais fácil se cada um se especializar no que faz
melhor (ou com menor custo de oportunidade) e depois trocar o resultado. Paul
Krugman, um dos economistas preferidos pela turma da esquerda, tem um excelente texto sobre isso.
O comércio
internacional pode provocar um remanejamento do trabalho – mas para atividades
mais produtivas. Se algum dia existiram vinícolas na Escócia, elas foram à
falência quando vinhos franceses apareceram por lá. Milton Santos diria que o
desemprego nas vinícolas escocesas foi provocado pela globalização. Prefiro
acreditar que os escoceses perceberam ser mais fácil deixar com os franceses a
produção de vinho e se dedicar a algo que eles dominavam melhor – o whisky.
As últimas
décadas têm provas gigantescas dos benefícios da globalização e do perigo
da autossuficiência. Países da América Latina, da Ásia e da África que se
fecharam ao comércio internacional empobreceram terrivelmente. Ao contrário,
aqueles que se globalizaram estão entre os mais ricos do mundo.
A Índia,
inspirada nas ideias de Gandhi, que insistia em fabricar as próprias roupas e
queimar produtos ingleses, achou que poderia se virar com grandes indústrias
estatais. Conseguiu ficar ainda mais pobre que quando era colônia britânica.
Cingapura, Hong Kong e Coreia do Sul fizeram o contrário: se abriram para o
mundo. Nos anos 1960, tinham renda per capita similar à dos indianos. Hoje olha
só para eles. São os países mais ricos – e globalizados – do mundo.
O Brasil
também é um exemplo. Desde 2011 o governo Dilma impõe barreiras de
importação, exige cotas de produtos nacionais e faz cara feia a acordos
internacionais de livre comércio. Tudo para “preservar empregos ameaçados pela
globalização”. Não há notícia de que tenha dado certo. Pelo contrário, o
desemprego só aumenta. O protecionismo tirou o Brasil de cadeias globais de
produção e evitou que muitas vagas fossem criadas por aqui.
@lnarloch
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