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quarta-feira, 16 de maio de 2007

Sociedade de Trincheiras


Por Klauber Cristofen Pires
Recentemente, no exercício do meu trabalho, recebi um ato de fiscalização por parte do CRA. Tratava-se de uma impugnação a um edital de licitação para contratação de empresas fornecedoras de serviços terceirizados, na qual ela pedia que se exigisse das empresas de locação de mão-de-obra o registro no CRA.

A lei em vigor das licitações contempla a necessidade de se fazer esta exigência, contudo, o seu significado visava a atingir a garantia de uma boa prestação do serviço. Isto significa que o registro em conselho de categoria deveria ser exigido em função do serviço prestado. Assim, uma obra, por exemplo, exige um ART (Atestado de Responsabilidade Técnica) expedido pelo CREA. No caso concreto, aquela licitação, todavia, contemplava somente o fornecimento de mão-de-obra de nível básico e médio, sem que houvesse, por parte destes profissionais, a necessidade de estarem registrados em algum conselho ou ordem.

Em face da falta do que se fiscalizar, todavia, e conjuntamente com o pensamento viciado – mas ainda predominante – de que tudo tem de estar vinculado a algum órgão de fiscalização, partiu-se para exigência de que a firma, em si, é que tem de estar registrada no CRA, isto é, na falta de uma atividade-fim especificamente relacionada com a prestação da obra ou serviço. Não há como se perceber aqui a tão somente voracidade de encontrar alguém para fiscalizar e assim arrecadar suas taxas.

Tempos atrás, escrevi um outro artigo sobre este mesmo tema (“Conselho, Pra Quê?”, acessível em http://libertatum.blogspot.com/2006/01/conselho-para-qu.html ), mas é o inconformismo o que me leva a fazer um segundo apelo a quem me lê.

O filósofo francês Alain Peyrefitte, em seu livro A Sociedade de Confiança, traça algumas informações sobre as corporações de ofícios, que vigoraram primeiro na França, mas também na Itália, Espanha e Portugal. Estas entidades parecem ter sido as precursoras do que hoje se conhece no Brasil por Ordens ou Conselhos, tais como OAB, CFM, CFF, CFC e outras. Segundo o autor, tais corporações eram as responsáveis por fiscalizarem o controle de qualidade dos produtos sob sua jurisdição. Dentre estas, na França, as mais famosas eram as dos fabricantes de tecidos, as quais estabeleciam normas extremamente rígidas para a confecção dos mesmos, bem como para o funcionamento dos estabelecimentos. Asseverava o autor, todavia, que, embora deste arranjo se pudesse garantir, razoavelmente, que os tecidos tivessem alguma boa qualidade, na Hansa, na Holanda e Suíça fabricavam-se tecidos com qualidade inferior, mas que podiam ser utilizados para fins menos solenes, e que isto propiciava aos fabricantes grandes vendas.

As corporações de ofício não nasceram de uma preocupação autêntica de se fornecer ao público bons produtos e serviços, mas de uma atitude protecionista e corporativista, por parte dos atuais fabricantes com relação aos que ingressavam no mercado, e depois de todos estes com os produtos importados. As tais normas de qualidade, na verdade, não passavam de obstáculos utilizados como subterfúgio. Há razoavelmente um bom tempo atrás, tornou-se conhecido no meio televisivo um caso de um jovem veterinário que decidira cobrar honorários bem abaixo dos estipulados pela tabela criada por seu Conselho de Classe, pelo que este o ameaçava com a cassação de sua carteira, prova de que não mudamos praticamente quase nada do século XVII para cá.

Todos os anos, estas entidades arrecadam uma dinheirama que ultrapassa até mesmo o orçamento de muitos estados. E para quê? Eu penso, para absolutamente nada!

Há quem alegue, por exemplo, que ações como a do exame de ordem para a OAB tem o mérito de evitar o acesso ao mercado de maus profissionais. Sinceramente, eu duvido muito disto: porque não será uma mera prova que vai decidir o sucesso na carreira. O dia a dia de um advogado não pode ser reproduzido por um punhado de perguntas de tom acadêmico; no máximo, pode-se formular uma parte bem reduzida deste universo por este método. Não obstante, é tranqüilo que existe um amplo rol de advogados, todos inscritos regularmente na OAB, e muitos dos quais negligentes com seus clientes, incompetentes, e até mesmo trambiqueiros. Ademais, não será uma abundância o fato de que existe um Ministério da Educação? Ora, se o diploma já declara o formado como competente, não parece um absurdo que venha um segundo órgão para averiguar sua capacidade?

Pode também alguém argumentar que a OAB, em muitos momentos, defendeu pessoas incapazes economicamente, bem como os direitos de cidadania junto aos Poderes da Nação. Isto lá é verdadeiro, mas não é a sua estrutura de autarquia que lhe permite isto. Ela já prestava tais serviços quando ainda era o antigo Instituto dos Advogados Brasileiros, na forma de uma instituição privada. Ademais, qualquer advogado pode defender alguém de forma graciosa, ou melhor, qualquer brasileiro pode fazer isto, se decidir patrocinar ao seu próximo as suas custas advocatícias.
Todavia, um temor me acomete. Notem os leitores que, se temos uma autarquia que goza da prerrogativa de “peneirar” seus profissionais, ela poderá fazê-lo por meio de provas que os filtrem segundo uma peculiar visão de mundo (Ora, Direito não é uma ciência exata). Todos os outros estarão, portanto, reprovados. Se esta autarquia for dirigida hegemonicamente por elementos que militem em favor de uma determinada ideologia, então podemos considerar o risco, ainda que potencial, de uma poderosa instituição de transformação social, a qual somente habilitará aqueles que comungarem de seu projeto.

Por quê não podemos, por exemplo, ter diversas OAB’s, todas elas sob a estrutura de associações privadas? Assim, poderemos garantir um melhor atendimento dos interesses da sociedade. Com o tempo, cada uma delas irá desenvolver uma determinada identidade, e isto será visível para os clientes e para a sociedade.

Da mesma forma, por quê não podemos admitir diversos Conselhos de Engenharia e Arquitetura, todos privados? Assim, eles poderiam desenvolver diferentes normas técnicas, cada uma mais propícia para cada tipo de cliente, e estas entidades poderiam concorrer entre si, atrás de prestígio e confiança, e assim poderiam garantir mais os interesses da sociedade, ao invés dos interesses corporativistas dos seus próprios associados.

No site do Conselho Federal de Medicina, encontra-se a seguinte afirmação: “Ao defender os interesses corporativos dos médicos, o CFM empenha-se em defender a boa prática médica, o exercício profissional ético e uma boa formação técnica e humanista, convicto de que a melhor defesa da medicina consiste na garantia de serviços médicos de qualidade para a população.” (http://www.portalmedico.org.br/index.asp?opcao=cfm&portal= , em 16 de maio de 2007.).

Será mesmo que ao defender os interesses corporativistas dos médicos, o CFM garantirá os serviços médicos de qualidade para a população? Então é de se perguntar: e se houver um conflito de interesses entre paciente e médico? Quantas vezes já não vimos na imprensa e nos telejornais casos de denúncias contra más práticas médicas que nunca deram em nada? E nem seria de se pensar de outra maneira: ora, se o CFM é uma entidade formada por médicos para defender os interesses “corporativos” dos médicos, e se são estes quem o sustenta por meio de suas taxas, como poderia ser diferente?

Que poder tem uma simples pessoa contra uma entidade que, para julgar, já se coloca de antemão ao lado de uma das partes, e tem o poder, no mínimo psicológico, de influenciar perícias e pareceres (ora, somente um grande senso de justiça e coragem pode fazer com que um perito atravesse a barreira corporativista de uma entidade a qual ele pertence como associado).
Ora, poderia ser diferente, sim, se os médicos tivessem a liberdade de se associar em qualquer Conselho de Medicina privado (ou mesmo, decidir-se por não se associar a nenhum). Então os pacientes poderiam fazer as suas denúncias aos conselhos concorrentes, que seriam mais idôneos e interessados em defendê-lo.

A idéia de um conselho privado não é nova. No meio naval, desde 1760 funcionam as chamadas “sociedades classificadoras”, das quais o Lloyd Register é a mais antiga. Estas sociedades são inteiramente privadas, e expedem normas técnicas, bem como fiscalizam os navios registrados em suas listas. O armador não precisa necessariamente registrar seu navio em uma sociedade classificadora, mas o faz, e paga por isto, pois o registro é garantia de bons fretes e baixos custos com seguros. Como todo o sistema funciona com base em tradição e confiança, a eventualidade de uma fraude abalaria a reputação da sociedade classificadora envolvida, e portanto tal possibilidade é praticamente remota. Hoje, tal sistema funciona não só no meio naval, mas também no ferroviário, aeronáutico, da construção civil e até mesmo em outras áreas, como as de produção. Pena que Alain Peyrefitte não tenha mencionado este exemplo em seu livro.

Os Conselhos de Classe, ou Ordens, ainda continuarão a vigorar por muito tempo, consumindo preciosos recursos da nação brasileira, já tão escassos. Note o leitor que estas entidades legislam, cobram tributos, fiscalizam e punem, sem nenhuma representatividade por parte dos cidadãos. Isto não parece um absurdo?
Tal cenário somente virá a mudar mediante a mudança de uma mentalidade geral por parte da população. Quando pelo menos uma maioria significativa da nossa sociedade compreender o erro de manter estas instituições e decidir se mexer, então, será o momento de vermos o fim delas. E é por isto que este debate ainda precisa ser bastante revisto.

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