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quarta-feira, 21 de janeiro de 2015

A tradição pessimista

por Ibsen Martinez
Existe uma tradição intelectual na América Latina: o pessimismo.
Podemos encontrar traços dessa maneira de pensar a respeito de nosso futuro já nos primeiros dias da vida independente da América Latina. Eu ousaria dizer que foi o próprio Simon Bolívar (1783-1830), “El Libertador”, quem fundou a tradição latino-americana de negativismo diante de qualquer sinal de progresso.
Bolívar, descendente de uma rica família proprietária de terras que se estabeleceu na Venezuela no século XVII, tornou-se guerreiro revolucionário e homem das letras. Sua destreza militar acabou com o domínio espanhol sobre o território hoje transformado em seis repúblicas: Venezuela, Colômbia, Panamá, Equador, Peru e Bolívia. Em vários escritos, elaborou os ideais da libertação nacional do século XIX. Jacobino em sua juventude, Bolívar tornou-se um ditador em seus últimos anos de vida.
Sua carreira política terminou em meio a ferozes guerras civis que destruíram as nações independentes da América do Sul pelo resto do século XIX. Extremamente pobre e mortalmente doente, Simon Bolívar escreveu uma desapontada carta de despedida a um de seus generais apenas duas semanas antes de vir a falecer.
“Você sabe, eu governei por vinte anos, e deles extraí apenas algumas certezas: (1) A América [do Sul] é ingovernável por nós; (2) aqueles que servem a uma revolução estão arando o mar; (3) a única coisa que você pode fazer na América [do Sul] é emigrar; (4) esse país, inevitavelmente, cairá nas mãos de massas desenfreadas e, logo depois, passará quase imperceptivelmente às mãos de tiranos menores, de todas as cores e raças; (5) uma vez que formos devorados por todo crime e extintos pela total selvageria, nem mesmo os europeus verão em nós riquezas a serem conquistadas; (6) se fosse possível a qualquer parte do mundo um retorno ao caos primitivo, seria a América em sua hora final.¹”
Essas visões sombrias e previsões tristes ecoaram sobre grande parte de nossa intelligentsia. Na virada do século XX, o positivismo europeu foi assimilado pela maioria dos pensadores latino-americanos, que entortaram as idéias de Auguste Comte, transformando-as em uma espécie de “pessimismo científico” que ainda resiste. Entristece-me constatar que enfatizar as características positivas da América Latina aqui possa ser uma ousadia.
O livro Forgotten Continent: The battle for Latin American soul [O continente esquecido: a batalha pela alma latino-americana], de Michael Reid, se rebela contra a tradição latino-americana do negativismo. Essa característica, por si, já faz dele uma leitura essencial para qualquer pessoa que queira compreender as mudanças dramáticas experimentadas pela América Latina nos últimos 50 anos.
Tendo sido por muito tempo editor da seção das Américas da revista The Economist, Reid conhece as complicações do passado da América Latina e ainda apresenta fatos políticos e econômicos que permitem elucidar vários assuntos difíceis com erudição cuidadosa e escrita elegante.
O principal argumento de Reid é que “pela primeira vez na história da América Latina, democracias de massa, genuínas e duráveis, emergem na maior parte da região”. A amplitude e a profundidade desse processo que começou no início dos anos 1980 não é muito bem conhecida, tampouco corretamente avaliada, apesar de suas fortes conseqüências.
Vejamos: em 1977, todos os países da América Latina, exceto quatro, eram ditaduras militares. “Duas gerações atrás – Reid aponta – a maioria dos latino-americanos vivia em condições semi-feudais no campo; há um pouco mais de uma geração, muitos eram assassinados em razão de suas crenças políticas”. Enquanto eu lia esse parágrafo, muitas imagens vieram à minha cabeça, como que para corroborar as afirmações de Reid que, aparentemente, eram otimistas demais.
Pensei por exemplo na Bolívia, o terceiro maior plantador de coca no mundo (depois da Colômbia e do Peru), onde mais de 200 golpes e contra-golpes militares já ocorreram desde sua independência em 1825. Isso significa uma média de 1.2 golpes por ano, em uma nação onde guerras cruéis contra vizinhos invasores, travadas em diferentes épocas nos séculos XIX e XX, dizimaram sua população aborígene e retiraram do país sua costa no Pacífico.
Porém, como Reid aponta corretamente, apesar da agitação política atual, a verdade é que os bolivianos não testemunham um golpe militar desde 1980. Mas como isso pôde acontecer?
Reid relaciona essa mudança continental de atitude em favor da democracia a várias causas, mais especificamente às reformas econômicas realizadas em toda a região por governantes eleitos. Ele argumenta que não importa quão dolorosas, defeituosas e incompletas tenham sido essas reformas, o fato é que elas obtiveram um efeito político duradouro, que nunca se dissipou.
A Bolívia, uma nação andina, pobre e sem saída para o mar, com uma área de 1.980 quilômetros quadrados, da qual apenas 2,7% é arável, possui uma população de 9 milhões de pessoas. O país se localiza sobre uma reserva de gás natural estimada em mais de 650 milhões de metros cúbicos e está vivendo um dos mais extraordinários processos políticos da história recente da América Latina: pela primeira vez em 183 anos, um indígena eleito presidente está no poder.
A eleição de Evo Morales em 2005 coroou uma crise política que se arrastou por quase quatro anos, durante a qual três presidentes constitucionais foram forçados a renunciar em razão do agravamento das manifestações nas ruas e dos bloqueios de estradas. Apesar de os acontecimentos terem sido sangrentos, os militares não intervieram.
Viajei à Bolívia em maio de 2006 para escrever sobre a nacionalização dos campos de petróleo e gás que até ali estavam sob o controle de companhias estrangeiras. Encontrei um país extremamente polarizado em relação às questões raciais e econômicas. Durante minha estada, conversei com o ex-presidente Carlos Mesa e o perguntei sobre um rumor que existia a respeito de um golpe militar iminente visando a derrubada de Morales. Mesa, conhecido por sua integridade e imparcialidade, disse-me que, por mais que as disputas políticas na Bolívia pudessem se tornar cada vez mais duras, os golpes militares faziam parte do passado. “Mas e a embaixada?”, perguntei.
“Se esse homem [Morales] tivesse sido eleito, digamos, em 1970 – respondeu Mesa – ele teria sido derrubado em 48 horas por um golpe planejado na embaixada dos Estados Unidos.” Certamente, um dos benefícios involuntários da negligência de Washington é que “la Embajada” não possui mais a influência que costumava ter – e exercer – em nossos países durante os tempos da Guerra Fria.
Os partidos e grupos de interesse tradicionais, desgastados, agora são desafiados politicamente – ou seja, eleitoralmente – por forças que simplesmente nunca haviam sido consideradas no passado. O indianismo, em suas inúmeras formas, é provavelmente a força política emergente mais importante nos países andinos.
Após anos de grande déficit, os ganhos advindos das exportações de hidrocarbonetos já empurram a Bolívia para um saldo em suas contas correntes de, aproximadamente, 12% do PIB. Se essas rendas irão, no fim das contas, beneficiar os pobres – em 2007, 60% da população boliviana vivia abaixo da linha da pobreza – é ainda algo que precisa ser confirmado. O que me leva a uma das principais preocupações de Reid: a redução da pobreza e o estimulo à criação de oportunidades para todos como a melhor resposta ao desafio populista.
A maioria dos comentaristas insiste na devastação política e social, supostamente causada em muitos países latino-americanos pelo Consenso de Washington – “uma marca arruinada”, de acordo com Moisés Naím, editor da Foreign Policy. Por outro lado, Reid ainda defende uma mistura de austeridade fiscal, privatização e liberalização do mercado.
Porém, Reid relativiza sua admiração pelo Consenso de Washington mostrando como, na maioria dos casos, as reformas lançadas durante os anos 1980 e início dos anos 1990 foram maliciosamente abandonadas ainda incompletas. De fato, quando a economia na Argentina – por muito tempo um modelo das reformas de “livre-mercado” – entrou em crise em 2002, os especialistas perguntavam: o que deu errado?
Reid mostra várias evidências em seu livro para provar que o que deu errado na Argentina tem dado errado em todo o continente por quase vinte anos. Os políticos, que sucederam ditadores que escondiam seus débitos, fracassaram na busca dos compromissos necessários para avançar nas reformas macroeconômicas viáveis: “Talvez, de todos esses compromissos perdidos, os mais importantes tenham sido relacionados com a igualdade, além da erradicação da pobreza e da desigualdade”.
Apesar disso, Reid, otimista, aponta para muitos sinais de progresso, sem fechar seus olhos para o legado de exclusão social que tem caracterizado os países da América Latina por quase duzentos anos.
Apesar das sérias disparidades que possibilitaram a ascensão de líderes populistas radicais, como Hugo Chávez, na Venezuela, e de nunca negar o fato de que o populismo perdulário é uma tendência perigosa e ineficaz, Reid prefere dedicar mais páginas às coisas boas, que governos latino-americanos e grupos privados estão fazendo para espalhar os benefícios da democracia e manter sua população em casa.
O longo e abrangente capítulo sobre a Venezuela de Hugo Chávez é testemunha da abordagem equilibrada de Reid em relação à “terceira onda” de populismo que varre a região. Porém, diferentemente de muitos observadores apavorados, Reid não acredita que um “campo de influência” venezuelano tenha qualquer chance de prevalecer na região.
“A possibilidade que está diante da Venezuela – argumenta – pode não ser aquela de sua transformação em uma nova Cuba, mas sim em uma nova Nigéria – um petroestado fracassado.” Dada a ineficiência e a corrupção característica dos petroestados populistas, eu não me surpreenderia ao ver a “revolução” chavista implodir em meio a uma luta fratricida por dinheiro e privilégios.
Reid expõe uma avaliação igualmente equilibrada a respeito da “reação reformista” ao populismo radical. Uma das conclusões de Reid é que as práticas clientelistas – da troca de votos por favores – não possuem mais o monopólio nas políticas democráticas da América Latina.
Eu penso que ele está certo, e o México, a arquetípica casa do clientelismo na América Latina, nos fornece o melhor exemplo disso.
Após sete décadas de controle da autoridade eleitoral – e de uma implacável e sofisticada burocracia fraudadora de eleições Ibsen Martinez– por um mesmo partido populista, uma enxurrada de votos para a oposição impossibilitou a fraude eleitoral. No Peru, os votos levaram o infame Alberto Fujimori ao poder, em 1992. Dez anos mais tarde, os votos (e a pressão internacional) finalmente o expulsaram, após sua fracassada tentativa de fraudar uma eleição em 2000 na busca de um terceiro mandato.
Reid, corretamente, indica que a democracia não foi imposta à América Latina por nenhum exército conquistador. E insiste na resistência das jovens democracias latino-americanas.
Durante o último quarto de século, conclui, governos democráticos na América Latina solucionaram grandes problemas. Dominaram a inflação, embora a batalha tenha sido longa e cara. Acabaram com o isolamento auto-imposto da região. Na maioria dos lugares, reduziram o efetivo das forças armadas, e as treinaram para seu novo papel democrático. E começaram a enfrentar a herança histórica da região, a extrema desigualdade, a pobreza predominante, a urbanização caótica e o desprezo pela educação.
Não é muito difícil concordar com o sempre otimista Reid, que diz que as tarefas à frente podem ser menos onerosas. Mas elas são, claramente, mais complexas, já que, por exemplo, a pobreza extrema ainda aflige 205 milhões de latino-americanos.
Embora poucos deles sejam intelectuais, ainda são 205 milhões de pessoas igualmente pessimistas.
¹ Carta para o General Flores, Barranquilla (Colômbia), 25 de novembro de 1830.

* Publicado originalmente em EconLib.org. Primeira publicação no OrdemLivre.org em 17/04/2008 e republicado no website da mesma entidade dia 20/01/2015.

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