“A Arte de Governar”: o pensamento de Margaret Thatcher
Primeira mulher na Inglaterra a atingir o cargo de primeiro-ministro – dispensando totalmente qualquer apoio das feministas de plantão, a quem, diga-se de passagem, detestava -, Margaret Thatcher, do Partido Conservador, é lembrada por sua atuação enérgica e convicta à frente do posto. Passando a imagem de intransigência e inflexibilidade, sobretudo perante seus detratores da esquerda, Thatcher promoveu reformas privatizantes e liberais, inspirada nas ideias do economista austríaco Friedrich Hayek. Enfureceu os sindicatos britânicos, aos quais enfrentou sem arredar pé. Pense-se o que quiser sobre seus erros e acertos, é impossível ser indiferente a uma das personalidades mais importantes do século XX. Se existe uma Inglaterra antes e depois de Thatcher, também o mundo da Guerra Fria viu na coordenação de ações entre ela e seu amigo americano, o presidente Ronald Reagan, a linha de frente do que alguns chamaram, paradoxalmente ou não, de “revolução conservadora” contra o comunismo soviético. Editado pela Biblioteca do Exército no Brasil, o livro A Arte de Governar, reunindo seus pensamentos sobre a situação política mundial e sobre filosofia política, é um caminho precioso para penetrar um pouco na mente dessa personagem extraordinária.
O mundo segundo Thatcher
Avaliando as principais questões de relevância geopolítica que vislumbrava naquele não tão distante 2005, os recados de Thatcher, quer se concorde com eles ou não, permanecem profundamente atuais. Ecoando aí, sobretudo, sua mentalidade politicamente conservadora, ela considera que as conquistas da civilização ocidental, em especial no campo das liberdades adquiridas, não se encontram asseguradas, havendo muitos riscos em potencial. Segundo ela, “o Ocidente foi levado a acreditar que chegara o tempo para falar apenas das benesses da paz” e “ouvimos falar cada vez mais em direitos humanos e cada vez menos em segurança nacional. Passamos a gastar mais em bem-estar e menos em defesa.” O grande erro, salienta, é o de acreditar que, “dentro da aldeia global, só existem bons vizinhos”. A realidade é mais delicada: “democracia, progresso, tolerância – esses valores ainda não tomaram conta da Terra. E a única percepção a que chegamos ao ‘fim da história’ é de que vimos de relance o Armagedon”. Todo cuidado é pouco, portanto, nos diz Thatcher.
Thatcher afirma que nenhum dos grandes triunfos ocidentais nos conflitos da Guerra Fria determinou uma solução definitiva para a tensão entre “liberdade e socialismo sob seus inúmeros disfarces”. Embora o modelo ocidental, “com governos agindo dentro de limites estritos de atuação e com máxima liberdade individual, dentro da justa medida da lei”, seja atestado pela realidade em sua eficácia, “sempre haverá líderes políticos e, cada vez mais, grupos de pressão que se dedicam a convencer as pessoas de que não podem realmente conduzir suas próprias vidas e de que o Estado deve fazer isso por elas”. Thatcher cita Hayek, em sua frase de O Caminho da Servidão: “a luta pela segurança tende a ser mais forte do que o amor à liberdade”. Rejeitando certos tradicionalismos que renegam a importância das estruturas liberais, e que não são, como se vê, sinônimos de todo o pensamento conservador, Thatcher acredita que o modelo ocidental de liberdade “é algo positivo e universalmente aplicável, embora com variações que reflitam peculiaridades culturais e outras condições”. É preciso, no mínimo, se mirar nesse modelo, tal como Edmund Burke dizia que se deve fazer com os princípios políticos: tratá-los como a luz que, ainda que conserve seu valor, sofre alterações em seu reflexo na água, tal como eles sofrem curvas dentro da realidade empírica.
Reconhecendo que os Estados Unidos conservam uma enorme importância no concerto das nações, Thatcher sustenta que em sua gênese há “um senso de responsabilidade pessoal e de aprimorada valorização individual do ser humano”, “alicerces gêmeos que sustentam a liberdade com ordem”. Thatcher enxergava a América como “a mais confiável defensora da liberdade no mundo, pois são os firmes valores dessa liberdade que dão sentido à sua existência”, ainda que as próprias esquerdas americanas estejam parcialmente atentando contra isso, pondo em risco a posição singular daquela grande nação. Ecoando o pensamento burkeano, ela difere a Revolução Americana, cujo propósito “era assegurar paz e prosperidade”, das Revoluções Francesa e Russa, por se calcar nas ideias inglesas de “direitos dos cidadãos, império da lei e governo limitado”. Assim, para ela, somente a América possui “capacidade tanto moral quanto material para exercer a liderança do mundo”, e o destino imediato desse mundo está na dependência do comportamento dessa liberdade dentro daquele país. Voltando a fazer pouco caso da ideia de Francis Fukuyama de que teríamos chegado a um paradisíaco “fim da história”, Thatcher prefere manter as reservas diante da possibilidade de haver, em vez disso, um “choque de civilizações, com religiões e culturas opostas lutando pela supremacia”. Diz que as democracias devem enfrentar os violentos e fanáticos islâmicos adeptos do terrorismo, mas guiando-se pela prudência, por um planejamento sensato e cauteloso quanto aos alvos a serem atacados e os momentos adequados para se fazer isso, por não haver garantia nenhuma de que a ação militar ocidental opere milagres em terras inóspitas à liberdade.
Descrevendo a história de tradição totalitária e absolutista da Rússia, desde o czarado até o regime stalinista, Thatcher expõe as dificuldades do protecionismo e da economia controlada pelo crime e pela corrupção, que não permitem ao país desenvolver uma economia de mercado realmente avançada e livre de complexos sobressaltos. Alerta para a necessidade de prestar atenção aos russos, dado o seu poderio militar e nuclear, e para a máxima de que “a semente do perigo muitas vezes é lançada no solo da desordem e o mundo já aprendeu o quanto isso pode custar”. Prenunciando conflitos como o da Crimeia, ela chama a atenção para os problemas de relacionamento entre os russos e os vizinhos egressos da extinta URSS, advertindo para os riscos de o governo de Putin se caracterizar pelo autoritarismo, sob o pretexto de promover algumas reformas necessárias, o que teria de ser confirmado pelo tempo. Hoje, o presidente Putin coloca a pulga atrás da orelha dos ocidentais preocupados. Assim como os poderosos chineses, influentes na economia mundial, e que permanecem governados por um partido comunista e, portanto, essencialmente antiocidental, e os regimes ditatoriais ou autoritários de países como Coreia do Norte, Iraque, Síria, Líbia, Irã e Sudão, todos minuciosamente analisados por Thatcher em seu trabalho – antes, naturalmente, da chamada “Primavera Árabe”. Ela não deixou passar também, como podemos depreender, a relevantíssima questão do Islamismo e do Islã político e terrorista; sem deixar de reconhecer aspectos admiráveis na cultura dos países e intelectuais islâmicos com que travou contato, ela aponta que é necessário identificar no extremismo islâmico a causa do terrorismo a ser combatido. “Muitos líderes muçulmanos que denunciam seguidamente Israel e conclamam para a luta contra a América não deviam ficar surpresos quando ovelhas de seus rebanhos agem da forma como entendem a doutrinação que recebem”, alfineta. Também não deixa de reconhecer que o Islamismo, ao menos na forma das sociedades constituídas com sua presença majoritária, apresenta dificuldades para evoluir em direção às instituições liberais, e isso precisa ser encarado como verdade em vez de com cegueira de conveniência.
É conhecida a oposição de Thatcher à criação da União Europeia. Seu grande receio, que ela deixa transparecer ao longo do livro, é que a ânsia esquerdista de criar um “mundo novo”, avançar sobre as diferenças regionais e nacionais, avançar sobre as soberanias institucionais dos países, na busca de seu ideal, pode se tornar uma centralização perigosa, inspirada em utopismos ineficazes. O projeto em curso de integração europeia seria uma concepção ideológica poderosa, difícil de barrar, mas que poderia trazer grandes dificuldades – e hoje, estivesse ela certa ou não em termos gerais, a existência de importantes problemas é notória. No entanto, essa questão só não é a passagem mais polêmica do livro por conta dos momentos em que Thatcher sustenta seu apoio estratégico a regimes autoritários como o de Suharto na Indonésia e Pinochet no Chile. Sua justificativa, sinteticamente, está na necessidade, em um mundo real, de “negociar, ainda que temporariamente, com regimes que não nos satisfazem e que em tempos foram objeto das nossas justas críticas”, concordando com seu antecessor ilustre na história do cargo de primeiro-ministro britânico, Churchill, que dizia que, “se Hitler invadisse o Inferno, eu tentaria, pelo menos, dizer algumas coisas agradáveis acerca do Diabo”.
O pensamento político da Dama de Ferro
Sem contenções, Thatcher ataca a hipocrisia da esquerda ao se dizer a grande baluarte dos direitos humanos, lembrando que “foi o Ocidente capitalista que obrigou o Leste socialista a tratar seus súditos como seres humanos e não como peões ou mercadorias”. Sentindo-se à vontade, ao considerar que conservadores e liberais foram os maiores promotores da liberdade concedida a grandes parcelas da população planetária, Thatcher assumiu seu incômodo com a maneira por que essa expressão “direitos humanos” tem sido usada, de modo a “limitar a liberdade, em vez de ampliá-la”.
Traçando um histórico sobre a formação do conceito de “direitos humanos” nos países de língua inglesa, a Dama de Ferro enxergava neles uma concepção do tema que “se insere em um contexto institucional e é fruto de longa tradição”, ao contrário da perversão da “nova esquerda”, alvo de suas críticas. Assim como a Declaração de Direitos do Homem e dos Cidadãos de 1789, fruto da Revolução Francesa, que “mergulhou em uma tirania sangrenta que buscava justificação nessa doutrina de poder centralizado e praticamente sem limites”, a de um “democratismo” de base rousseauniana. Pareceu, salienta ela, ao lado inglês que as garantias fornecidas pelos “hábitos, pela tradição consolidada e pelo direito consuetudinário eram, de longe, mais válidas do que os princípios ‘democráticos’ propostos pelos demagogos”, o que levou “Edmund Burke, pai do conservadorismo, a dizer, referindo-se aos direitos naturais, que ‘sua perfeição abstrata é, na prática, um defeito’”. A partir daí, Thatcher considera que houve um entendimento problemático, inclusive em órgãos internacionais, de considerar objetivos “geralmente importantes como ‘direitos’, sem reconhecer que sua satisfação depende de circunstâncias e, sobretudo, da vontade de um grupo de pessoas que se disponha a aceitar restrições em favor de outras”. Embora frise sempre a importância dos valores que sustenta, ela lembra que as restrições aos abusos de poder devem ser harmonizadas com as “peculiaridades, instituições e costumes das nações”, dado que “as constituições precisam ser autênticas, não basta serem escritas”.
Thatcher encerra seu livro com uma longa abordagem sobre o capitalismo. Segundo ela, a economia de mercado se impôs de tal forma que mesmo governos de centro-esquerda e governos nomeadamente comunistas aceitaram ceder à sua superioridade em diversos aspectos gerais, mas é preocupante que seja aceita apenas por sua funcionalidade, sem que se defendam os aspectos morais e sociais que a sustentam. Procurando empreender esse esforço, ela identifica, no pensamento de Adam Smith, a noção do mercado como a troca entre pessoas desconhecidas numa sociedade ampla, movidas pelos seus interesses, embora rejeite a noção de que o “pai do liberalismo” tivesse um pensamento calcado no egoísmo. Ele, “que era mais moralista que economista”, acreditava na importância das virtudes e da “caridade”, da mesma forma por que dizia que o conservador Edmund Burke era a pessoa que detinha as opiniões mais similares às dele que ele próprio já havia conhecido.
O atomismo moral e o culto ao egoísmo de certos segmentos libertários, conquanto os respeitemos, não teria eco em Smith, e não tem, naturalmente, eco em Thatcher. O que ela deduz é que, em grupos amplos, “cujos membros não conhecem as necessidades dos outros e não se pode esperar que se preocupem com elas, a expectativa mais realista e objetiva que se pode fazer é admitir que o interesse próprio prevalecerá”. Infelizmente, apesar dessa verdade, ainda somos muito tendentes a “acreditar nas boas intenções dos formuladores de regulamentos e burocratas”. Na verdade, a grande qualidade que Thatcher enxerga no livre mercado está no fato de que as vantagens por ele oferecidas “podem se materializar independentemente de considerações de natureza humana e, portanto, sem precisar se engajar em tentativas coercitivas para moldá-la ou transformá-la”, tentativas que, convertidas em política de governo, sempre resultaram em desastre na história.
Ela soma o pensamento de Hayek ao de Adam Smith, referenciando o austríaco precisamente em sua defesa da ordem espontânea, de um pensamento não-esquemático em organização social, tudo isso calcado na valorização de instituições importantes, entre as quais ela destaca a propriedade privada, o império da lei – e aí Thatcher faz uso do filósofo britânico Roger Scruton, para definir esse império como “a forma de governo em que nenhum poder pode ser exercido, a não ser que o seja de acordo com normas, princípios e limitações estabelecidas em lei e no qual um cidadão pode recorrer contra qualquer outro, por mais poderoso que seja, e contra funcionários do próprio Estado, em consequência de ato que envolva violação da lei” -, a cultura – pois, para Thatcher, é preciso que o ambiente cultural apresente, ou ao menos se permita permear por determinados valores culturais que facilitem a aceitação da livre iniciativa – e a diversidade de países independentes e concorrentes.
Para Thatcher, “a esquerda não reconhece a importância de limitar o ônus do Estado sobre a economia”, insistindo em que “é o Estado que cria riqueza, a qual é distribuída (ou redistribuída) às pessoas”. Ao assumir que alguns partidos considerados de direita procuram competir com a esquerda na rejeição ao livre mercado e na defesa de aumentos intoleráveis nos gastos públicos, Thatcher puxa suas orelhas, advertindo que essa é uma competição em que sempre serão derrotados, afinal fazem uso de um discurso no qual a esquerda é mestre e senhora absoluta. Nesse ponto, ela faz uma análise da Terceira Via, adotada pelo primeiro-ministro do Partido Trabalhista, Tony Blair,e que influenciou governos de centro-esquerda no mundo, como o do nosso ex-presidente Fernando Henrique Cardoso. Reconheceu que ele manteve boa parte das reformas que ela e os conservadores haviam realizado, mas seu esquerdismo se fez presente em um aumento robusto das regulamentações na economia e nos impostos.
Ela reconhecia a necessidade de certas políticas para garantir condições mínimas a setores da sociedade, mas pretendia que, sempre que possível, a ação do governo facultasse ao máximo a escolha individual. Nesse ponto, ela sugere algo muito similar ao sistema de vouchers de Milton Friedman, com a concessão de “bolsas ou créditos para estudantes em vez de recursos de aplicação centralizada”, e condena com veemência o sistema de cotas para harmonizar racialmente e culturalmente uma sociedade, o que para ela é “intolerável”, além de inútil, porque segrega ainda mais em vez de unir. Sobre a pobreza no chamado Terceiro Mundo, o problema, Thatcher diagnostica, é a falta de liberdade econômica, situação que o Banco Mundial agravou, “emprestando dinheiro para cobrir necessidades de governos incompetentes”, ao contribuir para que permanecessem no poder. Não deixou de comentar nem sequer o catastrofismo dos ambientalistas, dizendo que, “sejam quais forem as medidas que venhamos a adotar para enfrentar problemas ambientais, devemos preservar a capacidade de nossas economias para crescer e se desenvolver, porque sem crescimento não se pode gerar a riqueza indispensável ao financiamento da proteção do meio ambiente”. Discutiu a “globalização”, alegando que essa integração entre diferentes culturas não é algo exatamente inédito e que, embora os conservadores como ela devam, no dizer de Burke, se afeiçoar ao “pequeno círculo” social que lhes é mais próximo como etapa básica da estima pública, conducente ao amor “à pátria e à humanidade”, não devem confundir isso com a rejeição aos avanços econômicos e sociais do mundo moderno.
Certo de que esta análise já se alonga, creio que esteja claro o quanto o livro é recomendável e em que medida a inolvidável Margaret Thatcher se preocupava com as questões do mundo contemporâneo a ponto de seus prognósticos e questionamentos poderem ser perfeitamente levantados hoje, dez anos depois. Fechamos com o parágrafo final de sua obra, que expressa plenamente o âmago de seu recado: “a exigência de responsabilidade e limitações para o exercício do poder, a certeza de que a força não prevalecerá sobre a justiça e a convicção de que os seres humanos possuem, na condição de indivíduos, um valor moral absoluto que deve ser respeitado por qualquer governo são aspectos peculiares enraizados na cultura política dos povos de língua inglesa. São os alicerces da arte de governar civilizada. Constituem nosso permanente legado para o mundo”.
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