Por Klauber Cristofen Pires
É preciso separar bem duas coisas: há o Estado ateu, e há o Estado laico. As duas instituições não se confundem. O primeiro declara que Deus não existe, e proíbe a existência das religiões, ou, no máximo, as aceita como manifestações folclóricas. É o que aconteceu na ex- União Soviética e vige na China e em outros países, salvo engano, todos comunistas.
É preciso separar bem duas coisas: há o Estado ateu, e há o Estado laico. As duas instituições não se confundem. O primeiro declara que Deus não existe, e proíbe a existência das religiões, ou, no máximo, as aceita como manifestações folclóricas. É o que aconteceu na ex- União Soviética e vige na China e em outros países, salvo engano, todos comunistas.
O segundo trata-se apenas de um arranjo político, encontrado como forma de encontrar a paz entre cidadãos de diferentes religiões. Como bem ensinado por Ludwig von Mises, em Ação Humana, as guerras religiosas são as mais drásticas, porque não admitem negociação; como tudo se trata de dogma, ou o plano de uma determinada religião se impõe sobre os outros, ou sucumbe ante eles. Não há saída.
No Estado Laico, o que não se permite é que se utilize o Estado para beneficiar cidadãos em detrimento de outros, com base em preceitos religiosos. Os acontecimentos que têm sido noticiados na Internet, sobre pessoas que são proibidas de se manifestar quanto às suas crenças em locais mantidos pelo Estado, principalmente em países como EUA, Inglaterra e Alemanha, não configuram a conseqüência da aplicação plena deste princípio político, mas justamente de sua desvirtuação.
Neste sentido, o Brasil está dando lição aos seus países amigos. Em nossa sociedade, o Estado é laico, mas não proíbe, por exemplo, que um cidadão faça as suas orações. Pelo contrário, a Constituição Federal oferece várias garantias, dentre as quais citamos os incisos VI, VII, VIII e IX, todos do Artigo 5º, aqui transcritos “in verbis”:
Art. 5º, VI: é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e seuas liturgias;
Art. 5º, VII: é assegurada, nos termos da lei, a prestação de assistência religiosa nas entidades civis e militares de internação coletiva;
Art. 5º, VIII: ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa ou de convicção filosófica ou política, salvo se as invocar para eximir-se da obrigação legal a todos imposta e recusar-se a cumprir prestação alternativa, fixada em lei;
Art. 5º, IX: é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença.
Como servidor público federal, posso dar meu testemunho pessoal de que em meu local de trabalho ninguém é proibido de fazer suas orações ou manifestar seu credo. Pelo contrário, em quase todas as mesas dos meus colegas de trabalho encontram-se Bíblias, crucifixos, folhas-calendário e imagens de santos. Nas datas comemorativas, os servidores realizam novenas, peregrinações e autos de Natal. Nos dias de sábado, em que há concurso público, é garantido àqueles que o guardam disporem do direito de fazer a prova depois do período de abstenção das atividades mundanas (Eles são confinados em uma sala especial, vigiada pelos fiscais de prova).
Note-se, que em todos estes casos, não se trata de uma manifestação do Estado Laico, mas de seus servidores ou cidadãos, que são pessoas humanas. O Estado é que é laico: o cidadão ou o servidor, não! Portanto, o que um Estado laico não pode fazer, é privilegiar o culto a uma religião específica, ou os cidadãos crentes de uma religião específica, em detrimento dos demais. Nenhum servidor público pode, por exemplo, tratar melhor um católico do que um evangélico ou ateu. Nenhum hospital público pode alegar abster-se de atender a um paciente, em razão de sua fé. Isto é sim, o que significa o Estado laico, e isto é muito bom.
Compreensível é a preocupação de uma corrente de pensadores conservadores, no tocante ao temor de haver um propositado abandono dos valores morais quando o Estado repele qualquer manifestação religiosa em suas estruturas físicas. Por outro lado, é mais que conhecida a atuação política de ramos da Igreja Católica e de outras igrejas protestantes, o que desautoriza plenamente confundir ateus com comunistas.
Não obstante, olhando pela via inversa, devem os conservadores entender que seus dogmas não podem ser garantidos via força do Estado. O motivo pelo qual os conservadores apóiam-se no estado para a garantia de seus dogmas religiosos é o mesmo pelo qual Ludwig von Mises, em seu último discurso, explicou o motivo pelo qual as pessoas apóiam tanto o socialismo, cujos excertos aqui não podem ser desprezados:
“As pessoas aceitam o socialismo do ponto de vista de suas próprias idéias. Elas estão inteiramente convencidas que todas as outras pessoas deveriam ser forçadas a adaptarem-se a este sistema, o qual certamente elas consideram como o melhor e o único sistema possível.”
...
“Se nós assumirmos que este sistema terá também a força para determinar tudo o que um indivíduo faz com respeito ao que são comumente chamados de “problemas religiosos”, nós deveremos assumir também que tal sistema de socialismo deveria adotar um sistema religioso específico. Isto faria com que todos os outros sistemas religiosos passassem a se tornar sistemas de minorias perseguidas.”
...
“Considerando-se as condições socialistas nós nunca pensamos que este sistema socialista poderia forçar as pessoas a fazer coisas que elas consideram as piores possíveis.”
Do exposto, compreende-se o quão seria conveniente ao conservador garantir os valores morais de nossa sociedade por meio do estado. Todavia, ele precisa ter em mente de que ele não gostará nada da idéia se por acaso subir ao poder o representante de um grupo rival (ou oposto), que venha a lhe impor uma nova visão de mundo, ou de Deus.
Mas, e como fica a nossa grande questão, ou seja, como resguardaremos os nossos valores morais? Novamente, recorro ao velhinho judeu-austríaco: os valores morais não se transmitem geneticamente. A cada nova geração, precisamos transmitir todo o nosso legado para os novos seres humanos que nascem. Estas novas pessoas receberão as informações, as processarão e formarão suas próprias convicções (ainda que permaneçam as mesmas dos seus antepassados). Daí ser inapropriada a convicção de que podemos criar um sistema social baseado puramente em tradição, ou de que os indivíduos não possam criar as suas próprias opiniões.
Se há uma tradição a ser mantida (mas a cada geração, confirmada), ela o será pela própria sociedade, isto é, por cada um de seus cidadãos, que serão os eternos vigilantes dos atos do Estado, e, ao contrário do que sustentam, por sua vez, alguns ateus, no plano do debate nas casas legislativas, esta tradição pode ser apresentada como argumento, sob pena de cerceamento da liberdade de expressão. Isto porque, o que às vezes se aparenta irracional, guarda uma racionalidade apreendida por milênios. Convém lembrar a ambos, finalmente, que deverão ter em mente de que leis devem ser aplicadas a todos os cidadãos, por igual.