terça-feira, 24 de janeiro de 2006

A função social da propriedade

O que devemos entender por função social da propriedade? Quando uma propriedade cumpre a sua função social? A constituição Federal de 1988, em seu artigo 5º, incisos XXII a XXIV, faz sua alusão à garantia de propriedade, condicionada, contudo, à realização da função social:

XXII – é garantido o direito de propriedade;
XXIII – a propriedade atenderá a sua função social;
XXIV – a lei estabelecerá o procedimento para desapropriação por necessidade ou por utilidade pública, ou por interesse social, mediante justa e prévia indenização em dinheiro, ressalvados os casos previstos nesta constituição.
Do texto constitucional, observa-se, primeiramente, que os incisos supra-mencionados não especificam o conceito de propriedade, alargando-o assim para qualquer propriedade, seja imobiliária, seja de meios de produção, sejam bens de consumo, ou até mesmo bens intelectuais. Da mesma forma, não há qualquer referência a explicação do conceito do que venha a ser “função social”, a não ser a relativa à propriedade (imobiliária) urbana e à rural, respectivamente, nos artigos 182, §2º, e 186:
Art. 182, § 2º A propriedade urbana cumpre a sua função social quando atende às exigências fundamentais de ordenação da cidade expressas no plano diretor.
Art. 186 A função social é cumprida quando a propriedade rural atende, simultaneamente, segundo critérios e graus de exigência estabelecidos em lei, aos seguintes requisitos: aproveitamento racional e adequado; utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente; observância das disposições que regulam as relações de trabalho;exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e trabalhadores.
Ao observarmos as disposições do texto da nossa lei maior, podemos constatar que o valor do bem jurídico “propriedade”, muito menos que “garantido”, tanto estará menosprezado quanto, relativamente, o conceito de função social for alargado, como, de fato, o vem sendo.
Do exposto, podemos observar que, aquilo que a Constituição considera como sendo uma função social, ou delega à lei comum para o fazer, trata-se tão somente de algumas condições materiais burocráticas e pontuais em relação a cada propriedade.
Decerto, nossos legisladores não tiveram conhecimento do verdadeiro papel que a propriedade exerce em uma sociedade livre. Se o soubessem, tratariam de efetivamente tratar o tema com mais cuidado, isto é, de conferir à propriedade uma proteção realmente eficaz.
O conceito de função social da propriedade, no entender da Escola Austríaca, da qual revelaram-se como seus principais representantes, como Ludwig von Mises e Friedrich Hayek, é de natureza apriorística, isto é, não necessita de situações pontuais que afiram à uma propriedade em particular se esta cumpre ou não seus preceitos.
Mises já advertia do fracasso das sociedades socialistas, como a então União Soviética e seus países satélites, por que tais sociedades desconheciam o preço das coisas.
Em uma sociedade capitalista, a propriedade exerce seu papel como base para um sistema de trocas: se eu tenho duas maçãs, posso trocar uma delas por uma ou mais pêras do meu amigo, ou por um peixe, de outro colega. Quando tais operações são realizadas em termos de pura troca de mercadorias, damos a denominação de escambo.
Note-se que o escambo somente terá lugar se um dos amigos aceitar trocar, no caso de cada um, uma ou mais de suas pêras, ou um ou mais de seus peixes. O resultado, finalmente, será uma melhor satisfação de todos. Agora, suponhamos, eu tenho uma maçã e duas pêras; Se o dono das pêras já tivesse feito alguma troca com o proprietário dos peixes, eu poderia ter então possivelmente, uma maçã, uma pêra e um peixe, melhorando sensivelmente a minha dieta.
Para que tais relações de troca possam ser exercidas dentro de um campo tripolar, ou multipolar, utilizamos um meio comum, algo que possa ser aceito simultaneamente por todos, e que hoje é conhecido por dinheiro. Quando este bem comum serve de ponderação para o valor relativo de cada coisa, estabelecendo assim proporções diferentes para coisas diferentes, temos o que chamamos de preços.
Assim é que, por exemplo, um quilo de arroz não tem o preço que se verifica no supermercado, à toa. Seu preço deriva de todos os custos relativos à sua produção, somados a alguma parcela de lucro do vendedor, em contraposição de uma estatística de preferência dos consumidores. O agricultor somente irá plantar arroz se, prevendo com razoável grau de certeza seus custos, e sabendo qual o preço que a maior quantidade possível de pessoas estiver disposta a pagar por este produto, puder vislumbrar a oportunidade de extrair algum lucro desta operação.
Desta forma, podemos concluir que o preço, sendo resultado das trocas voluntárias e mutuamente benéficas, somente pode existir nas sociedades em que a propriedade privada dos meios de produção seja protegida, bem como atribuir a este fenômeno as seguintes funções:
a. Servir de estímulo à produção: imagine que alguém inaugure um serviço de dirigíveis, na região norte, para auxílio à atividade de extração de madeira ou de petróleo. Certamente, por fornecedor único, cobrará um preço bem alto, mas nem tanto que inviabilize a exploração econômica da madeira ou do petróleo, pois, de outra forma, estes operadores econômicos irão procurar outras soluções. Entretanto, até que venha a aparecer um primeiro concorrente, de forma que o preço venha a paulatinamente cair, as altas parcelas de lucro auferidas devem servir como prêmio à inovação do mercado. Se hoje tomarmos conta da riqueza de todos os países das Américas, inclusive os EUA, podemos reconhecer que o prêmio que Cristóvão Colombo recebeu por sua atitude inovadora, foi irrisório.
b. Servir de elemento informador ex ante facto da preferência dos consumidores, para a avaliação da possibilidade de produzi-lo: O agricultor somente irá plantar arroz se o custo da produção for menor do que o preço que as pessoas desejam pagar por ele.
c. Servir de elemento de avaliação ex post facto , para a correção de rumos na linha de produção. Se o preço do arroz aumentou, é porque mais pessoas estão precisando do produto, conseqüentemente, há de se produzi-lo em maior quantidade.
d. Servir como elemento de contínuo aprimoramento dos custos: neste aspecto, com a contribuição magistral de Friedrich Hayek, entra em cena a corrida tecnológica, como fator de melhoramento dos produtos e diminuição dos custos.
A União Soviética não tinha a menor idéia dos seus custos de produção, e fundamentalmente, quebrou, por distribuir produtos a preços inferiores a seus custos. As fábricas não produziam conforme pesquisas de custos de mercado ou de preferências dos consumidores, mas sim em função de dotações orçamentárias, assim como funcionam quaisquer repartições públicas. Havia órgãos que, arbitrariamente, atribuíam preços aos produtos, mas segundo critérios exclusivamente políticos.
Há notícias que a União Soviética já chegou a manter listas com mais de um milhão de preços, mas, quem quer que se detenha em uma única gôndola de um simples supermercado brasileiro, haverá de observar que os produtos ali expostos à venda, à parte da variedade que esta venha a expor para tal fim, são eles mesmos produzidos com uma infinidade de produtos antecedentes, e que lhes serviram de matéria-prima.
Como se vê, a propriedade, muito antes de começar a pertencer a alguém em particular, já se presta a uma função social fundamental, cujo princípio, por si só, já é mais do que suficiente para que o Estado se preocupe em defendê-la, dado que é a pedra fundamental de qualquer sociedade livre.
Mas, se ainda assim, alguém me perguntar quando uma propriedade cumpre a sua função social, eu vou dizer: quando produz a maior quantidade possível de produtos, com a melhor qualidade possível, e sob o menor preço possível. Só que isto, nenhum Estado será jamais capaz de mensurar. Somente os consumidores e a contínua concorrência é que são capazes de exercer este papel!