terça-feira, 24 de janeiro de 2006

O buraco da palmeira




por Klauber Cristofen Pires em 13 de março de 2005


Semana passada, necessitando locomover-me ao centro comercial de Belém, optei por estacionar meu carro no estacionamento recentemente inaugurado pela Prefeitura. Deparei-me com uma obra bem construída, com rampas para descida e subida dos veículos, e outra para pedestres. Era uma manhã de sábado e, apesar de o centro estar bastante movimentado, não contei mais de vinte carros no local que fora projetado para abrigar centro e trinta. Não seria culpa da taxa de estacionamento, bem mais barata (R$ 1,00 por hora) do que os estacionamentos rotativos do centro, que cobram, em média, cerca de R$ 2,50 por hora. Do lado de fora, alguns brinquedos, destes típicos de praças (gangorras, escorregadores, etc.), e algum ajardinamento.

Uma das últimas obras realizadas pelo governo passado sob a administração do PT, o então batizado “Largo da Palmeira” foi construído onde antes se situava tradicional panificadora cujo nome era “Palmeira”, detalhe que parece, à primeira vista, insignificante, mas que pode ter se revelado como fundamental para a realização da obra. O que restara da extinção da fábrica foi tão somente um fosso, aberto em meio ao centro, com uma área equivalente a um pequeno quarteirão. Contudo, depoimentos de amigos e as fotos da época demonstram que o estabelecimento gozava de fama e reputação, fosse pela qualidade de seus produtos, ou pelas suas linhas arquitetônicas, as quais guardariam certa correspondência com o famoso “Café Colombo”.

Muito possivelmente a extinção da fábrica tenha criado um profundo sentimento de perda, cuja marca, a de um feio e abandonado buraco, servisse como uma campainha psicológica, a despertar diariamente a melancolia dos cidadãos, principalmente entre aqueles que vivem no centro desde seus áureos tempos. Aos leitores que me lêem em outras cidades é preciso esclarecer que os belenenses, em geral, são pessoas profundamente afeitas à sua cidade, à sua cultura, e às suas tradições. Não imagino, portanto, qual seria outro motivo que movesse sucessivas campanhas eleitorais, durante cerca de trinta anos, com propostas de melhoria para aquele local - finalmente implementada pelo último governo - mesmo porque, quarteirões abandonados, buracos, ruas que alagam e outras mazelas, existem aos montes, sem que se tenha disso igual preocupação...

A história da ex-fábrica-buraco-estacionamento gerou-me certa curiosidade e alguns questionamentos. Por exemplo, quanto teria custado tal empreendimento? Segundo a Secretaria Municipal de Meio Ambiente, a obra custou R$ 1,7 milhão de reais. Parece-me uma extravagância, em se tratando de um estacionamento.

Prosseguindo: considerando-se o retorno auferido pelo preço de estacionamento, e computados os custos com manutenção, luz, água, esgoto e funcionários, em quanto tempo haveria o retorno? Bem, isto dependeria da taxa média de ocupação que vier a ser verificada. Por exemplo, satisfeita uma ocupação média razoável de 400 carros-hora por dia, ao cabo de um ano de 286 dias (52 semanas de 5,5 dias cada – sábado à tarde e domingo fechado), com 50 % de custos, teremos uma renda anual de R$57.200,00, ou seja, trinta anos!

Neste momento, possivelmente eu receberei as vaias dos menos desatentos, por ousar reclamar contra um serviço que é oferecido mais barato. Advirto, entretanto, que o preço que se pratica na mesma área urbana, em geral, de 100% a 200% maior, reflete tão somente o equilíbrio de duas forças opostas: a disposição dos usuários em pagar o preço oferecido e o custo pela manutenção do empreendimento. Se o preço subir demais, na avaliação de cada usuário, certamente ele desistirá de utilizá-lo. Por sua vez, se for muito baixo, os estacionamentos serão desativados. Mas o mais importante, é que este custo é pago integralmente por quem efetivamente o utiliza, o que não é o caso do nosso estacionamento público. Até quando o que foi gasto vier a ser recuperado, quem estará pagando pelo estacionamento de preço sub-faturado serão, sobretudo, os paraenses que não possuem carros ou que, possuindo, normalmente não se dirigem ao centro.

Há um outro fato de extrema relevância a ser considerado: os estacionamentos privados da área afetada pagam seus funcionários, seus impostos, e os custos de manutenção, mas estão recebendo concorrência desleal por parte do Governo Municipal, aliás, rechaçada pela própria Constituição, que em seu art. 173, caput, determina: “Ressalvados os casos previstos nesta Constituição, a exploração direta de atividade econômica pelo Estado só será permitida quando necessária aos imperativos da segurança nacional ou a relevante interesse coletivo, conforme definidos em lei”(grifos nossos). Relevante interesse coletivo? No caso em tela, já havia, justamente ao lado da nova obra pública, um estacionamento privado, que agora deve estar amargando prejuízo...

O site da SEMMA traz ainda outras informações preocupantes, tais como: “Mais de 20 flanelinhas que atuavam na área criaram uma cooperativa para administrar o estacionamento junto com o Conselho Gestor, formado pela Semma, Secon e representantes dos comerciantes”. Ora, a reputação dos flanelinhas do centro de Belém junto à população local não é lá das melhores, tendo sido, inclusive, motivo de reportagens televisivas acerca de constantes ocorrências policiais. Ademais, salta aos olhos que não estão exercendo a atividade mediante ingresso por via de concurso público, como seria o mínimo a esperar de um governo que se propõe a ser igualitário. A conseqüência direta desta ação foi a de privilegiar possíveis delinqüentes em detrimento de pessoas humildes, que, mesmo em estado de necessidade, têm militado na senda da honestidade. Ademais, se a atividade está sendo explorada por uma cooperativa de flanelinhas, quem, de fato, será o responsável pela guarda dos veículos, em caso de roubo ou avaria?

Outra: “Na parte mais alta, foi construída uma pequena praça, denominada "Calçadão do Trabalhador", com capacidade para 48 ambulantes cadastrados pela Secon; será uma via de ligação entre a Igreja do Rosário e a de Santana. Os trabalhadores do mercado informal localizados no entorno do Largo estarão comercializando industrializados, importados, bijuterias, confecções, artesanato e lanche. Haverá ainda a venda de comida típica no local”. A solução para o problema dos camelôs, sobretudo nas cidades grandes, requer medidas concretas e que passem ao largo da paixão ideológica. Sabe-se que muitos deles são pessoas premidas pelo desemprego, que por sua vez, é fruto da combinação de uma carga tributária sufocante, de juros extorsivos e de uma burocracia de hospício. Sem inocência, sabe-se igualmente que outra parte age como ponta de arrojadas redes de distribuição, cujo único escopo é manterem-se na linha da sonegação fiscal. Dentro deste cenário, tolerar o comércio irregular, baseando-se em critérios de razoabilidade e de humanismo, pode ser explicável. Coisa muito diferente, entretanto, é privilegiar a atividade com a dotação de um espaço nobre, caro e custeado justamente por aqueles que sofrerão esta concorrência desleal e ilegal. Certamente, esta é a receita certa para mais desemprego e mais decadência no centro de Belém.

O estacionamento rotativo, com entrada pela 1º de Março e saída pela Ó de Almeida, tem como objetivo reduzir o fluxo de carros particulares no centro histórico. Se este é o motivo, pode ser que o tiro acabe por sair pela culatra. Há experiências bem sucedidas no exterior, e mesmo em outras capitais brasileiras, que passam justamente em via contrária, ou seja, a de transformação das ruas destas áreas mais antigas em calçadões, privilegiando-se os transeuntes a pé e as formas de transporte coletivo, principalmente o metrô. Adicionalmente, a revitalização do nosso querido centro poderia passar, antes que por obras caras, por um programa continuado, que utilizasse como recursos não mais do que os impostos coletados da própria área a ser beneficiada, de modo a não causar gravame aos demais cidadãos. Um programa que reduzisse a insuportável poluição visual e sonora; que restaurasse nossas perigosas calçadas; que limitasse a ação dos camelôs, ambulantes e pequenos delinqüentes; e que resultasse em uma coleta de lixo mais eficiente. Veneza não atrai mais turistas do que o Brasil inteiro por conta de grandes obras. O que os turistas lá procuram não é o estado, mas a sociedade; procuram “respirar” o ambiente histórico e cultural que se revela nas construções rústicas, nas vielas, nos canais e no “modus vivendi” dos venezianos, tudo dentro de um esquema de limpeza, segurança, organização e fidelidade arquitetônica.

Geralmente, quando uma obra ou ação do Estado é concluída, nossos olhos nos traem para o que vemos, sugerindo-nos orgulho e estupefação. Mas a verdade nos diz que levaremos uma geração para pagar uma obra de fins, utilidade e efeitos questionáveis, enquanto falta atendimento de qualidade em nossos hospitais, asfalto nas nossas ruas e emprego para nossa gente. A finalidade deste artigo é, portanto, alertar que por trás do muito que se vê, na maior parte das vezes, como demonstramos com este exemplo, há muito mais do que não se vê!