Por Klauber Cristofen Pires
“Se alguém diz Eu, nenhuma outra informação é necessária para estabelecer o seu significado. (...) Mas, se alguém diz Nós, é preciso alguma informação adicional para indicar quais Egos estão compreendidos nesse Nós. É sempre um simples indivíduo que diz Nós; mesmo que muitos indivíduos o digam em coro, permanece sendo diversas manifestações individuais.
O Nós não pode agir de maneira diferente do modo como os indivíduos agem no seu próprio interesse. Eles podem agir juntos, em acordo, como um deles pode agir por todos. Neste último caso, a cooperação dos outros consiste em propiciar uma situação que torna a ação de apenas um homem efetiva para todos. Somente neste sentido é que o representante de uma entidade social age pelo todo; os membros individuais do corpo coletivo ou obrigam ou permitem que a ação de uma só pessoa lhes seja também concernente.”
(Ludwig von Mises, Ação Humana, 2ª ed. 1995, Instituto Liberal, p. 46.)
Se há uma coisa que admiro, é a simplicidade com que os homens sábios se expressam. No pequeno esquema de raciocínio lógico apresentado acima pelo maior economista do século XX, uma lição basal: simplesmente não existe o que possa vir a se chamar de moral pública!
Sabemos todos que hoje em dia há todo um edifício sociológico e jurídico construído com este nome ou em torno dele. Ainda assim, trata-se da concepção de uma ou de algumas pessoas que conjuntamente decidiram denominar assim a particular visão de mundo que compartilham entre si. Não é o fato de elas reclamarem para si o termo “moral pública”, que ela vai ser pública de fato, assim como não era democrática a República Democrática da Alemanha.
O Estado não é uma entidade que fala por si própria. Ela é uma instituição que persegue seus objetivos por meio de agentes públicos que agem em seu nome. São, portanto, pessoas humanas, e justamente por isto, ao exercerem as suas funções, imprimem às mesmas as pegadas que se formam com os valores e conceitos que prevalecem em suas cabeças. Não se trata aqui de acusarmos tais pessoas de negligência ou corrupção: muitas delas trabalham de forma honesta e bem-intencionada. O problema e que ninguém tem a capacidade de imaginar e agir que não seja conforme sua visão de mundo. Ninguém tem a capacidade de enxergar, atribuir um valor e agir segundo aquilo que nunca concebeu.
Uma moral pública, para que ocorresse, teria de ser continuamente aprovada por todas as pessoas de uma determinada comunidade, e para ser neutra, deveria conter somente os elementos comuns à visão de mundo que anima as mentes de todos, com exclusão de todos os conceitos que com ela não fossem compatíveis. Consideremos, a título de ilustração, um jantar a ser preparado em conjunto por dois amigos, Fulano e Ciclano. Fulano aprecia carne bovina e de porco, mas detesta peixe, e Ciclano aprecia carne bovina e peixe, mas não come porco, digamos, por motivo de orientação religiosa; a neutralidade, como é óbvia de se ver, necessariamente os leva a escolher pela carne bovina para a realização do evento. Imagine, porém, que Fulano, que não come peixe, por qualquer motivo que seja, alegue que os valores de Ciclano devem ser desconsiderados, por serem de ordem religiosa, com a finalidade de servir porco. Seria certamente uma agressão, desde que ele estaria impondo a Ciclano os seus próprios valores e também roubando o seu direito à sua cota de decisão, já que ele participa do banquete também com a sua parte em dinheiro.
Da mesma forma, quando o pretencioso ministro da saúde José Gomes Temporão sustenta a invalidade dos valores cristãos no debate sobre a legalização do aborto, somente pelo fato de serem de ordem religiosa – e que, portanto, segundo o próprio, deveriam se restringir à esfera privada (aos cristãos), o efeito de sua atitude é alijar, com um desleal jogo de corpo, mais de 90% da população, com a intenção de fazer prevalecer os valores de sua particular visão de mundo, cujos seguidores, os ateus, respondem por meros 7,4%, conforme o Censo IBGE do ano 2000! Trata-se, pois, de um flagrante de retórica, pois, o debate que ele alega ser laico (leia-se “ateu”) neutro, ou pertencente a uma moral pública, e por isto em tese “válido”, não passa em verdade do arcabouço moral de sua própria cabecinha e do grupo absolutamente minoritário que o segue.
Com a mesma arrogância se apresenta o ex-ministro do Supremo Tribunal Federal, Nelson Jobim, quando aponta para o crucifixo que jaz à parede atrás de si para dizer que ele há muito tempo não influi mais nas decisões da corte mais alta do país. Arrogância ignorante, pois que foi a Tradição que inventou uma constituição e os tribunais, que inaugurou o conceito de que os seres humanos são merecedores dos mesmos direitos entre si, e que merecem ser tratados com justiça e dignidade pelo só fato de serem humanos. Não fosse o Cristianismo, como o pilar central desta Tradição, ele mesmo não viria a ser ministro de um tribunal constitucional, mas talvez um puxa-saco de um ditador, prestes, a qualquer momento, a ser executado por traição, sem nem sequer saber o motivo da acusação.
As religiões são o fundamento que norteia a salvação das almas para os seres humanos, mas também são mais que isto, pois freqüentemente formam um corpo de valores para aplicação terrena. No tocante a este aspecto, assemelham-se aos partidos políticos, e são, com freqüência, muito mais representativas que estes. Como entidades também humanas, também estão sujeitas ao erro, afinal, a limitação do conhecimento humano é característica de nossa espécie. Não se trata aqui de proclamar a falibilidade divina, mas a falibilidade de como os homens enxergam a Deus. Não obstante, o fato de sustentarem seus valores conforme a religião não é argumento suficiente para serem invalidadas preliminarmente, e de serem impedidas de participar nos debates e nos processos decisórios do país.
Acertando aqui e errando ali, religiosos e ateus vão se confrontando e assim a Verdade vai se consolidando, por meio da manutenção das boas escolhas e do abandono das más.
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