Por Klauber Cristofen Pires
No meu último artigo, usei de um regionalismo "Um Paneiro de Peixes Podres" para ilustrar a grande quantidade de leis inúteis neste país, usando a do voto obrigatório como exemplo. "Paneiro", na linguagem popular da região Norte, é um cesto de palha, usado amiúde para acondicionar mercadorias nas feiras e nos barcos.
Desperdiçei o termo que bem melhor poderia ter sido utilizado para o assunto que será tratado a seguir. De forma mais representativa, este seria o título adequado para servir de metáfora a mentiras que são vendidas em meio a verdades, assim como o feirante inescrupuloso empurra para o freguês desatento alguns peixes estragados em meio aos frescos.
Trata-se de uma cena da telenovela "Belíssima", veiculada pela Rede Globo, no dia 19/06/2006, cujo enredo é o seguinte: Giovanna (Paola Oliveira) pergunta à sua patroa e amiga, Rebeca (Carolina Ferraz) se ela não sente ciúmes de seu pai , Alberto (Alexandre Borges), com quem mantém um relacionamento amoroso. A resposta de Rebeca, aqui reproduzida livremente, baseia-se no seguinte: ela é "a outra", logo, não lhe cabe sentir ciúmes; não deseja se casar; e não se importa que Alberto seja casado e feliz com a sua mulher.
A resposta de Rebeca provoca a surpresa em Giovanna, que, atônita, pede mais explicações (no "script" o autor da novela incluiu em sua fala uma alusão depreciativa à sua condição de pertencente a "classe média"). Rebeca, em sua tréplica, depois de confirmar o preconceito de "classe média" (leia-se: "pequeno-burguês") da interlocutora, dá uma (pretensa) aula de liberdade individual e de democracia: alega que vive a sua vida como bem deseja, amparada no seu direito de gozo de sua liberdade individual, que lhe garante praticar quaisquer atos, desde que estes não interfiram na liberdade dos outros, ou que não se lhes faça mal; que as pessoas são diferentes entre si e que deve haver tolerância de todos em função de suas preferências, e enfim, que esta liberdade é um dos fundamentos de uma sociedade democrática.
Obviamente, sob a ótica da doutrina liberal, não haveria lugar para tal afirmação: Alberto é casado com Mônica, interpretada por Camila Pitanga. É certo que Alberto não é uma "coisa", mas, por crédito de seu próprio ato, é certo que pertence unicamente a Mônica, sua esposa. É necessário compreender a gravidade da opção pelo casamento religioso, consagrado pelo juramento solene. Mônica, que depositou em seu projeto de vida as mais caras esperanças, não se casaria com Alberto se não fosse por sua palavra de honra que este lhe seria fiel. E Alberto, ao ter proclamado seu "sim", manifestou sua vontade espontânea e voluntária de dedicar-se unicamente à sua futura esposa, ou digamos de outro modo, de "pertencer" a ela.
O fato é que, Rebeca, ao optar por viver como amante de Alberto, certamente causa prejuízo a Mônica. Dentro do espírito da doutrina liberal, portanto, Rebeca agiu, na expressão de Hans-Hermann Hopppe, de forma agressiva e não-contratual, ao tomar para si o que pertencia a outrem. Tudo o que Rebeca disse permaneceria válido se ela decidisse manter apenas relacionamentos superficiais com quantos homens quisesse (e que ninguém venha a reprimir este seu legítimo direito), desde que fosse com homens solteiros.
Já faz algum tempo tenho obervado que as cenas e diálogos politicamente corretos e as tais "aulas de cidadania" têm diminuído um pouco nas novelas. Parece que a emissora global tem percebido que as pessoas, ao assistirem a uma novela, buscam distração na trama, e não a propaganda do governo. Mas, do jeito como andam confusas as mentes desta gente, francamente não dá para saber se eles quiseram realmente prestar uma homenagem à liberdade individual, frustrada pelo detalhe despercebido, ou se quiseram, propositalmente, corromper a doutrina do liberalismo , como forma de fazer a população rejeitar as suas idéias, porque induzida, por seu próprio preconceito, a associar o liberalismo com "libertinagem".
De qualquer modo, que se preste atenção: esta é a forma mais corriqueira que têm os "donos da voz" de empurrar mentiras: a de entremá-las junto a verdades; "peixes estragados, em meio a peixes frescos..." .
Rebeca é um exemplo de liberal, mas no sentido americano do termo. Quando, contracenando com a mesma Giovana, esta lhe repreendeu por ter um caso com seu pai, ela retrucou que Giovana tinha uma "moral provinciana", ou algo assim. O liberalismo a pouco serve sem seus valores fundantes, mas esse é o único liberalismo que nos é permitido por aqui. Abraço!
ResponderExcluir