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Recentemente, de uma conversa entre amigos - estávamos falando sobre a educação dos filhos em contraposição à interferência negativa do governo e da mídia – um estimado veio com esta, mais ou menos nos seguintes termos: “... que ensinaria seus filhos a terem senso de responsabilidade social, que isto é uma coisa que no futuro eles vão ter, ou melhor, vão ter que ter!”.
Este comentário imediatamente remeteu-me a um outro termo: “caridade”. Que lhe aconteceu? Já faz tempo que não se ouve esta palavra. Só tenho percebido como tem sido detratada, lembrando-me de acontecimentos até então aparentemente eventuais. Em uma destas ocasiões, lá pelos anos setenta, por meio de uma carta ao programa do apresentador Flávio Cavalcante, um telespectador a repudiara, manifestando seu ódio àqueles que a praticavam. Vi o mesmo se repetir ulteriormente, seja na TV ou na mídia impressa, com cada vez mais frequência. Hoje, parece que “caridade” não é mais uma virtude, mas um ato vergonhoso.
Há algum tempo venho alimentando a idéia de falar sobre a responsabilidade social. O discurso de uma pessoa de meu convívio (gente boa, em que pese sua opinião) apenas fez soar o alarme porque até então eu circunscrevia a expressão ao setor empresarial. Para as pessoas físicas, o denominativo imperante seria “solidariedade”, a qual contrapor-se-ia a “caridade”. Responsabilidade social, por sua vez, seria o substitutivo de... sei lá, quem sabe, “responsabilidade empresarial”?
Mas eis que agora crianças serão obrigadas, por seus próprios pais, a imbuírem-se do espírito de “responsabilidade social”. Elas “terão que ter” responsabilidade social, pelo que se vê. Bom, então, já que caridade é um defunto, peço que me deixem enterrá-la; por favor, não se repita em mim o infortúnio de Antígona.
Cresci aprendendo sobre a caridade em um Colégio de Freiras, e vou morrer com este conceito, por acreditar que ele está conforme a doutrina cristã e a boa filosofia. Porque vejo características diferenciais entre “caridade” e “responsabilidade social” ou “solidariedade”, em sua nova acepção.
A começar, por caridade, percebe-se um ato voluntário, o exercício do livre arbítrio. Sem livre arbítrio, não existe caridade e nem mérito, e mais que isto, economicamente falando, também não existe o melhor julgamento quanto à quantificação dos recursos a serem utilizados. Por meio do livre arbítrio, o agente caridoso pode julgar quais e quanto de seus recursos (dinheiro, bens, ou seu próprio trabalho) serão usados em favor do necessitado, e quanto pode sacrificar de seu próprio bem-estar, ou de outras pessoas sob a sua responsabilidade, para a consecução deste mister.
Há certas religiões que exaltam as boas obras; outras, por sua vez, defendem que somente a fé é a coluna mestra da salvação. Não são disparidades essenciais: os que vêm virtude nas boas obras apenas entendem que são o extravasamento natural de quem alimenta a sua fé. A caridade pode advir de um sentimento humanista ou religioso, mas tanto faz: justamente por ser um ato livre, denuncia a compaixão, a piedade, e o juízo por parte do praticante, como bem atesta a parábola do bom samaritano. As religiões, a seu turno, embora recomendem ou a elogiem, não obrigam seus fiéis à prática. E com razão: como poderia alguém merecer o céu por atos que pratica por obrigação?
Outro que odiava a caridade era Cazuza: “...vivendo da caridade de quem me detesta...”. Quem oferece seus recursos ao próximo destituído da vontade de lhe ajudar, em verdade, não pratica a caridade, mas apenas o usa para um fim pessoal. Não é muito difícil discernir uma situação de outra: a verdadeira caridade prescinde da publicidade, tão cara aos adeptos da “responsabilidade social”.
Em contrapartida, a pessoa socorrida também faz com que o sentido da caridade se complete. Ao despir-se do orgulho e da inveja, também ela, ao mesmo tempo, a pratica, ao dar esta oportunidade a quem, talvez pela primeira vez, esteja tentando ser útil. Nenhum de nós está livre de necessitar ajuda. Ocupamos todos corpos frágeis, e nossas riquezas materiais são voláteis, de modo que não há vergonha a ninguém por receber uma mão amiga em algum momento da vida.
Destarte, conquanto receba o préstimo caritativo, sabe o auxiliado que o abuso constitui fraude, esperteza vil. A caridade não se presta a sustentar ociosos, e nisso reveste-se de um certo senso de transitoriedade, que, enquadrando-se sob o juízo do agente caridoso, pode ele, revestido de seu livre-arbítrio, determinar a sua continuidade ou cessação. Há ações de caridade que atendem a pessoas que jamais irão erguer-se por si próprias, por absoluta impossibilidade; são as pessoas portadoras de enfermidades incuráveis ou as de idade avançada; mas nem por isto desvalida-se o sentido: serem gratas e colaborativas a quem lhes presta os cuidados já é, no possível, a expressão de zelo pela própria dignidade e autoconduta.
Estas são, portanto, as características da caridade: amor ao próximo, desapego, ausência de contraprestação, respeito mútuo, discreção, gratidão, não abuso, andar com as próprias pernas assim que possível.
Pronto. Feche-se a tampa, para sempre. Deitem-se as flores. Viva os novos tempos da responsabilidade social!
A quem fez a sua escolha, que agora preste atenção: responsabilidade é obrigação, e portanto, exigível. Social é ampla e perene, e não individual e transitória. Responsabilidade social é, pois, a transferência compulsória e permanente dos recursos de uns em benefício de outros. Não há mais que se falar em fraternidade, repeito, autoconduta ou gratidão. Não há mais valores morais ou religiosos em jogo, mas sim apenas valores político-jurídicos. A exação dos recursos do “responsável social”, agora ditada por quem se apresente como representante da classe beneficiada, não conhecerá limites, seja de quantidade ou tempo. A simples alegação do estado de necessidade, porque a critério deles mesmos, dispensará qualquer demonstração, servindo de pretexto para a auto-execução, isto, é, para a subtração à força, pelas próprias mãos, dos bens do responsável social. Voltamos aos tempos dos bárbaros: Genghis Khan revive!