segunda-feira, 13 de julho de 2015

A Guerra do Paraguai e a predileção automática pelo “mais fraco”

Solano López e D. Pedro II
Solano López e D. Pedro II
Em sua visita ao Paraguai, o papa Francisco se compadeceu da dor dos paraguaios no século XIX, na chamada Guerra do Paraguai. Na opinião do papa, a guerra foi “injusta”. Na mesma semana, um documentário a respeito do conflito – a maior conflagração internacional da história da América do Sul, tão significativa quanto pouco comentada no Brasil – foi exibido pelo canal fechado History Channel. Tudo isso parece vir no bojo das recordações dos 150 anos daquela luta cruenta, que começou em dezembro de 1864 e terminou em março de 1870.
O documentário foi até muito interessante e bem feito, dando a palavra a intérpretes com  pontos de vista bem diferentes sobre o conflito. Estavam lá desde o historiador Julio José Chiavenato, autor de Guerra do Paraguai: Genocídio Americano, com sua visão francamente “pró-paraguaia”, até o nosso conhecido Leandro Narloch, de idéias liberais e colunista de Veja, autor de Guia Politicamente Incorreto da História do Brasil. A turma que externou posicionamentos reducionistas, aceitando a visão de que Solano López teria sido um líder patriota e popular com a intenção de desenvolver seu país, esmagado pela tirania imperialista e prepotente do Brasil (ou até da Inglaterra), naturalmente despreza os argumentos que Narloch expressa em sua divertida e instrutiva obra, e que achamos por bem destacar aqui, acompanhados de nossas próprias reflexões.
Em primeiro lugar, cumpre acompanhar os fatos: como mostra o próprio documentário, os paraguaios atacaram primeiro. Solano López, presidente-ditador do país, confiscou, como conta Narloch, o Marquês de Olinda, um navio brasileiro que transportava um governador ao Mato Grosso, em novembro de 1864. Em seguida, perto do Natal, “7.700 soldados paraguaios, mil deles a cavalo, invadiram o pantanal brasileiro. Ganharam fácil os primeiros ataques, já que surpreenderam um exército desprotegido.” O ataque foi violento, e, mais do que o próprio livro de Narloch, o documentário registra os abusos e agressões cometidos contra a população civil brasileira. O Brasil não tinha intenção alguma de provocar uma guerra contra o Paraguai, diz Narloch – e quase todos os interlocutores do documentário, mesmo com suas posições diversas, concordam quanto a isso. “O inimigo tinha um exército com 77 mil homens, contra 18 mil militares brasileiros. O Brasil estava tão desprotegido que demorou cinco meses para iniciar uma reação.” Com muita dificuldade, o Império Brasileiro reuniu um exército, iniciou a campanha dos Voluntários da Pátria e foi encarar o vizinho invocado. Essa situação deixa um tanto claro o equívoco das versões clássicas que justificam o estouro da guerra recorrendo a uma situação anterior de envolvimento do Brasil com um conflito interno do Uruguai, alegando fazer sentido que o Paraguai receasse ser uma “nova vítima” do “imperialismo brasileiro”.
Aqui temos uma constante no pensamento de matriz esquerdista que, dialogando com os complexos de “vira-lata”, como os definiu Nelson Rodrigues, tão costumeiros no pensamento dos brasileiros, se aplica perfeitamente à questão. A aversão das esquerdas ao que elas chamam de “imperialismo” das potências – modernamente, em especial os Estados Unidos – como sendo a causa do entrave do desenvolvimento das nações “mais fracas”, cuja responsabilidade passa a ser, nessa perspectiva, quase nenhuma pelos seus insucessos, também se volta, guardadas as devidas proporções, contra o próprio Império Brasileiro, na apreciação enviesada dos fatos daquele século. Se ainda é uma potência regionalmente pelo tamanho da economia e as dimensões geográficas, embora vitimado pela fragilidade das políticas intervencionistas e obtusas de seus governos e pela submissão ideológica a um projeto que faz do país uma espécie de “capacho” de nações menores e tiranetes socialistas, àquela época, sob o Império, o Brasil era respeitado como a grande força local. Cercado por Repúblicas jovens e instáveis, com ditaduras e revoltas constantes, ele permanecia uma imensa monarquia constitucional, cujo peso não se podia questionar – conquanto fosse, e não devemos idealizar o passado, um gigante profundamente agrário. Pela lógica da esquerda moderna, portanto, o Brasil seria culpado por tudo e estaria querendo esmagar uma nação que, sob o governo de López, estaria se tornando próspera e avançada.
Outra mentira. Tanto Narloch quanto os interlocutores do documentário asseveram que o Paraguai era “rural, atrasado, opressor e burocrático”. Narloch detalha ainda que quase “todas as terras – cerca de 90 % – pertenciam à família de Solano López. Quem quisesse entrar no negócio de erva-mate tinha que ser amigo do presidente ou se submeter a um trabalho bem parecido com a escravidão. Os camponeses vendiam uma arroba (14,7 quilogramas) de erva-mate por um centavo de libra inglesa. E os figurões que tinham permissão para explorar as terras revendiam o produto por 25 libras. (…) A indústria paraguaia era pequena e existia pouco dinheiro em circulação. A exportação era nanica – em 1864 foi de 560 mil libras, seis vezes menor que a do Uruguai, que tinha a metade da população”.
O grande personagem da guerra, o ditador paraguaio que ousou encarar os três países da Tríplice Aliança que, em maio de 1865, se uniram para detê-lo (Brasil, Argentina e Uruguai – este último, levantado pelos pró-paraguaios como pivô da ousadia de invasão do Brasil), Solano López, exercia o comando com mão pesada. Narloch registra que o Paraguai tinha apenas um jornal, obviamente “controlado pelo Estado”, e que López mandou matar o próprio irmão, receoso, em paranoia, de conspirações contra seu poder. Outro fato interessante que Narloch destaca, e o documentário também foi forçado a reconhecer, é o de que a imagem de López em seu próprio país era péssima nos anos imediatamente posteriores à guerra. Narloch registra que foi “a partir dos anos 1960” que “o exemplo feudal e isolado do Paraguai foi considerado anticapitalista e caiu no gosto dos intelectuais influenciados pelo marxismo. Aconteceu assim uma bizarra união ideológica. Dentro do país, Solano López passou a ser cultuado por típicos militares sul-americanos; fora das fronteiras paraguaias, era louvado por historiadores de esquerda argentinos, brasileiros e até britânicos.” Há precedentes, portanto, para a loucura do “bolivarianismo”, do “socialismo do século XXI”, que toma emprestada a imagem de Simón Bolívar, um aristocrata influenciado pelo Iluminismo e pelas Revoluções Americana e Francesa que lutou pela emancipação dos países da América Latina, como emblema de seu movimento – a despeito de o próprio Karl Marx espezinhar Bolívar em seus escritos.
Outro mito que Narloch derrubou, e o documentário também derruba, é a idéia de que a Inglaterra, maior potência daquele tempo, estaria interessada em sufocar o emergente Paraguai e impulsionou a guerra. Pura estupidez. Primeiro porque, como já vimos Narloch demonstrar, o Paraguai não era potência emergente coisa nenhuma. Não representava ameaça à “hegemonia britânica” coisíssima nenhuma. Na realidade, por interesses relacionados ao bom e velho capitalismo, a Inglaterra, que tinha negócios na América Latina – “as empresas inglesas eram as que mais investiam em projetos de infra-estrutura no Paraguai, Brasil e Argentina” -, não tinha motivo algum para desejar uma guerra no continente. Inclusive, Narloch documenta uma tentativa do embaixador inglês na Argentina de convencer o Paraguai a não começar o conflito. Os “malvados imperialistas capitalistas” não tinham, não senhor, nada que ver com a arrogância megalomaníaca de um tirano que queria se engraçar para cima de todos os países mais poderosos de sua região, e não se podia, em sã consciência, esperar que isso ficasse sem resposta. Aos que acusam a Inglaterra de manobrar o Brasil, Narloch responde rememorando a Questão Christie – uma tensão diplomática em vigência entre os dois países, por razões pueris, mas que inviabilizaria essa suposta manipulação.
Finalmente, um ponto em que Narloch e os participantes do documentário majoritariamente divergiram: o tal do “genocídio”. Mesmo os que consideram que o Brasil não tinha a intenção sustentam que houve um verdadeiro extermínio injustificado dos paraguaios. Narloch questiona esses números, porque os censos do Paraguai não seriam confiáveis, e muitos paraguaios morreram por conta de doenças ou de fome e frio, submetidos a privações por ordens de seu próprio líder e ditador. López, morto ao fim da guerra, em vez de aceitar a derrota, colocou crianças em batalha para se proteger – e aí se diz que os soldados brasileiros foram cruéis ao avançar contra elas. Outros já dizem que isso não foi percebido de pronto. De minha parte, diria que pode ter havido um erro de proporção, mas não de natureza; se um exército de crianças vem me atacar com armas de fogo, a primeira coisa em que provavelmente pensarei será em proteger minha vida. É muito fácil condenar os soldados da Aliança hoje, analisando a história com os nossos olhos, julgando, como os grandes peritos militares que não eram, aqueles homens submetidos a uma batalha selvagem e repulsiva, longe de casa, passando privações.
A Guerra do Paraguai foi, sem contestação possível, uma trágica manifestação da barbárie humana, lamentável sob qualquer aspecto a ser considerado. Não há o que comemorar quando um tirano, um opressor que situa seus delírios de grandeza acima das necessidades do povo que governa, se lança a um duelo fratricida com os vizinhos poderosos, trazendo morte e desespero a todos. Não há, nesse contexto, uma vitória a celebrar. Mas também não podemos deixar que as esquerdas e os vitimistas crônicos explorem esses eventos históricos como argumento para justificar os próprios fracassos e destilar sua inveja dos bem-sucedidos. Hoje, Brasil e Paraguai vivem momento bastante diferente. Mas ainda há intelectuais que culpam outros países – no nosso caso, uma conjuntura econômica internacional supostamente tenebrosa e o “neoliberalismo americanófilo” do qual sequer vemos rastro – pelas suas graves mazelas. A cantilena da virtude do lado “mais fraco” segue na moda. Enquanto for assim, não daremos o passo necessário para sair do buraco em que afundamos; permaneceremos olhando para cima, apenas insultando aqueles que já respiram os ares da liberdade, enquanto somos sufocados pela própria preguiça.

Sobre o autor

Lucas Berlanza
Acadêmico de Comunicação Social, com habilitação em Jornalismo, na UFRJ, e colunista do Instituto Liberal. Estagiou por dois anos na assessoria de imprensa da AGETRANSP-RJ. Sambista, escreveu sobre o Carnaval carioca para uma revista de cultura e entretenimento. Participante convidado ocasional de programas na Rádio Rio de Janeiro.
Fonte: Instituto Liberak

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