Acabei de
sair do Enem.
E foi uma das
provas mais bizarras que
já fiz
na minha
vida.
Felipe Hermes
Felipe Hermes
Há alguns anos tenho sido, como
qualquer universitário, um mero
espectador
quando o assunto são as provas do Enem. Acompanhando de longe e
participando da recepção dos alunos que entram no meu curso todos
os semestres, não é difícil reparar o impacto da massificação
provocada
pelo exame, que substituiu vestibulares em diversas universidades
por uma única prova nacional.
Neste ano, porém, minha relação com a prova mudou. Por querer manter
aberta a opção de me transferir de universidade, decidi me
inscrever no exame, mesmo faltando meros 2 semestres para me
graduar.
Como em
todos os anos anteriores, minha mente apenas associava a prova a vídeos engraçados
sobre adolescentes que perdem a hora, ou dois dias inteiros de memes e repercussões
no twitter, além de algumas reclamações perdidas sobre o teor ideológico
do exame, as quais nunca parei para dar atenção.
Algumas curiosidades, no
entanto, não pude ignorar. Um dos estudantes me alertou, e aos
demais na roda de conversa, que provas de filosofia geralmente são “fáceis”, e que
“toda vez que lermos o termo luta de classes, devemos marcar
a opção Karl Marx”.
O jovem, que é estudante de
física no primeiro semestre,
pareceu de uma sinceridade
avassaladora – o que certamente revela mais sobre seus professores do
que sobre ele mesmo.
Logo
na primeira questão me deparo com um trecho citando o artigo “Segundo
sexo” de Simone de Beauvoir, que dizia.
“Ninguém
nasce mulher: torna-se mulher.
Nenhum
destino biológico, psíquico, econômico
define a forma que a fêmea humana
assume no seio da sociedade; é o conjunto da civilização que elabora esse produto
intermediário entre o macho
e o
castrado que qualificam de feminino.
Somente
a mediação de outrem pode constituir
um indivíduo como um Outro. Enquanto
existe para si, a criança não pode apreender-se como sexualmente diferenciada…”
Dentre as diversas
reportagens de jornais sobre assuntos
de relevância duvidosa
como as técnicas de gotejamento na lavoura,
o teor ideológico
insistia em permanecer. Críticas ao agronegócio,
aos alimentos
industrializados e as inúmeras referências às mudanças climáticas foram
constantes.
Provavelmente o ponto auge da prova tenha sido o momento de
definir a ideia
central das obras de Paulo Freire e um texto do
Movimento Sem-Terra.
Graças aos nomes a cada dia mais
estranhos como se
qualificam as disciplinas clássicas de História,
Geografia, Filosofia e
Língua Portuguesa, que hoje se encontram
todas emboladas em
“ciências humanas e suas tecnologias”,
confesso que demorei a
perceber que havia de fato uma separação
entre cada
disciplina e não apenas uma prova única de filosofia
segundo o MEC. Não
houve sequer uma citação à crise econômica
ou política pela qual
passa o país. Quem lê a prova sai com a
impressão de que a
crise de 2008 segue um assunto mais
relevante para a
maioria dos estudantes do que a
realidade atual do
país.
Ao voltar para a faculdade, segunda-feira, provavelmente devo
apenas me lembrar que
minha dignidade ficou perdida naquela sala,
junto ao cartão
resposta, onde em certo momento fui obrigado a
marcar que “o
desemprego é uma consequência prática da globalização”.
No cômputo geral,
ainda estou em dúvida se passo a respeitar
mais os calouros de
Economia por terem resistido a um ano de
massificação de ideias
capengas, ou se a lição do dia é que “felizmente”
(com todas as aspas do
mundo) nossas crianças mal aprendem
português e matemática.
De fato, se fosse para elas aprenderem
o que cobra o Enem, o
melhor caminho ainda é ser ignorante.
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