Sofismas acontecem. Mas a vida não é uma caricatura. O sofisma, cedo ou tarde, transparece. E a realidade se manifesta como os olhos a registram.
Por Percival Puggina
Percival Puggina
Twitter: @percivalpuggina
Quem quiser coerência absoluta, procure-a nas coisas irretocáveis, como a tabuada e o quadrado de Dürer. Não vá buscá-la na política. O debate político é, muitas vezes, caricatural. Trava-se num ambiente marcado pelo exagero. Ampliam-se os defeitos alheios e se sobreexaltam as virtudes próprias.
Para essa incoerência sistêmica impõem-se, portanto, limites. Quando transpostos, configuram-se condutas fraudulentas, concebidas para iludir o eleitor e induzi-lo ao erro, fazendo-o votar em ficções e eleger miragens. Lesa-se a democracia. Costumo dizer, muitas vezes sob espanto geral, que o eleitor não se engana, ele é enganado. É iludido por mentiras, promessas vãs, difamações e coisas que tais. Os partidos (de modo muito especial os partidos de massa, como são os da esquerda brasileira) contam com um caleidoscópio de estruturas de apoio. São, entre outros, corporações funcionais, grupos de interesse, movimentos sociais, sindicatos e grupos religiosos, que se somam às siglas do jogo partidário para obter o efeito psicossocial desejado.
O simples estalar de dedos do comando aciona uma usina de artefatos publicitários, coloca na estrada ônibus repletos de militantes, carros de som, e se mobiliza aquilo que uns por desatenção e outros por má intenção chamam de "o povo". Eis porque não há escândalo nacional, na última década, que mobilize "o povo". O povo, o verdadeiro povo, está bem longe dali, trabalhando para ganhar a vida e, por vias indiretas, para pagar a conta que muito provavelmente surge quando certos dedos estalam e "o povo" é recrutado. Tenho visto muito disso. Em Porto Alegre, o sossego dos moradores da Praça da Matriz acaba quando o PT vai para a oposição.
Prossigamos. Ninguém desconhece os vínculos que unem esse partido à maioria das corporações funcionais do Estado. Isso é próprio dos partidos de massa e não é próprio dos partidos de quadros (os dois grandes grupos em que a Ciência Política costuma tipificar as organizações partidárias). A longa noite de 28 de junho, quando o governo estadual chamou na chincha a base parlamentar, garantindo os votos necessários para aprovar o Pacotarso, lembrou-me a Noite dos punhais. Milhares de eleitores do governador, servidores públicos, pensionistas, precatoristas que fiavam, e todos os que confiavam no "diálogo permanente com as categorias" e na anunciada interlocução construtiva e privilegiada com o governo federal e seu cofre, foram vitimados por súbita e coletiva estocada entre as omoplatas. Ah, se lhes houvessem anunciado isso no ano passado! Ah, se as tricoteiras soubessem o que estava em gestação contra o pagamento de seus precatórios! A pergunta pode ser inquietante, desagradável, mas não é ofensiva: teriam votado como votaram?
Esta outra indagação que proponho é uma exigência da razão e me conduz onde quero chegar com estas linhas: a democracia, legitimamente, pode servir também para isso? Na noite dos punhais, deputados sempre tão falantes, professorais e portadores de soluções generosas para todas as dificuldades do Estado quando na oposição, calaram-se num silêncio obsequioso, tumular, constrangido. Entendo tudo isso. É da natureza do sistema que adotamos. Eis por que falo tanto em reforma institucional. Não é horroroso um sistema que faz cafuné na incoerência absoluta? Quem sabe começa pelos servidores públicos, diante do que têm sob seus olhos, a compreensão social para esse gravíssimo problema institucional?
Zero Hora, 03/07/2011
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