terça-feira, 10 de setembro de 2013

A Democracia Caipira


Gustavo Miquelin Fernandes
  
A democracia, postulado essencial ao processo plural de satisfação do interesse público, de maxi-participação popular e catalogador dum bloco mínimo de direitos e garantias aos cidadãos, é o valor mais caro a um Estado que se pretende sério. É o verdadeiro alicerce institucional ou mesmo um mega-valor, de onde promanam todos os demais.


No entanto, desponta para a Filosofia Política grave problema: como esse valor democrático pode ser manejado dentro de certo contexto político, constitucional, social, num determinado território e por certo povo.

Assim, falar em manejo democrático é falar se em representação ou representatividade. E, de modo muito conciso, pode-se conceituá-las como o modo de participação popular, pessoal ou impessoal, nos níveis e negócios do Estado, com vistas ao interesse público, pela forma legal e constitucional.

Tais são classificadas como: democracia direta, semidireta e indireta.

De forma muita simplista, a chamada direta é exercida pela própria comunidade interessada, de modo pessoal, sem interposição de quaisquer que sejam. O povo assume um poder efetivo de administração dos negócios públicos.

A do tipo indireta é que se viabiliza por meio de mandatários, atuantes em nome da comunidade. É um poder exercido de forma burocratizada e por meio de um ato contratual  chamado mandato político.

E, por fim, a democracia semidireta que mescla os dois anteriores critérios – adotada por nosso constituinte. Diz a Constituição Federal brasileira:

Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:
(...)
Parágrafo único. Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição. (grifado)

Assim sendo, no país, em tese, exercemos o poder, de modo direito e indireto, por meio de representantes eleitos, que através de um pacto político contratam a obrigação de nos representar nos negócios do Estado, seja no Poder Legislativo, Judiciário ou Executivo.

Ultimamente, manifestações tomaram conta do país com os seguintes motes: "Este Fulano não me representa; tal partido não me representa", etc., o que aponta, certamente, para uma crise da democracia contemporânea.

No caso do Brasil, o exercício do poder democrático está visivelmente prostituído por uma ordem tal de fatores que não é possível discorrer em pequeno texto o que demandaria singular atenção, algo que não impede uma análise crítica ainda que superficial.
Essa crise de identidade pode ser sentida entre o mandato político outorgado e os meios individuais de contenção, controle e balanço.  Exemplo dessa “síndrome de inefetividade democrática” foi o que ocorreu em junho, com os protestos. O povo, originariamente detentor do poder (demo kratos), de alguma forma chamou a atenção dos Poderes constituídos, e os mandatários não executaram tais pleitos, mantendo-se inertes a esses reclamos.

As melhorias requeridas não foram implementadas. A corrupção, leia-se Estado grande, continua firme, forte e crescente.

Personæ non gratæ, moralmente falando, continuam  todas poderosas, ditando rumos do país, algumas já declaradamente criminosas e atuando firmemente nos bastidores.

Melhorias de serviços públicos, que seriam conseguidos através de baixa tributação, profissionalização e privatização, não foram consolidadas.

Percebe-se, desta forma, que algo vai errado com a democracia.

Em outros sistemas, há o processo de recall, onde os mandantes revogam, por determinados motivos previamente aduzidos na lei, o mandato dos representantes. É uma proposta que deve ser colocada à discussão com seriedade.  Não representou corretamente, o político sofreria uma espécie de impeachment.

Também chama a atenção a chamada “democracia financiada” que causa diversas entropias no sistema de participação política. Por exemplo: ainda hoje foi noticiado que a Fundação Banco do Brasil, controlada pelo partido governista, contratou convênios no valor de R$ 36 milhões com entidades ligadas à sigla e com familiares dos dirigentes – os atos são investigados pela polícia.

Assim, fica configurada a terceirização de processos de decisão política, que passam do nível individual para o coletivo. ONGs, associações, fundações, nesse sistema podem intervir à vontade, elas tem total liberdade (já que se trata em tese de democracia!) mas será que, por serem irrigadas com dinheiro púbico, tais atuações não acabam desvirtuadas e viciadas? Junta-se aqui utopias coletivistas com o dinheiro público - será que isso faz parte de uma democracia legítima?
Os grandes deturpadores da democracia são o poder financeiro que é facilmente concentrado nas mãos de burocratas e agentes estatais e o poder cultural e dos grandes grupos de pressão. A democracia, aquele valor tão caro, não raramente sucumbe a tais investidas.

Na verdade, a democracia, como forma de distribuição de poder os seus detentores originários é, no fundo, um consenso fabricado entre os agentes que institucionalizam decisões que perpetuam o estado de coisas (no que tange à manutenção de cargos, privilégios, salários incompatíveis com a moralidade e disponibilidade financeira do Estado, etc). No Brasil, o conceito corrente de democracia passar por esse absurdo.

Visa ainda esse consenso formar padrões decisórios que reflitam aos olhos da população menos atenta como um certo ativismo político (na verdade, eleitoreiro) por meio de liberação de verbas, discursos inflamados e maciça propaganda mentirosa. A democracia no Brasil operada por esse primeiro grupo é apenas um mise en scène desavergonhado onde os portadores da cártula do poder (povo) são redondamente ludibriados pelo discurso, por mostras falsas de ativismo operante e uma aparente participação na vida política do país.

Na realidade, democracia é, por aqui, confundida com posturas eleitorais, dessas que ocorrem a cada biênio. Nada mais perigoso que essa confusão. Processo eleitoral se constitui apenas pequena parte integrante do sistema democrático ora em estudo. A excessiva proliferação de siglas também é vista enganosamente como sintomático da ambiência democrática. Pelo contrário, pois jaz nela todo tipo de ideologia embolorada, engodo, membros expulsos ou não aceitos; constituem-se em verdadeiras “curvas de rio”.  

A quantidade de dinheiro que irriga o processo de eleição é monstruosa. Há o mitológico “horário eleitoral gratuito” que assalta o cidadão pagador de tributos. Ainda fosse dinheiro a ser empregado em um processo coeso e produtivo, mas é apenas destinado para pagar espaços midiáticos para populistas ofereceram utopias, mentiras, promessas de “almoço grátis” (benefícios sem contraprestação produtiva que os garanta) e consolidar ideologias esquerdistas.

O mesmo se diga do poder cultural da grande imprensa, que vai sedimentando conceitos errôneos, promovendo concepções distorcidas, e mediante o patrocínio governamental necessário das veiculações e a manutenção da outorga das concessões públicas, vai embutindo um senso popular imbecilizado. A Universidade, item que sempre destaco nos textos, tem parcela grande de culpa no atraso intelectual do povo, que respinga certamente no processo democrático.  Semeiam esses dois a confusão e desordens generalizadas, dificultando o acesso democrático.

Há ainda os grandes grupos de pressão, que aproveitando da astenia e apatia reinantes, assumem lugar como negociadores, pleiteando seus mais variados objetivos. Não que todos sejam ilícitos; alguns são legítimos; mas o que esperar de uma sociedade formatada por perversões ideológicas e um assombroso espectro coletivista.

Esses grupos de pressão devem inexoravelmente se aproximar de Governos para se infiltrarem nas instâncias decisórias e levar adiante seus pleitos. O que fazem neste esquema com a democracia (como processo político de participação individual visando ao bem comum), eu deixo para conclusão dos leitores...

Quem sabe seja a hora de cada qual se representar mais, se informar, usando inclusive de instrumental jurídico posto à disposição, afastar a ideologia da grande imprensa (engraçadamente chamada por analfabetos de “golpista”), de blogs chapas-brancas e de ONGs financiadas por Governos com dinheiro de tributos, participando um pouco mais. A democracia está aí, como arsenal institucional, para ser utilizada.

Não acredito muito em democracia participativa pura; é humanamente impossível, talvez em certos cantões suíços, caso das landsgemeindes, mas observo que nossa representatividade está contaminada por uma ideologia coletivista tosca, pra lá de paternal.

Não há necessidade de protestos às escuras, tomada de Poder, plebiscitos, referendos; nada dessas fanfarronices terceiro-mundistas; apenas uma participação mais efetiva, crítica, informada, e que não se dobre às concessões baratas, em todos os níveis do Estado.


É assim que se faz democracia. 

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