“Patrimonialismo e a realidade latino-americana”: um retrato das nossas raízes
Entre as obras comercializadas pela loja do Instituto Liberal, encontra-se um item reduzido em tamanho, mas que abre as portas a enormes possibilidades de exploração das raízes brasileiras e latino-americanas. Da lavra do professor Ricardo Vélez Rodríguez, colombiano e autor de inúmeras atividades acadêmicas no Brasil, Patrimonialismo e a realidade latino-americana, publicado em 2006, em tempos de reflexão sobre os rumos que temos a percorrer, traz à tona importantes informações sobre o que nos trouxe até aqui. Vale a pena chamar a atenção para esse trabalho sintético e valoroso, sobretudo quando o cientista político Bruno Garschagen, em seu best seller Pare de acreditar no governo – por que os brasileiros não confiam nos políticos e amam o estado, procura diagnosticar, com um tom distinto, o mesmo problema.
Diante da realidade de que o Brasil, bem como todo o continente, se encontra ainda refém de uma cultura política muito voltada ao crescimento do Estado e à manutenção de uma sociedade demasiado dependente dele, o professor Vélez Rodríguez excursionou até as origens da colonização, a partir das metrópoles ibéricas (Portugal e Espanha), para entender a nossa realidade. Nessa jornada, um dos aspectos mais estimulantes do pequeno livro é a riquíssima presença de indicações bibliográficas para o aprofundamento dos conceitos, em especial de autores ligados às escolas sociológicas de Max Weber (1846-1920) e Karl Wittfogel (1896-1988), que desenvolveram os conceitos fundamentais na interpretação do que se denomina “Estado patrimonial”, marcado pelo “patrimonialismo”.
De acordo com Weber, o patrimonialismo é “aquela forma de dominação tradicional em que o soberano organiza o poder político de forma análoga ao seu poder doméstico”. A confusão entre os interesses particulares e a organização do Estado e de suas atividades que marca o Estado patrimonialista se consolidou em Portugal, segundo as perquirições do professor colombiano, desde a Revolução de Avis (1385). Ele referencia o liberal português Alexandre Herculano (1810-1877), que “destacou a ausência de feudalismo em Portugal”, sistema que, descentralizando o poder, facilitou a que o Estado nacional posteriormente se configurasse em uma negociação das diferentes instâncias de poder, com o surgimento autônomo de uma burguesia – posteriormente industrial – e a concessão de poder da nobreza para o monarca, com limitações claras e a organização de Parlamentos. Sem esse momento histórico feudal, Vélez encontra em outro autor, Raimundo Faoro, a explicação de que, em Portugal, “a nobreza e a burguesia jamais tiveram poder suficiente para se contrapor ao poder inquestionável do monarca. Assim, os nobres, mais do que de uma tradição que independesse da Coroa, dela recebiam o prestígio, sendo praticamente funcionários do príncipe”. As principais atividades econômicas e políticas se encontraram submetidas a esse jogo de favores, formando uma imensa burocracia de “capacidade esclerosante”, no dizer de Vélez. Apesar de ter havido a figura dos municipalismos administrativos erguidos a partir do poder local dos senhores de terra (no Brasil, das sesmarias e das capitanias hereditárias), formando o que Alexandre Herculano chamava de “liberalismo telúrico”, logo esses mesmos senhores corromperam o processo e tudo foi cooptado “pelo centralismo da Coroa, ao longo do período filipino, no século XVII”. Em consequência desse legado, acabou se consolidando em terras tupiniquins “um Estado mais forte do que a sociedade, em que o poder centrípeto do rei, no período colonial, e do imperador ao longo do século XIX, ou do Executivo, no período republicano, criou forte aparelho burocrático alicerçado no sentimento de fidelidade pessoal”. Mais adiante, entraria ainda outro ingrediente, o modelo de “Estado modernizador” do Marquês de Pombal, também objeto de muita atenção no livro de Garschagen, e que, usando um conceito dos autores Simon Schwartzman e Antônio Paim, Vélez chama de “patrimonialismo modernizador”, em que o Estado centralizador incorpora os ditames e práticas da ciência moderna, formando a gênese da tecnocracia burocrática, que despreza e desencoraja a participação efetiva da sociedade na política.
O positivismo do golpe republicano, que desembocaria no domínio igualmente patrimonialista das oligarquias estaduais (os “clãs políticos”), e a “ditadura científica” que inspira o castilhismo e o Estado Novo de Getúlio Vargas, bem como o regime militar dos anos 60, 70 e 80, se alimentam dessa matriz, bem como de outra concepção, a de “autoritarismo instrumental”. Tal como a define outro autor com que Vélez dialoga em seu trabalho, Oliveira Vianna, esse tipo de pensamento considera que “o liberalismo político seria impossível na ausência de uma sociedade liberal e a edificação de uma sociedade liberal requer um Estado suficientemente forte para romper os elos da sociedade familística”, isto é, para combater o patrimonialismo – e, mais tarde, o socialismo e o comunismo – e criar uma sociedade liberal-democrática avançada, um regime autoritário que tutelasse o país seria o único caminho. Na prática, o século XX assistiu a uma sucessão de trocas de grupos de poder sedimentados em mesclas mais ou menos diversificadas dessas mesmas matrizes de pensamento social e de percepção do Estado, a cujas teias de influência assistimos ainda hoje e tanto ansiamos superar.
Assim como o livro recém-lançado de Garschagen, Vélez também já reconhecia o valor do esforço realizado durante o Segundo Reinado, com a elite política do parlamentarismo entre 1841 e 1889. Ele lembra o elogio do primeiro-ministro francês François Guizot a essa tentativa de experiência modernizadora, inspirada “no liberalismo lockeano e na versão liberal-conservadora de Benjamin Constant de Rebecque”, bem como admite a presença de atores políticos e filosóficos mais associados à mentalidade liberal de matriz anglo-saxônica, como Rui Barbosa no Brasil, sem necessariamente desprezar as bases culturais ocidentais da formação ibérica e, consequentemente, também da América Latina (tal como destaca Alexis de Tocqueville, pensador citado no livro e com quem Vélez tem afinidades confessadas). No entanto, a tônica que nos conduziu até agora foi, infelizmente, a da opção paralisante e limitadora pela persistência do patrimonialismo.
Chegando aos dias de hoje, Vélez retira de Paim uma análise sucinta e imperdível da história do Partido dos Trabalhadores, apontando o governo de Lula como uma fase de recrudescência do modelo estatista, e sua posição de centralidade no esquema do continente, junto a Cuba e ao bolivarianismo chavista, via Foro de São Paulo. A “ação deletéria” de setores da Igreja Católica no combate ao agronegócio no Brasil e no apoio a movimentos como o MST, a presença das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia, a integração dos movimentos de esquerda no poder desses países para manter e aprofundar esse modelo atrasado, estão entre os aspectos que Vélez aponta como desanimadores.
No entanto, ao fim do opúsculo, Vélez relaciona alguns motivos que, naquele 2006, ele considerava animadores, podendo fortalecer um movimento latino-americano rumo à superação das mazelas patrimonialistas, que diferentes regimes, desde a monarquia colonial até o socialismo lulopetista, vêm construindo – e sobre as quais vêm se ancorando. Entre esses motivos, a “consolidação da democracia e da economia de mercado nos principais países do Mercosul” e a influência dos países desenvolvidos. A realidade subsequente ainda não confirmou esses últimos apontamentos. No entanto, Vélez acredita que “Alexis de Tocqueville mostrou que o caminho para iluminar a luta pela conquista da autêntica democracia nos nossos países deveria ser o da defesa da liberdade para todos os cidadãos” e que, segundo o mesmo pensador, “uma época mais ou menos distante chegará, em que os sul-americanos formarão nações florescentes e esclarecidas”. Esperamos sinceramente que isso seja verdade, e que nossos esforços de hoje sejam cruciais na preparação dessa futura realidade. Para isso, reforçamos o que destacamos ao começo: vasculhar o passado e entender como tudo começou é parte do caminho inadiável para, de fato, darmos o impulso em frente.
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