Editorial O Estado de S.Paulo
19 de janeiro de 2014
Na palavra dos gerontocratas de Cuba, acredita quem quer. A expectativa dos incautos de que a "abertura econômica" promovida por Raúl Castro pudesse sinalizar uma mudança mais ampla na ilha - digamos, ao estilo chinês - não resiste aos fatos. O último golpe de propaganda do regime foi o anúncio do fim das restrições à venda de carros. Como Cuba, além das praias, dos charutos e da ditadura, é conhecida por seus imensos carros americanos dos anos 50 - os últimos que puderam entrar no país antes da revolução de 1959 -, a medida soou como um avanço e tanto. Na prática, tudo não passou de mais um escárnio da ditadura cubana.
Quem foi a alguma das lojas de carros autorizadas pelo Estado, na esperança de, enfim, conseguir trocar seu decrépito Buick por um automóvel mais moderno, deparou-se com preços sem paralelo em nenhum lugar do mundo. Um Peugeot 508, modelo 2013, custava nada menos que US$ 262 mil - seu equivalente em lojas capitalistas não passa de US$ 30 mil. A média salarial em Cuba é de US$ 20. Logo, a venda de carros pode até estar autorizada, mas não haverá ninguém em Cuba rico ou louco o bastante para comprá-los. "O que eles pensam que estão vendendo? Aviões?", disse à revista The Economist um dos frustrados clientes. "Eles não querem vender nenhum carro. É tudo um show", reclamou outro.
A Economist especula que, na verdade, a autorização para a venda de carros é apenas uma forma de acabar com o mercado paralelo de licenças para compra de automóveis novos. Essas licenças eram concedidas pelo governo como prêmio a esportistas, artistas e destacados militantes do Partido Comunista Cubano (PCC). Em vez de comprar o carro, porém, o laureado passava adiante a preciosa autorização, faturando cerca de US$ 12 mil, segundo a última cotação. Como agora, em tese, todos podem comprar um carro, a licença não vale mais nada.
Seja como for, está claro que a economia de Cuba não passa por nenhum processo de liberalização, nem mesmo simbólica. E o discurso de Raúl Castro no 55.º aniversário da revolução, em 1.º de janeiro passado, deixou claro que a intenção é, ao contrário, reforçar os controles estatais.
Ele não fez menção senão marginal aos ajustes do modelo econômico anunciados no 6.º Congresso do PCC, em 2011, e rechaçou "tentativas de introduzir sutilmente plataformas de pensamento neoliberal e de restauração do capitalismo neocolonial" em Cuba. Em lugar disso, cobrou a adesão incondicional aos compromissos ideológicos assumidos no 6.º Congresso, a respeito dos quais, disse ele, "não se avançou o necessário". Deve-se esperar, portanto, uma radicalização ainda mais acentuada do comunismo na ilha, a despeito do fato, notório, de que foi essa radicalização que condenou Cuba à paralisia econômica depois que a fonte soviética secou.
Mas o instinto de sobrevivência dos Castros manda que Cuba alivie um pouco a carga do depauperado Estado - e essa é a razão pela qual Raúl permitiu que os cubanos abrissem pequenos negócios e pudessem vender seus imóveis, pois dessa maneira deixarão de ser funcionários públicos, que são mais de 90% da força de trabalho no país.
Também é o que explica a aposta na chamada Zona Especial de Desenvolvimento, na qual, tal como em seu similar chinês, são permitidas experiências de perfil capitalista. Nas palavras do Granma, "nessa zona serão colocadas em prática políticas especiais, com o objetivo de fomentar o desenvolvimento econômico sustentável, estimulando o investimento estrangeiro e nacional, a inovação tecnológica e a concentração industrial". Essa zona engloba o Porto de Mariel - cuja construção, feita pela Odebrecht, contou com mais de US$ 600 milhões de crédito do BNDES. Como se nota, trata-se de uma boa oportunidade de negócios, tanto para investidores externos - o Brasil, em particular - quanto para a nomenklatura comunista cubana.
Já os cubanos comuns, sem condições de investir em nada que não seja a sua sobrevivência cotidiana, terão de continuar a se contentar com seus carros velhos e com os favores do Estado.
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