Bibliofobia: a Medusa e a direita nas ruas
A mitologia grega, junto à Bíblia, fornece o âmago do simbolismo que subjaz até mesmo na ciência moderna para o homem ocidental. Suas referências permanecem sempre atualizadas pelo religare do mito: a união do tempo secular, dos séculos encadeados, a um eterno presente ao qual podemos retornar, bebendo sempre na fonte primeva do mundo através da participação em sua apoteose.
É da mitologia grega a história de Medusa, uma das três Górgonas, terríveis monstros femininos capazes de transformar quem as contemplasse em pedra.
Seus cabelos eram serpentes venenosas, símbolo eterno da sabedoria proibida, que deve ser usada sempre com rigorosa circunspecção. O próprio termo grego pharmakon, significando tanto “remédio” quanto “veneno”, nos lembra ainda hoje da diferença entre a vacina e a droga, sendo tão usado na filosofia para identificar a indeterminação. Mesmo na Bíblia, a serpente, cha nachash, era a mais sábia das alimárias dos campos do Éden – e foi a instigadora da busca do conhecimento do bem e do mal que causou a Queda.
Medusa, a guardiã, em uma mitologia não-maniqueísta, em que bem e mal nunca eram facilmente discerníveis, era usada como amuleto de proteção contra forças infensas – sua cabeça foi colocada no próprio escudo de Atena, deusa da sabedoria. Mais ou menos como as gárgulas protetoras das catedrais cristãs.
Coube a Perseu, semi-deus, a incumbência de enfrentar a poderosíssima força monstruosa, memorial aterrorizante do caos e do mundo incível, mas também guardiã de um relicário precioso aos homens de todas as épocas: o perigoso conhecimento que pode aclarar as mentes, como embotar o espírito.
Perseu, munido da proteção de Atena e Hermes, tinha uma faina horrível a cumprir por qualquer herói, mesmo Héracles (ou Hércules), por ser uma tarefa que não lograria êxito apenas pela força. Aprovisionado com uma capa de invisibilidade e uma espada, foi todavia um realista escudo espelhado que permitiu a Perseu finalmente livrar o mundo da apavorante ameaça: Perseu enxergou a criatura através de seu inofensivo reflexo, sem encará-la diretamente e ser petrificado, podendo então degolá-la. A força do caos derrotada pela engenhosidade da mente humana inspirada pelo divino.
Vivemos hoje numa situação histórica em que a ameaça da Medusa se faz novamente presente, fragmentada que seja pela mentalidade moderna e seu apreço pelo reducionismo.
O Brasil de 2015 sentiu imediatamente no noticiário o desmoronamento do projeto de poder central, “redistributivista” e de linguagem ora social-democrata, ora francamente socialista do PT e da esquerda política, que escreveu a narrativa e os valores que formam um prisma sob o qual toda a realidade é encarada.
Segundo tal narrativa, nossos problemas não são questões muitas vezes internas, de incertezas e conflitos pessoais na luta contra nosso destino, em que muitas vezes não é claro qual o caminho correto a ser seguido, mas sim que todos os problemas reduzem-se apenas à “desigualdade social”, devendo toda a sociedade se curvar a um projeto central de poder agigantado do Estado, que redesenharia toda a atividade humana para que todos ganhassem praticamente o mesmo, e então todas as adversidades da vida se dissolveriam num Éden terreno, uma Sião modernosa.
É, em suma, apenas uma repaginação barata da velha retórica comunista, que tratam como se estivesse morta tão somente por ter trocado o palavreado. De Marx aos progressistas e à esquerda de 140 caracteres, pouco mudou, a não ser a quantidade de eufemismos para camuflar o velho “outro mundo possível” do Gulag.
Nas palavras de Antonio Negri, “comunismo é o reino do amor”, em que a individualidade humana é suprimida e comutada pela adulação a um projeto de poder social.
Toda a verborréia que é propagandeada para a esquerda como um cabresto, e que faz com que ela passe a encarar como se fosse a própria realidade, é uma repetição com eufemismos, metáforas, retificações, metonímias, retroações ou metaplasmos do antediluviano, cafonérrimo e bitolado discurso de propaganda dos revolucionários soviéticos.
Desigualdade social, feminismo, sindicalismo , cotas, acusações falsas de racismo e homofobia, fair share, apelos histéricos a uma “democracia” indefinida, xingamentos variando de “saudosista da ditadura” a “nazista” contra todo de quem se discorda, tornando-os uma maçaroca uniforme e monstruosa, são todos banhos de loja no batido e chatíssimo arrazoado bolchevique.
Adestrados pelo programa uniformizante de Educação brasileira, calcado em pedagogos marxistas como Paulo Freire, Lev Vygotsky e Jean Piaget, os alunos brasileiros podem se tornar até “cultos” aprendendo na faculdade, mas apenas no sentido de se adentrarem em profundidade numa cultura específica.
Culturas, variadas e capilosas, podem tanto apresentar grandes verdades quanto nos cegar para outros aspectos da realidade. São como óculos coloridos: fazem-nos ver o mundo apenas pela cor da lente. Ao vermos o mundo pela visão de um falante de búlgaro, de um foragido da Coréia do Norte, de um aristocrata austríaco do século XIX, podemos descobrir muitas verdades novas, como também perder muito do contato direto com a realidade próxima. Neste sentido é que a filosofia, que busca leis universais por detrás de palavreados temporários e cegantes, é “desculturalizante” – faz-nos enxergar o mundo sem os óculos de uma única cultura.
O choque que a esquerda e sua narrativa pronta, maniqueísta e reducionista teve ao ver que o projeto de poder para “corrigir” a desigualdade não rendeu os frutos desejados com o novo mandato de Dilma Rousseff, já nos primeiros meses de 2015, foi quase como um raio cósmico ou uma fissura existencial, justamente por até os mais “cultos” dos pensadores desta cultura marxista não terem, literalmente, palavras ou conceitos adequados para compreender por que o noticiário é tão desastroso para a logorreia petista (vide Renato Janine Ribeiro, novo ministro da Educação, ou qualquer membro do palpitariado coletivo, que agora tem de esbater com frases de efeito sem conteúdo, como “Dilma virou tucana” ou “o PT não é mais de esquerda”, para tentar explicar o que acontece).
Isto tudo tem uma explicação simples: mesmo os petistas mais inteligentes são inteligentes apenas numa única linha de pensamento, o cânone “sagrado” do marxismo. Mesmo que considere “superado” o “fracasso” comunista (eufemismo para “genocídio”), ainda pensa de acordo com suas palavras, seus conceitos, seus valores – a ponto de acreditar que eles são a própria realidade, e não um filtro para não enxergá-la.
Quando tais “intelectuais” vêem milhões de pessoas nas ruas (provavelmente muito mais do que os milhares aventados pelos Datafolhas da vida) buscando algo diferente da repetição do poderio estatal há séculos prometendo fartura e entregando totalitarismo, corrupção e evaporação do nosso dinheiro, tudo o que têm em mãos é acreditar que todos são pessoas malévolas, tão ruins que querem a volta de uma ditadura militar igualmente estatólatra ou que são simplesmente “fascistas”.
Se estes intelectuais tivessem alguma vez fugido de sua caverna platônica e lido livros que não sejam repetição do que já acreditam, ou seja, se tivessem conhecido visões políticas que vão além dos bordões repetitivos sobre desigualdade, e soubesse de fato o que conservadores e liberais pensam, quais são seus argumentos, seus métodos, seus objetivos, suas causas, suas origens e seu desenvolvimento, não estariam tão apatetados sem conseguir explicar a realidade atual.
Isto se chama bibliofobia. O medo doentio, primitivo, rude, bestial e incivilizado de livros. Quando alguém se considera “culto” conhecendo apenas uma versão da história, por mais que leia 18 horas por dia, só vai se tornar mais divorciado da concretude do real quanto mais ler.
A esquerda, pelo vezo em ser reducionista, tem verdadeiro medo ancestral de algo que não seja confirmação de suas próprias crenças. Intelectuais de esquerda são conhecidos por qualquer conhecedor de pensadores famosos do século XX: Gramsci, Foucault, Deleuze, Lacan, Adorno, Bakhtin, Hobsbawm, Negri, Butler, Žižek, Mészáros, Antônio Cândido, Florestan Fernandes, Caio Prado Jr. etc.
Os pensadores de direita, liberais ou conservadores, inclusive os básicos, leitura canônica para se compreender as premissas fundamentais do que se está discutindo, são completamente desconhecidos de universitários e mesmo intelectuais esquerdistas. Até pedras de toque como Edmund Burke e Tocqueville são lidos apenas pela sua visão parodiada esquerdista, que nunca trava contato com pilares do pensamento como Eric Voegelin, Eugene Webb, Lionel Trilling, Russell Kirk, G. K. Chesterton, Erik von Kuehnelt-Leddihn, Ludwig von Mises, Bernard Lonergan, Mário Ferreira dos Santos, Richard Weaver, Eric Weil, Michael Oakeshott, Ortega y Gasset, P. J. O’Rourke, George Santayana, Theodore Dalrymple e tantos outros.
Isto se dá porque, tal como a crítica de H. L. Mencken ao vitoriano Anthony Comstock, a esquerda crê que virtude e ignorância são sinônimos. Tal como a Medusa mitológica, ela tem medo de que alguém encare as serpentes da sabedoria e se torne uma pedra – ou, em sua visão falseada da vida real, que alguém trave conhecimento com algum pensador que não seja repetidor da litania esquerdista e se torne um não-esquerdista, ou mesmo um “direitista”, deixando de fazer parte deste mundo.
Na verdade, a esquerda sabe disso: afinal, este foi o destino obrigatório de vários pensadores de esquerda que tentaram estudar a direita, como Eric Voegelin, Edmund Wilson, David Horowitz, Benedetto Croce, Leszek Kołakowski e Thomas Sowell. Todos foram marxistas, todos recusaram o pensamento de esquerda em sua integridade após travarem conhecimento com idéias melhores.
Até escrevem livros explicando o que é o pensamento de esquerda, como os dois “Leftism”, de von Kuehnelt-Leddihn, as séries “Intellectuals”, de Thomas Sowell e de Paul Johnson, “A Traição dos Intelectuais”, de Julien Benda, ou “Pensadores da Nova Esquerda”, de Roger Scruton. Para os direitistas, conhecer a esquerda é obrigação. Para os esquerdistas, há um medo de livros de direita que lembra com proximidade assustadora a Revolução Cultural Chinesa e a queima de livros, a literatura proibida do Samizdat na União Soviética e toda a censura a material “contra-revolucionário” nos países socialistas.
Por isso há ex-esquerdistas, mas nunca ex-direitistas.
O público brasileiro, por mais que ainda não conheça um prisma melhor para encarar a realidade (a obra de boa parte destes pensadores ainda nem sequer é encontrada em português), já está buscando ser ex-esquerdista. Por si, mesmo sem imenso protagonismo de intelectuais de direita quase inexistentes no país: a esquerda cansa.
Com uma bibliofobia que é incutida e passada de geração em geração pelo nosso sistema educacional socialista, todo o debate, como disse uma caricatura de jornalista, é apenas “entre iguais” – só se debate com o espelho, num umbiguismo de auto-congratulação redundante que passa a acreditar que os aplausos são verdadeiros.
Basta-se comentar qualquer tema que fuja um milímetro ao cânone de opiniões prontas ditados pela esquerda, como fazer parte de uma marcha pelo impeachment constitucional da presidente, não ser favorável ao Bolsa Família, defender a redução da maioridade penal, permitir que visões religiosas sejam discutidas na política ou, horror non plus ultra, ler a Veja, o Rodrigo Constantino, o Reinaldo Azevedo e, pior de tudo, o Olavo de Carvalho, para que o interlocutor, ao invés de deslindar o que é verdadeiro do que é falso no conhecimento e na opinião que tem diante de si, vire para o lado com medo tórrido do discurso alegando que aceita qualquer debate, desde que tais temas não sejam colocados em debate de forma alguma.
E toda a visão que o país tem da tal direita política se torna como a da Medusa: nunca é vista de frente, é temida como uma sabedoria desumanizante, mais mortífera do que o fruto do Bem e do Mal do Velho Testamento. O que é permitido conhecer dela não é o que ela diz, o que ela é, o que ela representa ou sua construção intelectual, sua forma e conteúdo, seus desejos, valores, métodos, princípios, intenções e argumentos, e sim apenas uma visão caluniosa e falseada, vista apenas pelo espelho distorcido, opaco, nuvioso, reducionista e falso da esquerda.
Abandonando a eloquência “social” e abraçando feliz o individualismo, o intelectual de esquerda quer ser visto como alguém que venceu “preconceitos” e visões “injustas” que permeariam toda a sociedade (e, portanto, são todas de seus inimigos políticos, e não de seus concorrentes, ou mesmo conseqüências inescapáveis de sua própria política), tendo estudado muito por mérito próprio. Quer ser visto quase como um herói.
Contudo, é um heroísmo falso e tirânico: não é ele quem degola a poderosa Medusa olhando com cuidado para seu rosto desumanizador e, vencendo as amarras que escondem o verdadeiro conhecimento, consegue dominá-lo e trazê-lo como espólio.
Ele apenas cria um espelho esfumaçado, desenha um monstrinho inofensivo, critica-o com toda a facilidade infantil e quer que todos o congratulem por matar o monstro, a “direita”, através de seu falso espelho – mas nunca, nunca travar contato direto com ela.
É o que faz, hoje, o deputado ex-Big Brother Brasil Jean Wyllys, alçado na primeira candidatura à Câmara dos Deputados sem votos suficientes, apenas no bojo da votação de outro deputado de seu partido, ao chamar Kim Kataguiri, um dos principais organizadores das manifestações anti-Dilma dos dias 15 de março e 12 de abril, de “analfabeto político”, por só ter 19 anos e ser “ultra-liberal”.
Quando Kim mostra um conhecimento maior do que é liberalismo além da quimera inventada pela esquerda, Wyllys responde julgando que a realidade não existe, e sim apenas o seu próprio espelho: se tudo o que Wyllys ele mesmo ouviu na vida sobre liberalismo é uma descrição ridícula de algo injusto, alguém que vence a bibliofobia do olhar de Medusa e lhe traz a cabeça degolada do monstro só pode ser alguém igualmente injusto, o que mantém a tranquilidade de Wylys sob os signos e conceitos de sua própria ignorância a medir o mundo sofisticamente.
Vencendo o medo de ler livros que discordem de nossas opiniões (esquerdistas lendo liberais e conservadores, liberais e conservadores lendo esquerdistas e uns aos outros), somos capazes de vencer o caótico e primitivo olhar de Medusa e degolá-la, tornando-a um talismã para a nossa sabedoria, afugentando visões de iniquidade e falseamento do mundo.
Acreditando no olhar de Medusa e louvando o próprio medo ao conhecimento, somos transformados em pedras, crendo que vencemos o monstro.
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