Star Trek e as ideias da liberdade (I)
Em 8 de setembro de 1966, os telespectadores americanos estiveram pela primeira vez onde nenhum homem jamais esteve. Era a estreia da consagrada série Star Trek (em português, Jornada nas Estrelas), criação de Gene Rodenberry. Em sua missão de cinco anos pelo espaço sideral, no século XXIII, a espaçonave USS Enterprise, comandada pelo capitão James Tiberius Kirk, tendo na tripulação opostos tão profundos quanto o icônico Spock, alienígena do Planeta Vulcano que se guiava sempre pela lógica e tinha dificuldades em compreender as emoções e subjetividades humanas, e o turrão e passional doutor Leonard McCoy, introduziu nas telas diversos conceitos criativos para a ficção científica, investigando novos mundos, diferentes civilizações e questionando os limites das leis físicas e biológicas conhecidas. Também deram as caras várias referências literárias, desdeO Médico e o Monstro de Louis Stevenson até Hamlet de Shakeaspeare. Um prato cheio para os fãs do gênero, que ainda geraria várias séries derivadas e filmes relacionados, numa longeva franquia aclamada por gerações.
O século XXIII de Star Trek é uma realidade em que, depois de terríveis guerras nucleares nos anos 90 (que, quando da produção dos episódios da série clássica, seriam o futuro), os seres humanos sobreviventes conseguiram desenvolver sua tecnologia e civilização a tal ponto que acabaram por cruzar o espaço e se encontrar com outras civilizações mais desenvolvidas. Juntamente com povos como os vulcanos e os andorranos, os humanos estabeleceram uma congregação pacífica chamada Federação dos Planetas Unidos, que tinha o objetivo de estabelecer relações fraternas e de troca de experiências e conhecimentos entre as diferentes espécies, com propósitos de avançar no entendimento do Universo. É explícito que a motivação constante dessa sociedade que transcendeu os limites convencionais da civilização atual é obter mais e mais informações e saberes sobre o que está além, e atingir esferas em que “jamais esteve”. O progresso científico e social é a legenda buscada pelos almirantes e oficiais da Federação. Para chegar a esse ponto, a humanidade terrestre teve de superar basicamente todos os seus conflitos, diante dos traumas atômicos, de modo que encontramos pessoas com todas as cores de pele, origens e nacionalidades nas equipes da Frota Estelar, o braço “militar” e exploratório da Federação. A Frota excursiona pela Galáxia buscando entrar em contato com mundos ainda inexplorados, sempre obedecendo à sua Primeira Diretriz: não interferir no processo de desenvolvimento científico-tecnológico normal dos seus habitantes.
Esse pano de fundo quase paradisíaco – mas inequivocamente perfeito para as mais estimulantes tramas de ficção espacial -, porém, no entendimento de muitos que se debruçaram sobre a série com uma postura mais interpretativa, se desenrola em uma sociedade com um sistema econômico difuso e questionável. Vários desses analistas, alguns deles libertários, acreditam que a Federação dos Planetas Unidos seria regida por um socialismo utópico profundamente surreal, advindo de uma abolição da escassez. Nenhum deles, ou pelo menos que tenhamos visto, nega a profunda originalidade dos roteiros da série ou seu valor para a ficção científica, e eu, um fã confesso, não o farei também; a crítica se concentra no que se deduziu a partir da estrutura social construída naquele universo de ficção.
O economista mexicano Marco Antonio Gómez, em artigo para o Dinero em imagem (o original, por óbvio, está em espanhol), sintetizou algumas das sugestões de análise da forma de funcionamento da sociedade e das riquezas em Star Trek. Relacionando algumas evidências, ele menciona, por exemplo, a cena do inesquecível quarto filme, The Search for Spock, em que a tripulação da Enterprise se vê obrigada a viajar para o passado e encontra dificuldades porque, no século XX, “eles ainda usavam dinheiro”. E também as declarações mais sugestivas do capitão Jean Luc Picard, interpretado por Patrick Stewart na série derivada New Generation, que diz explicitamente que o sistema econômico do seu tempo não é o mesmo que o do século XXI, e que foi possível construir uma realidade em que a “acumulação de riquezas” não é mais uma motivação importante para a execução das grandes tarefas, dedicando-se todos apenas ao desenvolvimento pessoal e social. Também relaciona as menções, ao longo dos episódios, aos “créditos” da Federação, na possível indicação de um sistema econômico direcionado pelo poder central da entidade. Nenhum desses momentos, é claro, denota muito amor ao capitalismo.
Gómez sugere que a Federação dos Planetas pode ter um de três modelos econômicos, de acordo com a maioria dos analistas da série: uma economia participativa, em que o sistema de produção de bens e serviços se daria de maneira consensual na sociedade, “regendo-se por valores como igualdade, solidariedade, diversidade, autodeterminação e eficiência”; uma economia centralmente planificada, em que a Federação seria dona de todos os meios de produção e proveria bens e serviços para todos; ou, no fim das contas, um perfeito, sofisticado e iluminado comunismo. Todas essas opções, como se vê, sugeririam uma superação miraculosa de todos os problemas inerentes à proposta de uma economia socialista – que, na prática, sabemos que acaba sendo sempre uma forma de capitalismo de Estado mais ou menos controlado, pois uma economia perfeitamente socialista não existe. Mises, Hayek e todos os outros já apontaram à exaustão a impossibilidade de uma tal ordem de coisas funcionar.
Um escritor chamado Rick Webb acrescentou uma crítica, com a qual, a priori, estamos de acordo, em linhas gerais. Não é possível afirmar, a partir do que se vê em toda a franquia, que o mundo do futuro aboliu a propriedade privada; muito menos que as hierarquias tenham sido eliminadas. A Frota Estelar inteira se baseia em um sistema de patentes e posições hierárquicas, em que os oficiais vão ascendendo de posição de acordo com o julgamento de seus superiores. Uma escala de valores que não tem nenhuma identificação com a ideia de uma abolição das classes. É verdade que os regimes socialistas ditatoriais também não chegaram jamais a esse ponto, mas se Star Trek for uma representação utópica de um “comunismo intergaláctico que funcionou”, seria esperável que tivesse logrado êxito em todos os aspectos em que o socialismo jamais o fez, e não é o que se vê. No entanto, ele também enxerga características de viés estatizante e antiliberal na Federação. Em suas palavras, seria “uma sociedade proto pós-escassez, surgida de um capitalismo democrático. É basicamente um capitalismo social europeu levado a um ponto em que ninguém deve trabalhar se não quiser”.
Isso teria sido provocado pela invenção do replicador. No universo de Star Trek, essa tecnologia permitiria produzir praticamente qualquer coisa (o que não quer dizer tudo, como veremos mais à frente), como por mágica; não há mais fome, não há mais enfermidades comuns. Os estímulos para produção de riquezas, eliminados, permitiram a formação de um socialismo perfeito.
O libertário Mike P. (em artigo em inglês, traduzido pelo Portal Libertarianismo), que concorda com a avaliação de que Star Trek é um paraíso de esquerda, apresenta alguns argumentos contundentes para criticar a possibilidade de emergir uma estrutura social como essa apenas a partir dos replicadores. Repete o óbvio: que a moeda não é intrinsecamente boa ou má, e que não há virtude em “superá-la”; ela meramente representa um meio de troca, sendo os preços um meio “racional de valorar os recursos”, necessários “para se decidir como os recursos serão divididos entre as pessoas”. O problema do cálculo econômico socialista, tão bem apontado pelos economistas austríacos, mediante o qual o mercado racionaliza por si mesmo a distribuição dos recursos, não seria eliminado pelo replicador. O próprio replicador, ademais, é um aparelho que exige energia para funcionar, energia que precisa ser produzida. De que forma isso se faria sem a lógica de mercado? Se todos estivessem com suas necessidades plenamente atendidas, sem necessidade de trabalhar, como garantir que alguém se sentisse desejoso de empreender seus esforços para gerar e sofisticar esse artefato?
Mike P. faz referência ainda aos Ferengi, uma cultura alienígena que se rege pelo mercado e o interesse capitalista, sendo até mesmo a sua religião baseada nisso, e é retratada como profundamente interesseira e não muito afeita a valores nobres; não obstante, seu governo é burocrático e opressor. Mike ataca, com razão, o fato de se enxergar um grande apreço pelo livre mercado “capitalista selvagem” (sic) em uma sociedade em que, na realidade, o que se tem é um forte controle e uma intensa regulação. Nada diferente do que nossas esquerdas costumam fazer, enxergando um “neoliberalismo” poderoso em países como, pasmem, o Brasil.
Quero crer, entretanto, depois de tudo isso, que, não obstante esteja claro que essa fantástica série, a despeito de todos os seus méritos, não pode ser muito apreciada como defensora das características positivas e indispensáveis do capitalismo liberal, há um outro lado, que depõe a seu favor.
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