segunda-feira, 6 de maio de 2013

O caos institucional do Brasil


A nação brasileira padece mais do que uma crise entre Legislativo, Judiciário e Ministério Público — ela está sendo asfixiada pela tribalização corporativa promovida pela própria Constituição de 88.
José Maria e Silva 

No País dos menores que queimam suas vítimas, dos moradores de rua que gangrenam as cidades e dos drogados que tomam dos doentes os já escassos leitos do SUS, o Supremo Tribunal Federal (STF) está prestes a lançar uma verdadeira praga de proporções bíblicas sobre a nação brasileira – a soltura de uma só vez de cerca de 30 mil presos do regime semiaberto, entre eles latrocidas e estupradores, que, por uma suposta falta de vagas no sistema prisional, serão jogados sobre a indefesa população inocente, previamente desarmada à força pelo próprio Estado.

Os 11 deuses do Supremo resolveram que sua decisão sobre a soltura ou não de um só criminoso, acusado de roubar R$ 1.300 e um celular de uma vítima no Rio Grande do Sul, com o concurso de dois comparsas, terá repercussão geral sobre o destino de todos os demais criminosos que aparentam se enquadrar na mesma situação – à revelia do risco que isso representa para a segurança das famílias, sobretudo das mulheres, que precisam se locomover para o trabalho e a escola em meio à alcateia de lobos que a própria Justiça espalha nas ruas.

Esse é apenas um dos muitos casos em que o Supremo é chamado a decidir sobre questões que dizem respeito ao Legislativo e ao Executivo e, sem levar em conta os riscos que sua decisão acarreta para a sociedade, assume com prazer a tarefa indevida, contribuindo para complicar ainda mais a já caótica situação institucional do Brasil – que não tem conserto, pois a origem desse caos é a própria Constituição de 88. É sobre esse pano de fundo que emerge a crise entre o Legislativo e o Judiciário e entre o Legislativo e o Ministério Público, supostamente motivada pelo desejo do Partido dos Traba­lhadores (PT) de livrar os mensaleiros da prisão.

Em 24 de abril último, a Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados aprovou a admissibilidade da Proposta de Emenda Constitu­cio­nal nº 33/2011, de autoria do deputado Nazareno Fonteles (PT-PI), que submete ao Con­gres­so Nacional as súmulas vinculantes, as ações diretas de inconstitucionalidade e as ações declaratórias de constitucionalidade emitidas pelo Supremo Tri­bunal Federal. Além disso, o STF só poderá declarar a inconstitucionalidade das leis por maioria de nove votos e não seis como é hoje. A PEC do parlamentar piauiense prevê, ainda, que, caso o Con­gres­so Nacional se posicione contrariamente à decisão do Supremo, o caso será submetido à consulta popular.

Bolivarismo petista

Tão logo a Comissão de Cons­tituição e Justiça da Câmara dos De­pu­tados deu o seu aval para que a referida PEC tramitasse na Casa, considerando-a constitucional, o ministro Gilmar Mendes, do Su­pre­mo Tribunal Federal, suspendeu a tramitação de um projeto que inibe a criação de novos partidos políticos – uma manobra casuísta do governo com o apoio do PSD de Gilberto Kassab, o fisiológico ex-prefeito de São Paulo. O pedido de liminar foi fei­to ao Supremo pelo senador Ro­drigo Rollemberg (PSB-DF), cujo par­tido ensaia lançar a candidatura a presidente do governador de Per­nambuco, Eduardo Campos. A decisão de Gilmar Mendes em barrar a tramitação do projeto foi vista como uma retaliação, devido à PEC de Nazareno Fonteles que limita os poderes do STF.

O próprio Gilmar Mendes chegou a dizer que melhor seria fechar o STF, caso fosse aprovada a PEC que submete decisões do Supremo ao Congresso Nacional. Por sua vez, o deputado Nazareno Fonteles chamou Mendes de “capitão do mato” e chegou a defender o impedimento de ministros do Supremo. Apesar do discurso desabusado, em que chega a falar em prisão de ministros do Supremo, o parlamentar piauiense é um médico com boa formação acadêmica: graduou-se na Universidade Federal do Piauí, onde é professor, tem especialização em Bioengenharia pela Universidade de São Paulo e mestrado em Matemática pela Universidade Federal do Ceará. Sua indisposição com o Supremo (como já explicou o jornalista A.C. Scar­tezini, em sua coluna na semana passada) vem desde a época em que a Corte resolveu liberar as pesquisas com células-tronco.

Nazareno Fonteles encarna o indisfarçado bolivarismo petista, que quer submeter até mesmo decisões da Justiça ao crivo das massas. Não resta dúvida que sua proposta representa um grave risco para a democracia, sobretudo porque o PT não irá desistir dela tão facilmente – está no DNA da esquerda sitiar as instituições democráticas mediante o manipulável clamor das ruas com objetivo de abalar a livre economia de mercado, que depende dessas instituições. O presidente da Câmara dos De­pu­tados, Henrique Alves (PMDB-RN), juntamente com o presidente do Senado, Renan Calheiros (PMDB-AL), colocaram panos quentes na crise, anunciando o aborto da referida PEC, mas Marco Maia (PT-RS), ex-presidente da Câmara, está articulando outra PEC, menos radical, que apenas proíbe os ministros do Supremo de declararem monocraticamente a inconstitucionalidade de leis, como ocorre hoje. Só o pleno da Corte teria esse poder.

E, como se não bastassem as dissensões com o STF, o Congresso abriu mais uma frente de batalha institucional – a PEC 37, que proíbe o Ministério Público de conduzir investigação criminal. Tachada pelos promotores públicos de “PEC da Impunidade”, essa proposta parece mais uma retaliação do PT contra as instituições judiciárias devido à Ação Penal 470, mas, na verdade, essa PEC tem raízes no excesso de poder que a Constituição de 88 deu ao Ministério Público e na disputa corporativa entre delegados e promotores. Não há dúvida que se o Ministério Público não puder fazer investigação criminal, os corruptos vão fazer a festa, mas, por outro lado, a possibilidade de dupla investigação, como ocorre hoje, pode representar desperdícios de recursos e até atraso na prestação jurisdicional. Volta e meia vemos delegados acusando promotores de atrasar investigações e vice-versa. Essa briga corporativa deveria ser discutida com isenção, mas quem está livre de interesse para recolher a primeira pedra?

Crises na raiz da Constituição

Sem dúvida, o julgamento do mensalão foi a gota d’água nessa tensa relação entre Legislativo e Judiciário, mas essa tensão entre os poderes não é de agora nem é exclusividade da Era Lula – ela remonta aos primórdios da Constituição de 88, quando o então presidente José Sarney, mesmo tendo uma personalidade conciliadora, viveu momentos de intensa crise com a Assembleia Nacional Constituinte em função da duração de seu mandato, que ele queria de cinco anos, como acabou prevalecendo, e não somente de quatro anos, como desejavam a oposição e uma expressiva parcela de sua própria base de apoio, especialmente o grupo independente do PMDB que daria origem ao PSDB.

A verdade é que, logo depois de sua promulgação, em 5 de outubro de 1988, a Constituição foi acusada de promover o engessamento do país. Diversos temas que poderiam ser regulamentados por leis ordinárias foram elevados à categoria de dispositivos constitucionais, fazendo com que o Supremo Tribunal Fe­de­ral – instância última do controle de constitucionalidade – seja frequentemente acionado. Prova disso é que quando a Constituição de 88 completou 1.273 dias, ou seja, apenas três anos e meio de existência, ela já foi batizada pela primeira emenda constitucional, regulamentando o salário de deputados e vereadores. Hoje, as emendas constitucionais já são 72, além de 6 emendas de revisão.

Sem promover esses remendos na “Constituição Cidadã” de Ulysses Guimarães, é provável que o Brasil não tivesse conseguido debelar a inflação, que derrotou os dois primeiros governos da Nova República: tanto José Sarney e o congelamento de preços quanto Fernando Collor e o confisco da poupança. Para que o Plano Real não repetisse o fracasso de seus antecessores, o sociólogo Fernando Henrique Car­doso – primeiro como ministro do governo Itamar Franco e, depois, como presidente da República – teve de conseguir que o Congresso aprovasse a Emenda Constitucional nº 6, revogando todo o arcaico artigo 171 da Carta, que definia a “empresa nacional” e lhe concedia privilégios de mercado, praticamente fechando as portas do País para os produtos e investimentos estrangeiros, sem os quais o Plano Real teria naufragado.

A prolixa Constituição de 88 só não inviabilizou completamente o País porque é autocontraditória e, portanto, inaplicável. Além disso, o Executivo sempre contou com dois fortes instrumentos para neutralizar os dispositivos anticapitalistas da Cons­tituição: as medidas provisórias e as vistas grossas do Supremo Tri­bu­nal Federal. Exemplo: o parágrafo 3º do artigo 192 da Carta, que tabelava os juros em 12% ao ano e conceituava como “crime de usura” qualquer cobrança acima desse limite. Apesar de absurdo, esse dispositivo só seria revogado 15 anos de­pois, no governo Lula, por meio da Emenda Cons­titucional nº 40, de 29 de maio de 2003. Durante todo esse tempo, os juros nunca respeitaram a Constituição, mas ficou por isso mesmo. O Supremo entendia que o artigo 192 da Carta, que trata do Sistema Financeiro, não era autoaplicável e carecia de lei complementar.

CPI do Judiciário

Essa conduta cautelosa dos antigos ministros do STF, no sentido de considerarem que quase nada na Constituição era autoaplicável, enfurecia os partidos e intelectuais de esquerda, que acusavam o Judiciário de ser um aparelho ideológico do Estado capitalista. Mas aos pou­cos as ideias de esquerda fo­­ram se infiltrando no Ju­di­ciá­rio e, já nos governos Collor e FHC, especialmente no se­gundo, que quebrou a espinha dorsal estatizante da Cons­ti­tuição, muitos juízes federais pe­lo Brasil afora concederam li­minares em ações movidas contra o processo de privatização, irritando profundamente o governo.

Foi aí que o caudilho baiano Antonio Carlos Magalhães, um dos principais aliados do presidente Fernando Henrique Cardo­so, valendo-se da coragem que os tucanos nunca tiveram, deflagrou uma guerra contra a magistratura, ameaçando abrir a “caixa preta” do Judiciário. Com o apoio implícito de FHC, que evitava atacar diretamente a instituição da Justiça, mas não poupava críticas à concessão de liminares, Antô­nio Carlos Magalhães, como presidente do Senado, capitaneou a instalação da CPI do Judiciário em 1999, cujo requerimento não se baseava na investigação de nenhum fato determinado, em que pese ter resultado na prisão do juiz Nicolau dos Santos Neto (que Lula, enchendo a boca, chamava de “juiz Lalau”) e na cassação do senador Luiz Estevão, do Distrito Federal, aliado do ex-presidente Fernando Collor.

Na época, muitos operadores do direito, incluindo magistrados, consideravam a CPI do Judiciário inconstitucional, sob a alegação de que ela extrapolava as atribuições do Legis­la­tivo e ofendia o princípio da divisão e autonomia dos Poderes da Re­pú­bli­ca. Por sua vez, o senador Antonio Carlos Magalhães, com a truculência que lhe era característica, ameaçava liderar uma profunda reforma do Judiciário no Con­gres­so, com o objetivo de limitar a ação da magistratura. Ex­pres­sava o que ia pela alma do governo Fernando Henrique Car­do­so, que necessitava continuar o processo de modernização do Estado e de abertura da economia e não podia tolerar um Poder Judiciário, que, juntamente com o Ministério Público, acabava funcionando como aliado dos partidos de esquerda e dos sindicatos de trabalhadores que lutavam contra as privatizações.

A essência da crise na época era a mesma de agora: tratava-se, como se trata hoje, de uma ação do Poder Executivo – a partir de sua maioria no Congresso Na­cional – com o ob­jetivo de limitar o poder do Ju­di­ciário, sob a alegação, às vezes correta, de que o Judiciário extrapola suas atribuições constitucionais, usurpando poderes do Legislativo e do Exe­cutivo. O que mudou foi a forma co­mo essa guerra se expressa, pois os atores são outros e os que ainda são os mesmos mudaram de posição. O PT, que na época estava na oposição e se beneficiava da independência do Ju­diciário, hoje é governo e faz de tudo para hipertrofiar o Poder Exe­cutivo. Além disso, mudaram o alvo e a motivação ética: o governo tucano lutava contra juízes singulares que atrapalhavam o processo de estabilização econômica; já o governo petista luta contra a Suprema Corte que mandou seus líderes para a cadeia.

Supremo aliado do PT

Mas engana-se quem pensa que o Supremo Tribunal Federal é um obstáculo à sanha totalitária do PT. Mui­to pelo contrário: cada vez mais, o STF – este mesmo que condenou os men­saleiros – é o principal aliado da revolução gramsciana promovida pela esquerda desde que ela chegou ao poder em 1995 por meio das políticas públicas de educação, saúde, segurança e assistência social do governo FHC. Assim como os tucanos nunca foram adversários dos petistas, pelo contrário, são irmãos siameses, o Supremo Tribunal Fe­de­ral tornou-se o maior aliado objetivo do PT e dos demais partidos de es­querda. A ideologia dos ministros do Supremo em relação à criminalidade, por exemplo, é a mesma dos ideólogos de esquerda – para o Supremo, os criminosos é que são vítimas da sociedade e não o contrário.

O protagonismo excessivo do Su­premo – um fenômeno recente, que decorre da revolução gramsciana nos sistemas de ensino – é fruto de uma lenta, gradual, mas consistente es­querdização do Judiciário brasileiro, que faz com que ele comungue todas as teses ditas progressistas da es­querda, do casamento gay à descriminação das drogas, passando pela las­sidão penal. Pelo país afora, à revelia do cidadão de bem que lhes ga­rante o polpudo salário, juízes produzem verdadeiros libelos marxistas em forma de sentenças, nas quais justificam os criminosos e condenam a sociedade. A audiência pública que o mi­nistro Gilmar Mendes vai promover no final de maio para discutir a qua­se certa liberação dos 30 mil presos do regime semiaberto tem, entre seus suportes jurídicos, um desses li­be­los nauseabundos. O magistrado que o escreveu, por sinal um desembargador, merecia enfrentar um processo ético pela forma como bajula o criminoso e vilipendia a própria Justiça.

O protagonismo do Judiciário é uma antiga bandeira de luta da esquerda. Desde a redemocratização do País, os formadores – intelectuais, artistas, jornalistas, professores – colocaram a política no centro de tudo. Quem nunca ouviu essa gente deturpando Aristóteles e repetindo, feito um mantra, que “o homem é um animal político”, como se no mundo não houvesse fatos e princípios, mas apenas vontade e retórica, que são os motores da política? O que mais enraivecia um petista du­rante os governos ditos burgueses (Sar­ney, Collor, Itamar, FHC) era um juiz dizer que um determinado artigo da Constituição, prodigalizando direitos, não era autoaplicável e dependia de lei complementar. Para um esquerdista, a lei é apenas convenção – que deve se dobrar à vontade política das massas, da qual ele se julga o fiel intérprete. Logo, um juiz deveria sempre fazer justiça com a própria caneta, em nome dos desfavorecidos.

É isso o que o próprio Judiciário aprendeu a fazer, como prova Gilmar Mendes. Sua decisão de barrar a proposta que limita a criação de novos partidos políticos me parece uma interferência indevida no Poder Legislativo. É certo que a Consti­tui­ção prevê o controle de constitucionalidade preventivo, que possibilita barrar até mesmo a deliberação de uma PEC no Congresso. Mas so­men­te se ela colocar em risco os fundamentos da República. A Cons­tituição, no artigo 60, parágrafo 4º, es­pecifica as situações em que uma pro­posta de emenda constitucional não pode ser nem mesmo objeto de deliberação: quando ela intenta abolir a Federação, o voto direto, a separação dos Poderes e os direitos e ga­ran­tias individuais. A proposta de li­mi­tar a criação de novos partidos – por mais casuísta que seja – não in­corre em nenhum desses vetos constitucionais, solenemente ignorados por Gilmar Mendes em sua liminar. Com atitudes do gênero, o Supremo oferece o próprio pescoço para a corda ideológica petista e intensifica a tribalização corporativa promovida pela Constituição de 88.

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