Prof. Hermes e sua mãe |
(Transcrição de uma das exposições do curso "Família, escola de vida")
Extraído do blog Modéstia & Pudor
Caríssimos amigos,
Damos hoje continuidade ao curso “Família, Escola de Vida”, iniciado em 25 de março, em que começamos refletindo sobre os fundamentos da família, núcleo fundante de onde deve florescer e frutificar a comunidade humana, no melhor dos relacionamentos. Daí que o primeiro cuidado deve ser no sentido de que hajam relações de afeto, com discernimento, mútuo-respeito, de efetiva solidariedade. Pois se não for assim, a família desaba na discórdia, até mesmo na violência, soçobrando em meio às piores perversões. Por isso, a palavra-chave nesse processo é “cuidado”, em todos os sentidos, pois se não cuidarmos e a cultivarmos, a família perde sua significação, deixa de ser suporte e compromete assim a realização da pessoa humana, de cada pessoa chamada a ser e a agir na verdade e no bem.
É certo de que se a família não vai bem, nada mais vai bem na sociedade, principalmente no itinerário que se faz necessário percorrer para cada um de nós – pessoa criada para a felicidade – alcançar a vida eterna em plenitude. Começamos aqui a edificar o que seremos na eternidade. As decisões de hoje, a partir da família em que estamos constituídos, determinarão a nossa condição definitiva, na vida futura, pois “no infinito, o homem assume todos os planos que fez para esta vida” ¹
Dissemos na aula passada sobre a necessidade da preparação para o matrimônio, atenção esta que não tem tido hoje o devido cuidado, pois requer, sim, preparar-se para aquilo que se quer viver para sempre. Nesse sentido, a pós-modernidade nos leva à direção contrária da continuidade, que exige ascese, paciência, cultivação (investimento, utilizando um termo atual), mas continuidade enquanto perseverança no bem. “Na sociedade atual parece haver sofrido transformação a proposta básica de ascese tradicional. Já não se inculcam a mortificação, a conquista da humildade, o exercício da renúncia, o amor ao sacrifício”
Aí reside o x da questão para entender a mudança de mentalidade imposta às novas gerações, por forças econômicas e políticas interessadas numa fragilização maior da vida humana, para melhor manipular as pessoas, tornando-as mais vulneráveis e presas fáceis de muitos escapismos. O fato é que perdemos a noção e a motivação para o sacrifício e a renúncia, sem os quais não é possível amar por inteiro, pois “não existe ninguém que não possa sempre se tornar melhor” 3 E só nos tornamos excelentes como pessoa humana, amando – o imperativo do mandamento maior, “a opção fundamental da vida humana”. 4
“Amar é estar pronto para sofrer”, quando necessário, e é justamente isso que temos tido dificuldade de entender: sofrer por amor, pois as exigências do amor requerem de nós a firme e boa vontade em perseverar no bem, especialmente quando, para isso, temos que renunciar ao prazer e a qualquer outra vantagem temporal. Ou ainda – o que é mais importante – quando para isso temos que renunciar ao poder e à tentação de dominar e subjugar o outro, o próximo de nós, no afã de ter nas mãos a vida do próximo, quando a nossa vida deve estar somente nas mãos de Deus, que é – como rezamos no Credo – Pai e Todo-Poderoso.
O poder de Deus não é de dominação e subjugação, ou até de aniquilamento, como infelizmente o poder humano muitas vezes é exercido, em sentido totalmente contrário ao poder de Deus, que justamente nos deu o livre-arbítrio, para que possamos fazer escolhas como “alguém” e não “algo” ou objeto manipulável, mas como sujeito capaz de aderir àquilo que realmente acredita como o sumo bem. Daí que falham todas as tentativas de dominação e subjugação, todos os sistemas políticos totalitários, toda relação autoritária, enfim, a tentação de controlar pessoas, tê-las nas mãos, quando somente Deus governa o mundo.
O poder de dominação de um sobre o outro é o que corrói, muitas vezes, o relacionamento humano, seja o de irmãos, até mesmo de pais e filhos, de marido e esposa, de parentes, e depois nos ambientes de escola, de trabalho, de lazer, até mesmo dentro da Igreja, ou em qualquer outra organização social. Quando, na verdade, devemos ser um suporte do outro, ajudando-nos mutuamente, para que cada um, com seus talentos e especificidades próprias, possa contribuir para o bem de todos. Todo sofrimento humano vem da falta deste entendimento básico, para que haja efetiva solidariedade. E a família deve ser a primeira instância desse desafio, pois se em família não for possível o mútuo-respeito e a mútua-ajuda, não será também em sociedade, pois é na família “o seio da qual o homem recebe as primeiras e determinantes noções acerca da verdade e do bem, aprende o que significa amar e ser amado e, consequentemente, o que quer dizer, em concreto, ser uma pessoa.”5
“A fé é um caminho, e é preciso reconhecer as etapas”.6 Não é fácil, porém, acertar o passo no caminho para o bem. Há as etapas, os degraus da escada em que é preciso ascender, a superação de obstáculos, o enfrentamento das adversidades, os posicionamentos que se fazem necessários, as decisões que contrariam os interesses pérfidos, a paciência e a mansidão para o tempo da colheita, quando procuramos semear a cada dia, o bem perdurável. “No processo mediante o qual tendemos para a bem-aventurança, que é o fim de todos os nossos desejos, aparecem muitas dificuldades a ser enfrentadas, pois a virtude, pela qual se vai à bem-aventurança, tem por objeto coisas difíceis (II Ética 2, 1105a; Cmt 3, 278). Por isso, para que o homem mais facilmente em menos tempo tendesse para a bem-aventurança, foi necessário acrescentar-se a esperança de consegui-la”.7 Por isso, “regenerou-nos na esperança viva, para uma herança interminável que está conservada nos céus (1 Pd 1, 3-4), daí que “fomos salvos pela esperança” (Rm 8. 24).
Enquanto cristão, tenho a firme convicção de que “não são os elementos do cosmo, as leis da matéria que, no fim das contas, governam o mundo e o homem, mas é um Deus pessoal que governa as estrelas, ou seja, o universo; as leis da matéria e da evolução não são a última instância, mas razão, vontade, amor: uma Pessoa.” 8 E ainda, que “o céu não está vazio. A vida não é um simples produto das leis e da casualidade da matéria, mas em tudo e, contemporaneamente, acima de tudo há uma vontade pessoal, há um Espírito que em Jesus Se revelou como Amor” 9, daí que mais do que segurança material neste mundo, devemos buscar – almejar mesmo – a salvação integral da pessoa. Como “embaixador de Cristo” (2Cor 5, 18-20), trago comigo, inscrito em meu coração, a boa notícia de que Aquele que nos governa e nos ama tão profundamente e por inteiro, tem o poder de nos salvar de todos os perigos e ilusões, e nos levar à verdade do que somos, destinados todos à bem-aventurança. Daí que a Sua lei é caminho de verdade para a vida plena.
É por conta desta viva esperança que estamos hoje aqui, a defender a família e a dignidade da pessoa humana, e buscando neste curso aprofundar a reflexão sobre o sentido e o valor da família, “santuário da vida humana”. Esperança de que – na perspectiva cristã possamos atualizar a vocação e a missão da família, como “fermento na massa”, para a boa colheita. Por isso que a nossa base é a perspectiva cristã, que ainda tem muito a dizer e a fazer história.
A família é base para uma realidade projetiva, está para além deste mundo, “consiste em antecipação do futuro, do que vai fazer, de quem pretende ser, e é amorosa, definida pela afeição por algumas pessoas e o dever de que se estenda às demais”.10 Por isso, é a partir dela e com ela, que é possível a realização como pessoa humana.
Meus amigos! Estamos nos primeiros dias de maio, o mês mariano, em que celebramos o valor e o sentido da maternidade, a partir do exemplo de Maria, a Virgem de Nazaré, que concebeu pelo poder do Espírito Santo. A única mulher do mundo a reunir em si o mistério da virgindade e da maternidade, condição pela qual foi (e ainda é) possível a salvação do gênero humano.
A festa mariana em maio foi associada ao calendário cristão por Afonso X, o Sábio, rei de Castela e Léon (século XIII). “Uma de suas Cantigas [Literatura 1, 5, c], dedicada a celebrar as festas estacionais de maio, vê na devoção a Maria o modo de coroá-las dignamente e de santificá-las na alegria. Trata-se de alusões: cantando a abundância dos bens que maio traz, convida a invocar a Virgem para que ele seja abundante de bençãos materiais e espirituais”.11 Gostaria de, neste momento, partilhar com vocês, a apreciação que tenho da festa mariana nesta comunidade, especialmente da coroação da imagem de Nossa Senhora, nas missas dominicais, em meio aos cânticos marianos, entre eles, a emocionante “Com minha mãe, no céu estarei”. Sempre me tocou tão profundamente aquele cântico religioso, com vozes de crianças, a ressoar no interior da magnífica igreja Matriz desta cidade. Ver as crianças desta comunidade coroarem Nossa Senhora, é, para mim, motivo de tão grande emoção e alegria. Mais tocante ainda foi ser procurado por tantas mães desejando que eu fotografasse as crianças para que elas pudessem fazer retratos que pudessem ser expostos em suas casas, como um gesto de fé autêntica, a testemunhar a devoção delas, como mães, àquela que é a Mãe de Deus.
Quis então, neste segundo encontro nosso do curso “Família, Escola de Vida”, homenagear as mães desta cidade, refletindo com vocês o valor e o sentido da maternidade, segundo a perspectiva cristã.
Maria, “bendita entre todas as mulheres”, “como lugar de encontro entre o divino e o humano, não é o centro, porém é central no cristianismo”.12 Maria é a figura feminina de maior impacto na história ocidental dos últimos dois mil anos, cuja influência repercutiu no melhor da literatura, da pintura, da escultura, da música, enfim, das artes em geral.
O mais notável da influência é que ela vem aumentando nos últimos tempos (visões, aparições, mensagens, exortações a oração e a penitência, decretações papais de dois dogmas), principalmente como fenômeno de devoção popular; ao ponto de especialistas considerarem os séculos XIX e XX como uma era de Marialis cultus.
Como uma simples camponesa judia de Nazaré, “cujo relato é desesperadoramente breve no Novo Testamento”, pôde assumir um papel tão importante na cultura dos povos? Fonte constante de inspiração, o arquétipo de Maria tem superado os relativismos culturais contemporâneos e conseguido se impor como um referencial supremo e perene de virtude.
É interessante observar que Maria emerge com mais força simbólica nas culturas justamente quando o modelo de feminilidade que ela representa está seriamente ameaçado pela concepção moderna e pós-moderna do que seja verdadeiramente uma mulher.
Duas características intrigantes do nosso tempo reforçam os motivos pelos quais Maria continua uma realidade viva na mentalidade dos povos: o fato dela ser Virgem e Mãe. Paradoxo central da fé católica, que incorpora o mistério profundo da forma como Deus se fez homem, e quis tornar-se presença concreta entre nós. O conceito de feminilidade simbolizado pela Mãe de Deus (irradiado pelo cristianismo) está profundamente identificado com dois valores duramente atacados pela modernidade: o da castidade e o da maternidade.
Hoje, prevalece um profundo mal-estar entre a maioria das mulheres, que se vêem vítimas de uma sexualidade reducionista, que dissocia o prazer de um compromisso afetivo mais integral e as tornam vulneráveis a relações descartáveis, com conseqüências práticas danosas a sua própria realização como pessoa. As mulheres também, forçadas pelo utilitarismo e pela lógica de um sistema social altamente consumista e competitivo, não têm conseguido as condições adequadas para vivenciar a experiência frutuosa da maternidade, ocasionando com isso lacunas afetivas que lhes trazem frustrações psíquicas, e deixam os filhos mais suscetíveis aos apelos do imediatismo, do consumo alienante e da violência. A mulher pós-moderna, enfim, distante do modelo proposto por Maria, se vê diante de uma vida mais complexa e muito mais infeliz. A liberdade defendida pelas promessas feministas, não lhe deu maior segurança, não a conduziu à verdade e não lhe trouxe paz e a felicidade.
A força de Maria está justamente na recusa do povo em aceitar um modelo estranho do que é ser mulher, que sacrifica dois importantes valores da cristandade. A virgindade antes do casamento quer levar os jovens nubentes a valorizar a fidelidade (e a mantê-la na dimensão sacramental do matrimônio). O casamento também na ótica cristã pressupõe filhos, como sinal concreto de compromisso e doação. Esse modelo entrou em crise na modernidade, afetando crenças, costumes, e, inclusive, a própria dignidade da relação familiar. A virgindade deixou de ser valorizada, o casamento perdeu o sentido sacramental, os filhos deixaram de ser prioridade afetiva, a fidelidade não é mais mantida. Tudo isso causa perplexidade, e as pessoas não sabem como fazer em meio a esse caos de relativismo cultural, cujas conseqüências práticas estão bem evidentes: solidão e abandono, desestrutura familiar, desentendimento, separação, angústia, imoralidade, permissividade, violência, e, acima de tudo, infelicidade.
Maria vem contrapor-se a esse contexto, indicando um modelo de relação humana onde a fidelidade e o senso do compromisso passam a ser vistos como meios indispensáveis para a verdadeira realização pessoal e comunitária. Talvez, por isso que, inconscientemente, pessoas dos mais diversos níveis culturais e sociais, vêem em Maria um autêntico sentido de vida. Por isso recorremos a ela, com devoção profunda: Mater misericordia, ora pro nobis!
Recebo aqui, várias mães, que hoje iremos homenagear, sinalizando o quanto estamos empenhados em afirmar a cultura da vida, na defesa da família e da dignidade da pessoa humana, a partir dos valores da cristandade. Acolho a cada uma das mães que aqui estão, com uma palavra de ânimo e de esperança, com a convicção de que o heroísmo cotidiano da maternidade – expressão autêntica da gratuidade – haverá de ser recompensado por quem nos vê em segredo, e sabe dos esforços feitos para cultivar a vida, a humanidade, o afeto e a solidariedade, em nossas relações mais próximas. “Guardai-vos de fazer vossas boas obras diante dos homens, para serdes vistos por eles. Do contrário, não tereis recompensa junto de vosso Pai que está no céu!” (Mt 6, 1).
Caríssimas mães, tenham a certeza de que os tantos sacrifícios cotidianos, no melhor exercício do bem feito em silêncio, que a rica experiência da maternidade proporciona, trará um bem espiritual inenarrável, especialmente àquelas que assumem a maternidade como missão especialíssima de fazer o bem, preparando os filhos para viver a vida conforme os tesouros do céu e não as efemeridades do mundo; àquelas mães que cultivam em seus filhos as excelsas virtudes cristãs, a partir da oração e do trabalho, para que eles sejam capazes de decidirem pelo bem da vida, em todos os aspectos e circunstâncias.
A família é um grande patrimônio, daí que ela é preservada e valorizada pelo matrimônio. A maternidade, com suas exigências e desafios, faz parte desse mistério de tornar o homem e a mulher, participantes de uma obra que se constrói na complementaridade, onde um é chamado a ser para o outro, expressão do amor desinteressado, que une, integra, eleva, promove, pereniza, glorifica e santifica.
A todas as mães aqui presentes, recebam o meu mais afetuoso cumprimento.
Damos hoje continuidade ao curso “Família, Escola de Vida”, iniciado em 25 de março, em que começamos refletindo sobre os fundamentos da família, núcleo fundante de onde deve florescer e frutificar a comunidade humana, no melhor dos relacionamentos. Daí que o primeiro cuidado deve ser no sentido de que hajam relações de afeto, com discernimento, mútuo-respeito, de efetiva solidariedade. Pois se não for assim, a família desaba na discórdia, até mesmo na violência, soçobrando em meio às piores perversões. Por isso, a palavra-chave nesse processo é “cuidado”, em todos os sentidos, pois se não cuidarmos e a cultivarmos, a família perde sua significação, deixa de ser suporte e compromete assim a realização da pessoa humana, de cada pessoa chamada a ser e a agir na verdade e no bem.
É certo de que se a família não vai bem, nada mais vai bem na sociedade, principalmente no itinerário que se faz necessário percorrer para cada um de nós – pessoa criada para a felicidade – alcançar a vida eterna em plenitude. Começamos aqui a edificar o que seremos na eternidade. As decisões de hoje, a partir da família em que estamos constituídos, determinarão a nossa condição definitiva, na vida futura, pois “no infinito, o homem assume todos os planos que fez para esta vida” ¹
Dissemos na aula passada sobre a necessidade da preparação para o matrimônio, atenção esta que não tem tido hoje o devido cuidado, pois requer, sim, preparar-se para aquilo que se quer viver para sempre. Nesse sentido, a pós-modernidade nos leva à direção contrária da continuidade, que exige ascese, paciência, cultivação (investimento, utilizando um termo atual), mas continuidade enquanto perseverança no bem. “Na sociedade atual parece haver sofrido transformação a proposta básica de ascese tradicional. Já não se inculcam a mortificação, a conquista da humildade, o exercício da renúncia, o amor ao sacrifício”
Aí reside o x da questão para entender a mudança de mentalidade imposta às novas gerações, por forças econômicas e políticas interessadas numa fragilização maior da vida humana, para melhor manipular as pessoas, tornando-as mais vulneráveis e presas fáceis de muitos escapismos. O fato é que perdemos a noção e a motivação para o sacrifício e a renúncia, sem os quais não é possível amar por inteiro, pois “não existe ninguém que não possa sempre se tornar melhor” 3 E só nos tornamos excelentes como pessoa humana, amando – o imperativo do mandamento maior, “a opção fundamental da vida humana”. 4
“Amar é estar pronto para sofrer”, quando necessário, e é justamente isso que temos tido dificuldade de entender: sofrer por amor, pois as exigências do amor requerem de nós a firme e boa vontade em perseverar no bem, especialmente quando, para isso, temos que renunciar ao prazer e a qualquer outra vantagem temporal. Ou ainda – o que é mais importante – quando para isso temos que renunciar ao poder e à tentação de dominar e subjugar o outro, o próximo de nós, no afã de ter nas mãos a vida do próximo, quando a nossa vida deve estar somente nas mãos de Deus, que é – como rezamos no Credo – Pai e Todo-Poderoso.
O poder de Deus não é de dominação e subjugação, ou até de aniquilamento, como infelizmente o poder humano muitas vezes é exercido, em sentido totalmente contrário ao poder de Deus, que justamente nos deu o livre-arbítrio, para que possamos fazer escolhas como “alguém” e não “algo” ou objeto manipulável, mas como sujeito capaz de aderir àquilo que realmente acredita como o sumo bem. Daí que falham todas as tentativas de dominação e subjugação, todos os sistemas políticos totalitários, toda relação autoritária, enfim, a tentação de controlar pessoas, tê-las nas mãos, quando somente Deus governa o mundo.
O poder de dominação de um sobre o outro é o que corrói, muitas vezes, o relacionamento humano, seja o de irmãos, até mesmo de pais e filhos, de marido e esposa, de parentes, e depois nos ambientes de escola, de trabalho, de lazer, até mesmo dentro da Igreja, ou em qualquer outra organização social. Quando, na verdade, devemos ser um suporte do outro, ajudando-nos mutuamente, para que cada um, com seus talentos e especificidades próprias, possa contribuir para o bem de todos. Todo sofrimento humano vem da falta deste entendimento básico, para que haja efetiva solidariedade. E a família deve ser a primeira instância desse desafio, pois se em família não for possível o mútuo-respeito e a mútua-ajuda, não será também em sociedade, pois é na família “o seio da qual o homem recebe as primeiras e determinantes noções acerca da verdade e do bem, aprende o que significa amar e ser amado e, consequentemente, o que quer dizer, em concreto, ser uma pessoa.”5
“A fé é um caminho, e é preciso reconhecer as etapas”.6 Não é fácil, porém, acertar o passo no caminho para o bem. Há as etapas, os degraus da escada em que é preciso ascender, a superação de obstáculos, o enfrentamento das adversidades, os posicionamentos que se fazem necessários, as decisões que contrariam os interesses pérfidos, a paciência e a mansidão para o tempo da colheita, quando procuramos semear a cada dia, o bem perdurável. “No processo mediante o qual tendemos para a bem-aventurança, que é o fim de todos os nossos desejos, aparecem muitas dificuldades a ser enfrentadas, pois a virtude, pela qual se vai à bem-aventurança, tem por objeto coisas difíceis (II Ética 2, 1105a; Cmt 3, 278). Por isso, para que o homem mais facilmente em menos tempo tendesse para a bem-aventurança, foi necessário acrescentar-se a esperança de consegui-la”.7 Por isso, “regenerou-nos na esperança viva, para uma herança interminável que está conservada nos céus (1 Pd 1, 3-4), daí que “fomos salvos pela esperança” (Rm 8. 24).
Enquanto cristão, tenho a firme convicção de que “não são os elementos do cosmo, as leis da matéria que, no fim das contas, governam o mundo e o homem, mas é um Deus pessoal que governa as estrelas, ou seja, o universo; as leis da matéria e da evolução não são a última instância, mas razão, vontade, amor: uma Pessoa.” 8 E ainda, que “o céu não está vazio. A vida não é um simples produto das leis e da casualidade da matéria, mas em tudo e, contemporaneamente, acima de tudo há uma vontade pessoal, há um Espírito que em Jesus Se revelou como Amor” 9, daí que mais do que segurança material neste mundo, devemos buscar – almejar mesmo – a salvação integral da pessoa. Como “embaixador de Cristo” (2Cor 5, 18-20), trago comigo, inscrito em meu coração, a boa notícia de que Aquele que nos governa e nos ama tão profundamente e por inteiro, tem o poder de nos salvar de todos os perigos e ilusões, e nos levar à verdade do que somos, destinados todos à bem-aventurança. Daí que a Sua lei é caminho de verdade para a vida plena.
É por conta desta viva esperança que estamos hoje aqui, a defender a família e a dignidade da pessoa humana, e buscando neste curso aprofundar a reflexão sobre o sentido e o valor da família, “santuário da vida humana”. Esperança de que – na perspectiva cristã possamos atualizar a vocação e a missão da família, como “fermento na massa”, para a boa colheita. Por isso que a nossa base é a perspectiva cristã, que ainda tem muito a dizer e a fazer história.
A família é base para uma realidade projetiva, está para além deste mundo, “consiste em antecipação do futuro, do que vai fazer, de quem pretende ser, e é amorosa, definida pela afeição por algumas pessoas e o dever de que se estenda às demais”.10 Por isso, é a partir dela e com ela, que é possível a realização como pessoa humana.
Mães sendo homenageadas no curso |
A festa mariana em maio foi associada ao calendário cristão por Afonso X, o Sábio, rei de Castela e Léon (século XIII). “Uma de suas Cantigas [Literatura 1, 5, c], dedicada a celebrar as festas estacionais de maio, vê na devoção a Maria o modo de coroá-las dignamente e de santificá-las na alegria. Trata-se de alusões: cantando a abundância dos bens que maio traz, convida a invocar a Virgem para que ele seja abundante de bençãos materiais e espirituais”.11 Gostaria de, neste momento, partilhar com vocês, a apreciação que tenho da festa mariana nesta comunidade, especialmente da coroação da imagem de Nossa Senhora, nas missas dominicais, em meio aos cânticos marianos, entre eles, a emocionante “Com minha mãe, no céu estarei”. Sempre me tocou tão profundamente aquele cântico religioso, com vozes de crianças, a ressoar no interior da magnífica igreja Matriz desta cidade. Ver as crianças desta comunidade coroarem Nossa Senhora, é, para mim, motivo de tão grande emoção e alegria. Mais tocante ainda foi ser procurado por tantas mães desejando que eu fotografasse as crianças para que elas pudessem fazer retratos que pudessem ser expostos em suas casas, como um gesto de fé autêntica, a testemunhar a devoção delas, como mães, àquela que é a Mãe de Deus.
Quis então, neste segundo encontro nosso do curso “Família, Escola de Vida”, homenagear as mães desta cidade, refletindo com vocês o valor e o sentido da maternidade, segundo a perspectiva cristã.
Maria, “bendita entre todas as mulheres”, “como lugar de encontro entre o divino e o humano, não é o centro, porém é central no cristianismo”.12 Maria é a figura feminina de maior impacto na história ocidental dos últimos dois mil anos, cuja influência repercutiu no melhor da literatura, da pintura, da escultura, da música, enfim, das artes em geral.
O mais notável da influência é que ela vem aumentando nos últimos tempos (visões, aparições, mensagens, exortações a oração e a penitência, decretações papais de dois dogmas), principalmente como fenômeno de devoção popular; ao ponto de especialistas considerarem os séculos XIX e XX como uma era de Marialis cultus.
Como uma simples camponesa judia de Nazaré, “cujo relato é desesperadoramente breve no Novo Testamento”, pôde assumir um papel tão importante na cultura dos povos? Fonte constante de inspiração, o arquétipo de Maria tem superado os relativismos culturais contemporâneos e conseguido se impor como um referencial supremo e perene de virtude.
É interessante observar que Maria emerge com mais força simbólica nas culturas justamente quando o modelo de feminilidade que ela representa está seriamente ameaçado pela concepção moderna e pós-moderna do que seja verdadeiramente uma mulher.
Duas características intrigantes do nosso tempo reforçam os motivos pelos quais Maria continua uma realidade viva na mentalidade dos povos: o fato dela ser Virgem e Mãe. Paradoxo central da fé católica, que incorpora o mistério profundo da forma como Deus se fez homem, e quis tornar-se presença concreta entre nós. O conceito de feminilidade simbolizado pela Mãe de Deus (irradiado pelo cristianismo) está profundamente identificado com dois valores duramente atacados pela modernidade: o da castidade e o da maternidade.
Hoje, prevalece um profundo mal-estar entre a maioria das mulheres, que se vêem vítimas de uma sexualidade reducionista, que dissocia o prazer de um compromisso afetivo mais integral e as tornam vulneráveis a relações descartáveis, com conseqüências práticas danosas a sua própria realização como pessoa. As mulheres também, forçadas pelo utilitarismo e pela lógica de um sistema social altamente consumista e competitivo, não têm conseguido as condições adequadas para vivenciar a experiência frutuosa da maternidade, ocasionando com isso lacunas afetivas que lhes trazem frustrações psíquicas, e deixam os filhos mais suscetíveis aos apelos do imediatismo, do consumo alienante e da violência. A mulher pós-moderna, enfim, distante do modelo proposto por Maria, se vê diante de uma vida mais complexa e muito mais infeliz. A liberdade defendida pelas promessas feministas, não lhe deu maior segurança, não a conduziu à verdade e não lhe trouxe paz e a felicidade.
A força de Maria está justamente na recusa do povo em aceitar um modelo estranho do que é ser mulher, que sacrifica dois importantes valores da cristandade. A virgindade antes do casamento quer levar os jovens nubentes a valorizar a fidelidade (e a mantê-la na dimensão sacramental do matrimônio). O casamento também na ótica cristã pressupõe filhos, como sinal concreto de compromisso e doação. Esse modelo entrou em crise na modernidade, afetando crenças, costumes, e, inclusive, a própria dignidade da relação familiar. A virgindade deixou de ser valorizada, o casamento perdeu o sentido sacramental, os filhos deixaram de ser prioridade afetiva, a fidelidade não é mais mantida. Tudo isso causa perplexidade, e as pessoas não sabem como fazer em meio a esse caos de relativismo cultural, cujas conseqüências práticas estão bem evidentes: solidão e abandono, desestrutura familiar, desentendimento, separação, angústia, imoralidade, permissividade, violência, e, acima de tudo, infelicidade.
Maria vem contrapor-se a esse contexto, indicando um modelo de relação humana onde a fidelidade e o senso do compromisso passam a ser vistos como meios indispensáveis para a verdadeira realização pessoal e comunitária. Talvez, por isso que, inconscientemente, pessoas dos mais diversos níveis culturais e sociais, vêem em Maria um autêntico sentido de vida. Por isso recorremos a ela, com devoção profunda: Mater misericordia, ora pro nobis!
Recebo aqui, várias mães, que hoje iremos homenagear, sinalizando o quanto estamos empenhados em afirmar a cultura da vida, na defesa da família e da dignidade da pessoa humana, a partir dos valores da cristandade. Acolho a cada uma das mães que aqui estão, com uma palavra de ânimo e de esperança, com a convicção de que o heroísmo cotidiano da maternidade – expressão autêntica da gratuidade – haverá de ser recompensado por quem nos vê em segredo, e sabe dos esforços feitos para cultivar a vida, a humanidade, o afeto e a solidariedade, em nossas relações mais próximas. “Guardai-vos de fazer vossas boas obras diante dos homens, para serdes vistos por eles. Do contrário, não tereis recompensa junto de vosso Pai que está no céu!” (Mt 6, 1).
Caríssimas mães, tenham a certeza de que os tantos sacrifícios cotidianos, no melhor exercício do bem feito em silêncio, que a rica experiência da maternidade proporciona, trará um bem espiritual inenarrável, especialmente àquelas que assumem a maternidade como missão especialíssima de fazer o bem, preparando os filhos para viver a vida conforme os tesouros do céu e não as efemeridades do mundo; àquelas mães que cultivam em seus filhos as excelsas virtudes cristãs, a partir da oração e do trabalho, para que eles sejam capazes de decidirem pelo bem da vida, em todos os aspectos e circunstâncias.
A família é um grande patrimônio, daí que ela é preservada e valorizada pelo matrimônio. A maternidade, com suas exigências e desafios, faz parte desse mistério de tornar o homem e a mulher, participantes de uma obra que se constrói na complementaridade, onde um é chamado a ser para o outro, expressão do amor desinteressado, que une, integra, eleva, promove, pereniza, glorifica e santifica.
A todas as mães aqui presentes, recebam o meu mais afetuoso cumprimento.
Bibliografia:
1. Antonio Mesquita Galvão, O Grão de Trigo – Reflexões Cristãs sobre a vida depois da morte, Ed. Ave Maria, 2000, p. 103).
2. Tullo Goffi, Dicionário de Espiritualidade, Ascese, Paulus, 2ª edição, 1993, p. 61.
3. Leão Magno, Sermões, Ed. Paulus, 1996, p. 90.
4. Papa Bento XVI, Encíclica Deus Caritas Est, 1, 2005;
5. Papa João Paulo II, Encíclica Centesimus annus, 39, 1991;http://www.vatican.va/holy_father/john_paul_ii/encyclicals/documents/hf_jp-ii_enc_01051991_centesimus-annus_po.html).
6. Joseph Ratzinger, O Sal da Terra – O Cristianismo e a Igreja Católica no Limiar do Terceiro Milênio – Um Diálogo com Peter Seewald , Ed. Imago, 1997, Pág. 78.
7. São Tomás de Aquino, Suma Contra os Gentios, Volume II, Livros IIIº e IVº, EDIPUCRS em co-edição com Edições EST, Porto Alegre, 1996, p. 667.
8. Papa Bento XVI, Encíclica Spe Salvi, 5, 2007; (http://www.vatican.va/holy_father/benedict_xvi/encyclicals/documents/hf_ben-xvi_enc_20071130_spe-salvi_po.html)
9. Papa Bento XVI, Encíclica Spe Salvi, 5, 2006; (http://www.vatican.va/holy_father/benedict_xvi/encyclicals/documents/hf_ben-xvi_enc_20071130_spe-salvi_po.html
10. Júlian Marías, A Perspectiva Cristã, Ed. Martins Fontes, 2000, p. 112.
11. S. Rosso, Mês Mariano, Dicionário de Mariologia, Ed. Paulus, 1995, p. 887.
12. A. Serra, Mãe de Deus, Dicionário de Mariologia, Ed. Paulus, 1995, p. 780.
* O autor:
Prof. Hermes Rodrigues Nery é Especialista em Bioética (pela PUC-RJ), Coordenador da Comissão Diocesana em Defesa da Vida e Movimento Legislação e Vida, da Diocese de Taubaté, membro da Comissão em Defesa da Vida do Regional Sul 1 da CNBB, diretor da Associação Nacional Pró-Vida e Pró-Família e da Associação Guadalupe. É casado, tem dois filhos e é catequista.
Brilhante, rico, sério e rico artigo. É necessário é urgente que artigos como esses não deixem de ser produzidos.
ResponderExcluir