Há corrupções que correm soltas no Brasil contra as quais ninguém protesta, mesmo quando amplamente denunciadas na imprensa. Alguém viu algum jovem revolucionário – falo dos jovens revolucionários da Revolução – verdadeira, segundo a Veja– de Junho de 2013, protestar contra a corrupção universitária, ou a corrupção no mundo das letras ou do cinema? Diria que ninguém.
Verdade que de junho para cá ainda não decorreram dois meses, e a “voz das ruas”, que chegou a provocar propostas de constituinte e plebiscito, já nem mais é lembrada, como tampouco a constituinte e o plebiscito. Sic transit gloria mundi.
Antonio Hoauiss foi o autor de uma das maiores fraudes nacionais, a reforma ortográfica, que fez a lavoura de editores. A reforma era optativa – no sentido em que a lei não impunha nenhuma sanção a quem não a empre gasse - mas tanto a universidade como a imprensa brasileiras engoliram bonitinho o golpe.
Alguém – sei lá quem – decidiu impor ao mercado tomadas de três pinos e o país inteiro se viu obrigado a trocar tomadas sem ter porquê. Uma tomada custa baratinho, não é verdade? Pelo menos enquanto você não multiplica o número de tomadas pelo número de residências no Brasil e pelo número de aparelhos elétricos que cada residência ou cidadão obrigatoriamente consome. O Brasil inteiro assumiu o golpe sem tugir nem mugir. Esta é, aliás, a forma mais palatável de corrupção: roubar centavos de milhões. Quem rouba milhões de poucos tende a se dar mal.
Ano passado, em crônica que foi amplamente replicada, eu falava das corrupções sutis, quase imperceptíveis, mas corrupções. A imprensa denuncia com entusiasmo a corrupção no congresso, na política, nos tribunais. Não diz uma palavrinha sobre a corrupção no santo dos santos, a univer sidade. Corrupção esta mais difícil de ser detectada, já que em geral foi legalizada. Mordomias para encontros literários internacionais inúteis, concursos com cartas marcadas, endogamia universitária, tudo isto se tornou rotina no mundo acadêmico e não é visto como corrupção.
Tampouco se fala sobre a corrupção no mundo literário, que há muito se prostituiu. Jorge Amado, que passou boa parte de sua vida escrevendo a soldo de Moscou, é homenageado todos os anos. Devo ter sido o único jornalista que o denuncia – e isto há décadas – como a prostituta-mor das letras tupiniquins.
Escritores, esses curiosos profissionais que querem transformar suas inefáveis dores-de-cotovelo em fonte de renda, adoram subsídios do Estado. As leituras obrigatórias são uma fonte de renda magnífica para os amigos do Rei. Um livro indicado para os currículos escolares faz a fortuna de qualquer escritor medíocre. Escritores já mortos, como Machado , Guimarães Rosa, Clarice Lispector, há muito teriam sumido da memória nacional, não fossem as leituras obrigatórias. O Estado imbuiu-se da missão de protetor das artes e é no campo artístico que a corrupção mais campeia. Outra seara privilegiada é o cinema nacional. Que só sobrevive de vive de renúncia fiscal.
Renúncia fiscal é o seguinte: a Fazenda aceita que empresas deixem de pagar o imposto devido desde que subsidiem as tais de “artes”. No fundo, quem paga é você. Porque o Fisco, se é generoso com o artista, de algum lugar terá de obter receita para repor sua generosidade. Esse lugar é nosso bolso. Ora, se eu financio a feitura de um filme, quero assisti-lo de graça. Com uma limusine enviada pela produção para me buscar em casa.
Não bastasse o contribuinte financiar a produção de filmes no Brasil, passou a financiar também sua exibição no estrangeiro. Em 2011, dez filmes ganharam verba para serem lançados no Ext erior. O programa Cinema do Brasil distribui US$ 250 mil por ano para promover produções brasileiras. Mas o dinheiro não vai para os produtores e sim para os distribuidores. Nos últimos anos, vinte filmes brasileiros receberam apoio institucional para viajar.
São filmes que mal conseguem reunir alguns espectadores no Brasil e passaram a ser exibidos no Exterior. Foram lançados na França, Portugal e Japão. Os ediretores poderão acrescentar em seus currículos que suas “obras” foram um sucesso em Paris, Lisboa e Tóquio. Resta saber se alguém foi assistir. Pode ser que as salas tenham permanecido vazias. Mas o filme foi exibido. Com sua generosa contribuição, caro contribuinte.
O fato é que tais corrupções não podem ser legalmente enquadradas como corrupção. Elas são perfeitamente legais. Não bastassem ser perfeitamente legais, cineastas mais ousados não se contentam com esta permissão de roubar e sequer se dão ao trabalho de uma contraprestação mínima. De vários leitores recebi esta notícia, publicada no Globo:
BRASIL INVESTIU MAIS DE R$ 18 MILHÕES EM 17 FILMES
QUE NUNCA CHEGARAM AO GRANDE PÚBLICO
Este total é a soma dos valores captados por produtoras que hoje integram a lista negra da Ancine. Especialistas enxergam atraso de dez anos na reprovação de contas e lamentam dificuldade para recuperar valores captados. Vamos à reportagem:
Na relação existem projetos para públicos diversos. Há, por exemplo, uma adaptação do livro “Alice no País das Maravilhas”, de Lewis Carroll, que deveria ter saído do papel em 1996; uma do romance “Memorial de Maria Moura”, de Rachel de Queiroz, idealizada em 1997; um documentário com depoimentos de Betinho, de 1998; e o polêmico longa-metragem “Chatô, o rei do Brasil”, para o qual o produtor Guilherme Fontes começou a captar dinheiro em 1995. O valor in vestido também varia muito. Numa ponta está o doc sobre Betinho, que captou R$ 8 mil; na outra, “Chatô”, com R$ 8,6 milhões.
Segundo a Ancine, a maioria dessas produtoras não é sequer localizável. Muitas talvez nem existam mais. Todas as produções datam de 1995 a 2003. Dos projetos apresentados desde então, ainda não houve condenação — o que indica a existência de uma demora de pelo menos dez anos para que a agência reguladora reprove de forma definitiva as contas de uma produção apoiada.
— Não existe na Ancine nenhuma regra que fixe o tempo que ela tem para avaliar as contas de um projeto — diz Pedro Genescá, advogado especializado em leis de incentivo. — E isso é muito ruim, já que, na legislação brasileira, há prazos claros para expirar a punibilidade de crimes.
Leitores querem que comente a notícia. Comentar o quê? Não há comentário algum a fazer. Desde há muito as artes nacionais passaram a viver de corrupção. E palavras como escritor ou cineasta tendem a se tornar pejorativos, mais ou menos sinônimos de ladrão ou corrupto.
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