terça-feira, 24 de janeiro de 2006

O Empenho com Garantia de Pagamento Contra-Entrega




por Redação MSM em 24 de abril de 2003

Resumo: Klauber Cristofen Pires analisa mais uma prática burocrática no serviço público brasileiro

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Klauber Cristofen Pires - “Empenho”, é um termo técnico criado pelo Governo com a finalidade de documentar o reconhecimento de dívida (ou de sua expectativa) em função de uma aquisição ou contratação. É o instrumento pelo qual se controlam os gastos governamentais, por meio da sua alocação orçamentária. O empenho foi criado pela lei nº 4.320, de 17 de março de 1964, que, em seu artigo 58, preconiza: “O empenho de despesa é o ato emanado de autoridade competente que cria para o Estado obrigação de pagamento pendente ou não de implemento de condição.”

A um empenho, portanto, deverá corresponder uma liquidação (instrumento que dá a certeza da dívida, pelo cumprimento, por parte do fornecedor, do objeto) e o conseqüente pagamento. O que iremos demonstrar doravante é como, feito uma bola de neve a rolar descontroladamente, sucessivas invenções burocráticas vêm, com o intuito de melhorar o desempenho e/ou a credibilidade das Instituições, lograr efeito diverso, superpondo-se à exuberante pilha de procedimentos inúteis ou inócuos que precisam ser cumpridos, muitas vezes para a execução de tarefas simples.

Costumo muito dizer entre os colegas de serviço, que, ao invés do que eles pensam, a faltar pessoal para o cumprimento dos objetivos de nossa instituição – e este é o argumento usado por todos os servidores e governantes, de todos os órgãos e de todas as esferas governamentais – o que abundam são procedimentos e trâmites - os quais, impossíveis de serem otimizados, dado que a atividade administrativa geralmente é um tanto vinculada, isto é, ligada em termos estritos à lei (entenda-se esta em seu sentido amplo, abarcando também os atos administrativos com força de lei de fato – os decretos, as portarias, as instruções normativas), vêm a praticamente obstacularizar o atingimento dos objetivos de um órgão público e a desnortear o administrador face a tantas regras esparsamente criadas.

Em 23 de dezembro de 1997, foi instituído o sistema de “Empenho com Garantia de Pagamento Contra-Entrega”, por meio do Decreto de nº 2.439, hoje complementado pelo Decreto 3.473, de 18 de maio de 2000. Esta sistemática prevê que a quitação da despesa de pequenas compras e serviços de valor até o limite previsto para a dispensa de licitação, com os fornecedores inscritos no Sistema de Cadastramento de Fornecedores - SICAF, deve ser feita através de ordem bancária a ser emitida, on-line, sem necessidade de prévia liberação de recursos financeiros, dentro de 72 horas, contadas a partir da devida entrega do bem ou serviço. Os dois parágrafos acima, bem como os que se seguem nos próximos cinco, foram extraídos do site http://www.sfc.fazenda.gov.br/sfc/dp/dp17/fornece.htm, que esclarece quais os motivos e como funciona a técnica da emissão de “Empenho com Garantia de Pagamento Contra-Entrega”.

“O projeto do Empenho com garantia para pequenas compras foi elaborado pela Secretaria Federal de Controle (Hoje Controladoria-Geral da União) visando resgatar a credibilidade do Empenho e reduzir o custo dos bens e serviços adquiridos pelo Governo, que vem sendo prejudicado pela prática comum entre fornecedores de aumentar os preços de seus produtos quando o cliente é a Administração Pública.”

“Com isso os fornecedores não mais precisarão praticar preços majorados ao Governo, como forma de se prevenir de atrasos no pagamento, costume adquirido desde a época da inflação, quando o atraso nos pagamentos por parte do governo significava grandes perdas para os fornecedores.”

“O Empenho com Garantia de Pagamento Contra Entrega facilita o pagamento das pequenas despesas de material de consumo e serviços, e garante ao fornecedor a data em que ocorrerá o pagamento correspondente”.

“Além disso, caso o pagamento não seja feito em 72 horas, o fornecedor poderá comunicar o fato à SFC, que deverá, em 30 dias, tomar as providências necessárias para verificar o erro e, se for o caso, orientar para que seja providenciada sua correção.”

“Espera-se com o Decreto, que deve atingir cerca de 1 milhão de pagamentos referentes a despesas inferiores a 1.900 reais, aumentar a eficácia do gasto e reduzir a médio prazo o custo das despesas da administração pública.”

O Decreto nº 3.473/2000 estabelece em seu artigo 4º, § 2º que “No mínimo cinco por cento das despesas empenhadas à conta de fontes oriundas do Tesouro Nacional, com dispensa de licitação amparada no art. 24, inciso II, da Lei no 8.666, de 21 de junho de 1993, nos elementos de despesa 349030 e 349039, terão os respectivos recursos financeiros liberados na modalidade de “Empenho com Garantia de Pagamento Contra Entrega”, de que trata o Decreto no 2.439, de 23 de dezembro de 1997. “

O Decreto3476/2001, de 06 de fevereiro de 2001, dita em seu art. 5º, § 2º: “ No mínimo cinco por cento das despesas empenhadas à conta de fontes oriundas do Tesouro Nacional, com dispensa de licitação amparada no art. 24, inciso lI, da Lei nº 8.666, de 21 de junho de 1993, nas naturezas de despesa 339030 e 339039, terão os respectivos recursos financeiros solicitados na modalidade de Empenho com Garantia de Pagamento Contra Entrega, de que trata o Decreto nº 2.439, de 23 de dezembro de 1997.”

Pelo que se demonstra, a então Secretaria Federal de Controle via-se preocupada com a majoração de preços em pequenas despesas, causadas pela preocupação dos fornecedores em não receber, ou receber com atraso, motivo pelo qual apresentou o projeto como o acima descrito.

O que pretendemos aqui é desenvolver algumas considerações críticas a respeito desta sistemática.

Apresentado o problema sob outro prisma, observa-se que o Governo Federal, ao editar tal norma, reconhece que o instituto do empenho anda carecendo de credibilidade. Em outros termos, reconhece que aplica calotes, e com alguma freqüência, aos fornecedores.

Não se pretenda afirmar aqui que estejamos contra a necessidade de se instituírem meios efetivos para a compra de bens ou contratação de serviços, com a regular emissão do empenho e sua conseqüente liquidação e pagamento.

O fato que nos parece estranho é a via inversa de ação: ao invés do instituto do empenho ser moralizado, cria-se um instituto alternativo (Para ver “se cola”). Talvez ninguém até agora tenha percebido o efeito psicológico adverso que pode advir da criação deste instituto, o “Empenho com Garantia de Pagamento Contra-Entrega”. Mas ocorre que, se é criado um empenho que se declara garantido, por exclusão, declara-se que o empenho comum não tem mais a obrigação de garantir o pagamento, o que nos parece inadmissível.

Entendemos que tal ação venha a denunciar oficialmente que, em síntese, nossos governantes não desejam respeitar as leis que eles mesmos promulgam. A perpetuarem-se ações como essa, nunca alcançaremos a retidão e a credibilidade das nossas instituições, pois sempre “fugimos” do problema, ao invés de corrigi-lo.

Ora, de acordo com a lei inaugural, a de nº 4320/64, TODOS os empenhos gozavam da presunção de posterior liquidação e pagamento. Agora, com os Decretos supra-citados, “pelo menos cinco por cento” das despesas sob dispensa de licitação serão honrados!

Esta é a nossa crítica maior à criação do “Empenho com Garantia de Pagamento Contra-Entrega”, a de, pretendendo-se moralizar nossas instituições, ver o “tiro sair pela culatra”, por conta de seguir uma linha filosófica, ao nosso ver, equivocada.

Mas há outras críticas que pretendemos apresentar a este instituto:

Por que o Dec. 3473/2000, bem como o Dec. 3476/2001, estabeleceram um mínimo de 5%? Por quê não estabeleceram 6,93%, ou 20%? Ou melhor, por quê não estabeleceram 100%? A nossa preocupação aqui reside no privilégio de uma minoria de ter a garantia de seus créditos honrados, enquanto a outra, condenada a uma “vala comum”, vai ter de “se virar” para receber. Cremos que tal medida venha a contrariar o princípio constitucional segundo o qual “todos são iguais perante a lei”.

Outro importante fato constatado é a constante e muitas vezes acentuada demora para a liberação dos recursos, já que estes são distribuídos segundo uma técnica de extrema concentração. Com tanta demora, os orçamentos solicitados perdem sua validade; pode ocorrer também que o SICAF da empresa vencedora da consulta de preços acabe por vencido, o que diremos, é muito comum. Tal demora simplesmente inviabiliza a sua utilização, pois pequenas despesas a serem feitas sob a modalidade de “dispensa de licitação” são típicas de situações extraordinárias, que geralmente não admitem prazos longos para a sua solução – de forma contrária – deve a unidade administrativa utilizar-se da licitação, propriamente, em suas diversas modalidades, como por exemplo, a Concorrência, o Convite, a Tomada de preços, ou a mais moderna, o Pregão.

Entendemos que, a permanecerem tais condições, o objetivo do “Empenho com Garantia de Pagamento Contra-Entrega” não será atingido, mas, ao contrário, os preços dos orçamentos subirão ainda mais, pois antes os fornecedores esperavam o pagamento em face de um empenho regularmente emitido, o qual inclusive definia o valor a ser pago, enquanto agora, sem ver o empenho, pelo menos até que a unidade administrativa seja atendida por sua solicitação de recursos, eles nada têm quanto à perspectiva de venda de seus produtos ou serviços, a não ser um mero orçamento, vencível em curto prazo, geralmente 15 a 30 dias, ou mesmo perder a venda por esgotamento do estoque.

Outra questão que precisa de atenção é com os custos de deslocamento da atividade normal da repartição para voltar-se à preocupação permanente de adequar-se ao percentual definido nos decretos supracitados. Um custo de oportunidades, diríamos. Importante frisar que desconhecemos a existência de algum filtro de dados no SIAFI que possa nos auxiliar neste mister, de forma que o acompanhamento tem de ser manual, de calculadora na mão, após cada empenho emitido.

A nossa conclusão é que o Instituto do Empenho com Garantia Contra-Entrega não logra cumprir sua finalidade, cujo método reputamos por questionável. Entretanto, vem a somar-se nos entulhos administrativo-burocráticos a que o administrador deve observar. Parece-nos mesmo que o único resultado prático é o aumento do risco de o administrador ver sua tomada de contas julgada com ressalvas. Ao nosso ver, o instituto do empenho comum deve ter sua credibilidade resgatada por via do cumprimento das leis já pré-existentes, em especial a 4.320/64.

Finalmente, entendemos também que a lei orçamentária deva ser finalmente cumprida, conforme é prática pacífica em muitos países, configurando-se, em alguns destes, crime de responsabilidade pela sua não observância. O fator principal pelo qual um empenho não é pago, são as freqüentes interrupções ou alterações orçamentárias e financeiras, à revelia da lei e sem dar a mínima satisfação à população e à Administração Pública. Parece-nos bizarro ter de, a cada abril, formular uma proposta orçamentária para o ano seguinte, e ver em andamento todo um processo legislativo cujo resultado final será nulo