quinta-feira, 16 de março de 2006

Sobre SICAF e Certidões Negativas

Por Klauber Cristofen Pires
Hoje seria o dia em que receberíamos, em nossa repartição, as impressoras multifuncionais da nova empresa contratada. A empresa venceu a licitação, feita na modalidade pregão-eletrônico, há exatamente dois dias atrás, para o fornecimento, por locação, de impressoras multifuncionais. Mas isto não aconteceu. O contrato não pôde ser assinado, porque a empresa vencedora do certame, no dia da assinatura do contrato, estava com a sua situação irregular no SICAF. Problemas como este acontecem diariamente no serviço público. A burocracia sem limites simplesmente trava o funcionamento das Administrações, com prejuízos incalculáveis sobre toda a população.
Aos que acompanham os jornais, impressos ou televisivos, possivelmente já devem ter visto uma notícia que "tal ou qual ministério recebeu tantos milhões mas não conseguiu executar sequer 20%". Em grande parte, saibam, isto se deve ao emaranhado de exigências que, pouco ou nada tendo a ver com o ato de adquirir produtos ou serviços de fornecedores privados por meio de uma fórmula isonômica, pode ensejar a anulação de meses de trabalho.
Um destes estorvos chama-se SICAF (Sistema de Cadastramento Unificado de Fornecedores). Foi criado pelo decreto nº 1.094, de 23 de março de 1994, pela então Secretaria de Estado da Administração e do Patrimônio do Ministério do Orçamento e Gestão, e consiste em um documento que reúne, numa só folha, podendo ser acessado on-line, a situação fiscal e econômica da empresa que pretenda contratar com a Administração Pública.
A inscrição no SICAF é válida por um ano, mas, em relação a cada tributo, prevalece o prazo de validade constante da respectiva certidão negativa de débito. O SICAF reúne os seguintes tributos: Receita Federal, Dívida Ativa da União, FGTS, INSS, Balanço, Receita Estadual e Receita Municipal. Isto significa que, vencido o prazo de validade de cada uma destas certidões negativas, a empresa deve comparecer ao órgão onde foi feita a inscrição e, de posse de uma nova CND, solicitar a sua atualização no cadastro. As certidões do FGTS têm validade de apenas trinta dias; as dos fiscos municipais, em geral, noventa dias. A superposição das datas de vencimento de sete certidões diferentes faz com que a empresa deva comparecer ao órgão cadastrador, pelo menos umas trinta vezes durante o ano, apenas para manter como válida sua situação no cadastro!
A falta de atualização de qualquer dos itens coloca a empresa em situação "irregular", o que a impedirá de participar de licitações e de contratar com a Administração Pública. Mas não é só isto. A cada pagamento de fatura, o servidor responsável pelo pagamento deve consultar o SICAF; se a situação da empresa perdurar como irregular, poderá ter o seu contrato extinto após o segundo mês.
Durante um bom tempo, o SICAF foi considerado obrigatório para a participação em licitações. No entanto, julgados do TCU e do Poder Judiciário, de forma sábia, têm entendido que a exigência de prévio cadastramento no SICAF como pré-requisito de habilitação em licitações afronta o Princípio da Licitação, que é o de abrir o maior leque possível de oportunidades aos competidores. Mas isto somente significa que eles não precisam aderir a este cadastro, pois que ainda lhes é exigido comparecer ao certame de posse de todas as certidões aqui citadas.
Interessante é verificar que a situação de algum item, apontado como irregular no SICAF, não significa necessariamente que a empresa esteja em débito com algum tributo, mas que, apenas, não o atualizou junto ao órgão cadastrador, o que pode significar a prática de uma injustiça quando a Administração se nega a assinar o contrato ou a sujeitar o pagamento da fatura à regularização do cadastro.
Por outro lado, a própria Certidão Negativa de Débito não garante que a empresa está em dia com suas obrigações tributárias, e isto pode ser demonstrado no seu próprio texto, que declara que a entidade poderá vir a cobrar eventuais créditos tributários que forem lançados após a expedição da certidão. Isto acontece porque a entidade tributante não tem conhecimento de atos que o contribuinte possa realizar sem declará-los.
Uma certidão "positiva" não tem o efeito de coisa julgada, mas apenas se define como a declaração de algum alegado crédito tributário, por parte de um órgão fiscal; o contribuinte, por sua vez, poderá pagá-lo, se concordar (ou se conformar), ou, ao contrário, procurar a justiça. Se o Poder Judiciário julgar como improcedente o crédito tributário, é de se concordar que o contribuinte possa processar o Estado, alegando perdas e danos por tê-lo impedido de participar em licitações. Neste sentido, pode-se concluir que a exigência de certidão negativa como pré-requisito para participar em licitações ofende os princípios de unicidade de jurisdição e de presunção de inocência, consagrados, respectivamente, em nossa constituição no artigo 5º, incisos XXXV ("a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito") e LVII ("ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória").
A exigência do SICAF, ou mesmo de CND's, como requisito de habilitação em licitações, não guarda nenhuma relação com qualquer alegação de princípio de moralidade pública. Não é mais imoral que uma empresa em situação fiscal irregular venda à Administração Pública do que aos demais particulares. Os prejuízos que o sonegador de tributos causa à sociedade não são menos indignos do que os causados ao Estado.
Mas, pasme o leitor, a própria Constituição Federal, em seu art. 37, inc. XXI, proíbe expressamente a instituição de exigências outras que não as de capacidade técnica e econômica, e mesmo assim, que estas sejam apenas as indispensáveis à garantia de cumprimento das obrigações: "Ressalvados os casos especificados na legislação, as obras, serviços, compras e alienações serão contratados mediante processo de licitação pública que assegure igualdade de condições a todos os concorrentes, com cláusulas que estabeleçam obrigações de pagamento, mantidas as condições efetivas da proposta, nos termos da lei, o qual somente permitirá as exigências de qualificação técnica e econômica indispensáveis à garantia do cumprimento das obrigações." (Grifos nossos). Há uma exceção constitucional ao caso em tela, preconizada pelo art. 195, § 3º: "A pessoa jurídica em débito com o sistema de seguridade social, como estabelecido em lei, não poderá contratar com o Poder Público nem dele receber benefícios ou incentivos fiscais ou creditícios".
Isto coloca a lei 8.666/93, em seus artigos 27, IV e 29 e incisos I a IV*, em flagrante inconstitucionalidade. É de admirar que até então ninguém tenha proposto a arguição de inconstitucionalidade desta lei. É possível que, a fim de socorrer a lei, tenha sido dada à clausula da Carta Maior uma interpretação mais ou menos assim: "que, em relação às exigências de qualificação técnica e econômica, só serão exigidas aquelas indispensáveis à garantia do cumprimento das obrigações". Não vejo, contudo, como tal idéia possa prevalecer. Porque isto significaria liberar à vontade toda a sorte de exigências, sendo que somente as de qualificação técnica e econômica encontrariam limitações. Ora, isto fere de morte o próprio espírito do texto constitucional, que justamente procurou dar um sentido de objetividade às licitações. Seria um absurdo imaginar que o constituinte tenha autorizado toda a sorte de exigências, enquanto impusesse limitações justamente sobre os aspectos mais caros da licitação. Imagine-se que uma nova lei viesse a exigir que e empresa demonstrasse que seus produtos foram produzidos pela comunidade quilombola de Sei-Lá-Onde, ou que metade de seu quadro de funcionários deva ser formado por negros ou deficientes físicos, ou que seu processo de fabricação somente utiliza insumos que não agridam a natureza... (já começo a temer dar idéias...).
Adicionalmente, a exceção prevista no art. 195, § 3º, tornar-se-ia inócua. Por quê a Constituição se preocuparia em criar uma cláusula impedindo empresas em débito com a Seguridade Social de contratar com a Administração Pública, se a mera lei ordinária fosse autorizada a exercer este mister?
A conseqüência da imposição de tais requisitos atrapalha - e muito - o andamento das licitações e dos contratos administrativos; interrompe o fornecimento de produtos e serviços, muitas vezes considerados indispensáveis; abre campo para intermináveis recursos administrativos e abarrota os tribunais com disputas jurídicas que não precisariam existir. Não vejo como uma alegação abstrata de proteção ao princípio da moralidade pública possa prevalecer ante a ofensa concreta do princípio da eficiência, que infelizmente, em nosso Estado, anda tão a desejar.
Mas o pior resultado ainda não se encontra aí. O que se vê de pior, realmente, é a inversão do ânimo com que permitimos que o Estado trate a nós, cidadãos, e ao instrumento da nossa livre iniciativa, que são as empresas. Em uma sociedade livre e civilizada, as pessoas e suas empresas são consideradas, a priori, como ordeiras e honestas. São juridicamente capazes de realizar todos os atos lícitos, e isto inclui vender produtos e serviços a toda a sociedade (inclusive o Estado). Em uma sociedade livre, é inadmissível que o cidadão tenha de provar que é honesto, para praticar atos fundamentalmente honestos.
Certamente, o Estado deve combater a sonegação, assim como todos os tipos de delitos. O Estado que provê aos seus cidadãos uma Administração Tributária bem aparelhada e eficiente garante o reinado da justiça, da paz e da ordem, por meio de uma atuação ostensiva e igualitária, mas aquele que faz uso de medidas casuísticas que trazem no seu corpo a marca do desvio de finalidade apenas denuncia o seu apetite imediatista de arrecadar a qualquer custo, enquanto emporcalha justamente o objetivo de arrecadar, que é o de prestar eficientemente aos cidadãos os serviços públicos.
* Lei 8.666, de 21 de junho de 1993, Das Licitações e Contratos Administrativos:


art. 27: Para a habilitação nas licitações exigir-se-á dos interessados, exclusivamente, documentação relativa a :
...
IV - regularidade fiscal;
...
Art. 29: A documentação relativa à regularida fiscal, conforme o caso, consistirá em:

I - Prova de inscrição no Cadastro de Pessoas Físicas (CPF) ou no Cadastro Geral de Contribuintes (CGC);
II- Prova de Inscrição no cadastro de contribuintes estadual ou municipal, se houver, relativo a domicílio ou sede do licitante, pertinente ao seu ramo de atividade e compatível com o objeto contratual;
III- prova de regularidade para com a Fazenda Fderal, Estadual e Municipal do domicílio ou sede do licitante, ou outra equivalente, na forma da lei;
IV- prova de regularidade relativa à Seguridade Social e ao Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS), demonstrando situação regular no cumprimento dos encargos sociais instituídos por lei.

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