sexta-feira, 24 de abril de 2015

Capitalismo de compadrio: as aventuras do Governo e os fracassos da Política Industrial em Sistemas de Cloud Computing na França

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Introdução
O projeto Andrômeda tinha por interesse criar na França um consórcio e parceria entre o governo e empresas privadas para o desenvolvimento de um sistema completo de armazenamento e gestão de dados em nuvens (Cloud Computing). Desenvolvido em 2009, durante o governo UMP, o projeto foi colocado em aplicação durante a administração socialista, a partir de 2012.
Um dos principais motores da iniciativa do governo, nos diziam os representantes políticos, eram questões de soberania similares às justificativas dadas à manutenção de projetos de defesa nacional. Em um mundo de vigilância e espionagem cibernética, os indivíduos, as empresas e as administrações francesas – buscando maior segurança e sigilo – deveriam dispor e ter acesso a um sistema localmente estabelecido de armazenamento e gestão de dados, à proximidade e sob real influência regulamentária e controle direto e indireto do governo. Buscando competir com outros gigantes do setor, o consórcio e a produção de um sistema de armazenamento em nuvens “100% francês” seria uma resposta à demanda de usuários utilizando-se da localização das estruturas como referencial para escolha dos serviços.
Obviamente, e apresentando um caráter tão – ou até mais – importante, seguem todos os argumentos tradicionais da política industrial apresentados geralmente por políticos populistas, por progressistas e economistas desenvolvimentistas, que elogiam a participação do governo na “condução” de políticas industriais, geralmente entoando proposições como: “se trata de um setor estratégico para o desenvolvimento e progresso social”, “uma indústria cuja produção estimula diversas outras e incrementa a matriz industrial”, “um setor do futuro, que está bem próximo da ponta do progresso tecnológico e que conduzirá cada vez mais ao crescimento econômico”, “são bens e serviços indispensáveis e sua produção local vai engendrar uma quantidade incalculável de empregos”, e etc., e etc.
Vale lembrar que o plano de instalação de uma indústria “100% francesa” de cloud computing era um componente dos “34 planos de reconquista industrial”, um elemento primordial da política industrial apresentada por Arnaud Montebourg na época em que integrava o Ministério da Reedificação Produtiva (Ministère du Redressement Productif) – órgão criado praticamente ad-hoc e fazendo parte do próprio Ministério da Indústria. Essa política industrial dava lugar de destaque às medidas relacionadas a tudo que fosse da era digital: aplicativos e softwares, big data, nanoeletrônica, segurança cibernética, robótica e tudo associado à tecnologia da informação.
O cenário político e conjuntura econômica pareciam ideais, tendo em vista a crise econômica e a popularidade do governo recém eleito. Tínhamos tudo o que fosse necessário para novas e mais aventuras do governo francês no setor industrial, infelizmente para o bolso dos contribuintes.
Política Digital e Parcerias Público-Privadas
É fácil explicar ao leitor que o princípio do cloud computing é relativamente simples, e trata-se unicamente da exploração da potência de cálculo, de estoque e de transmissão de informações entre locatários de serviços digitais – adquiridos livremente – e servidores localizados à distância, por intermediário de redes de comunicação.
A título ilustrativo, lembremos que em determinados casos, para facilitar o acesso à distância, dinamizar o fluxo e a comunicação de dados e informações, e evitar os custos associados ao estoque, gestão e garantia de segurança informática – e certas vezes o desenvolvimento e a construção de uma estrutura de gestão e armazenamento (hardwares e softwares) –, empresas e consumidores alugam e utilizam esses serviços, que são disponibilizados e fornecidos por empresas especializadas (Google, Windows, Amazon, Apple, Azure…).
Fruto da divisão do trabalho, da especialização e do progresso técnico, o aluguel via contrato específico contribui à dinamização do tratamento de informações e permite que os usuários evitem custos importantes.
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O que temos, então, é uma estrutura produtiva envolvendo geralmente os seguintes segmentos:
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cloud3Construir e garantir serviços “100% nacionais” de cloud computing significa produzir as infraestruturas necessárias (hardwares e aparelhos de estocagem, processadores, redes), desenvolver as plataformas e aplicativos (base de dados, sistemas de identificação e segurança e etc.), assegurar as operações dos servidores e operadores especializados nas comunicações de dados, e muitas vezes, a garantia de uma frequência do espaço hertziano para a transmissão das telecomunicações entre aparelhos associando os servidores e consumidores.
O que eu denominei Política Digital é exatamente o conjunto das medidas conduzidas por governos para tratar (intervir) sobre as questões e os eventos associados às novas tecnologias de informação e informática, e a parte mais desenvolvida tecnologicamente do setor das telecomunicações.
O projeto Andrômeda se materializou na realização de empréstimos e alocação de verbas públicas para investimentos em atividades de cloud computing “100% francesas”, incluindo desde as estruturas até os serviços finais, passando pelas plataformas digitais e demais serviços e softwares. O projeto inicial previa valores da ordem de 150 milhões de Euros via Caixa de Depósitos (Caisse des Dépôts et Consignations), em um consórcio e associação entre o governo, ThalèsDassault e Orange.
Não havendo consenso sobre o funcionamento desse consórcio – Dassault não concordava em todos os termos com Orange –, Dassault se retira e encontra uma parceria com SFR: ambos decidem apresentar um projeto concorrente a este apresentado por Thalès e Orange. Dois meses depois, Dassault abandona definitivamente sua iniciativa deixando sozinha SFR, que termina encontrando um novo parceiro para que o projeto comum fosse garantido: a empresa Bull.
Visto a incapacidade de arbitrar da parte do governo, e provavelmente sua vontade de não deixar ninguém de fora, os 150 milhões terminariam sendo divididos em dois pacotes de 75 milhões a serem utilizados para criação de dois conglomerados: Numergy – conglomerado reunindo as gigantes SFR (47%), Bull (20%) e o restante permanecendo nas mãos da Caixa de Depósitos (ou do governo a propriamente falar) –, eCloudwatt – conglomerado reunindo as gigantes Orange (45%) e Thalès (22%), o restante idem.
Podemos considerar que o primeiro fracasso do governo foi “sua incapacidade” de aplicar o que foi idealizado inicialmente, e o fato de escolher mal o arranjo organizacional e produtivo por motivos políticos e por desentendimento entre os industriais participantes.
Se imaginarmos que, justamente por ser um serviço em redes e onde o sucesso das empresas e a satisfação dos consumidores depende da capacidade de exploração de ganhos importantes de escala e de escopo e, consequentemente, das economias em custos de produção e transação, não resta muito terreno para dúvidas quanto ao fracasso. Dados os custos envolvidos, a escolha governamental de manter uma estrutura e financiamento de dois projetos ao invés de um já revela um nonsense econômico que prevalece quase sempre que o governo inicia suas aventuras intervencionistas e industriais.
Na verdade, temos aqui mais um belo exemplo e resultado de parcerias público privadas, aquela relação de “parceiragem” entre o governo e a iniciativa privada buscando promover um mundo melhor, ou o melhor dos dois mundos, o progresso para o país e o enriquecimento… sobretudo dos envolvidos.

A Organização do Cloud Computing e a Síndrome do Idiota Prodígio
Em plena ascensão a nível mundial, como boa parte dos setores de tecnologia, o cloud computing é um dos segmentos que mais recebe investimentos por seu potencial a reduzir e racionalizar os custos de gestão, e garantir o estoque e a comunicação de informações entre empresas, e a diversidade e gama de serviços que o cloud oferece para que as empresas possam dinamizar seus processos produtivos e a disponibilização de seus serviços e sua relação com clientes.
De acordo com dados apontados pela Goldman Sachs, os investimentos em infraestruturas e plataformas de cloud computing vão continuar progredindo a uma escala de 24% até 2018 (dados em Compound Annual Growth Rate), em média 5% a mais que outros investimentos em tecnologia da informação realizados pelas empresas.
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Dentro desta tendência de crescimento, além das modalidades e extensão dos serviços ofertados em função da estrutura produtiva alocada e utilizada (SaaSIaas, ou Paas: ver primeira ilustração sobre fluxos), temos ainda uma política comercial e oferta de serviços em função da natureza dos serviços e dos contratos disponibilizados. Logo, existe uma concorrência potencial e diversidade de serviços em função das necessidades em termos de estrutura utilizada e de produtos requisitados e demandados pelos consumidores.
Isto quer dizer, se a empresa vai: (1) fornecer ou demandar serviços de uma plataforma pública (no sentido de estar aberta à todos), neste casoPublic Cloud; (2) fornecer ou demandar serviços específicos, adaptados e apropriáveis que os operadores desenvolvem de forma exclusiva e em função dos clientes, que têm acesso restrito, neste caso o Private Cloud; (3) fornecer ou demandar serviços que tenham caráter menos exclusivo, quando as empresas não quiserem utilizar um serviço em plataformas públicas por motivos de especificidade ou segurança, e que não precisem ou não queiram pagar por estruturas demasiadamente exclusivas ou desenvolvidas como um produto restrito, podendo então recorrer a serviços locados em parcerias e desenvolvidos para determinados segmentos, nestes casos, o Hosted Private Cloud.
O segundo fracasso do governo francês foi quando, enquanto acionário e mediador via Caixa de Depósitos, ajudou a privilegiar o fornecimento serviços de Public Cloud, uma vez que o mercado – e sua parte mais rentável – foi cada vez mais requisitando e tomando a direção dos sistemas em Private Cloud ou Hosted Private Cloud. Segundo Philippe Tavernier, CEO de Numergy, um erro de previsão: “Cometemos o erro de pensar que Public Cloud dominaria… mas foi o Private Cloud que até o momento obteve preferência das empresas.” O que confirma as previsões e o relatório da IDC (International Data Corporation):
“…It’s the virtual private cloud model that will dominate future growth, thanks to the speed and the low capital costs it offers. In other words, it adapts the advantages of a public cloud for private use — not a bad thing when companies are increasingly looking to as-a-service options (infrastructure, platform, software, etc.) to save money.”
O terceiro erro foi que o setor de cloud computing já florescia e conseguia atender de forma relativamente satisfatória os consumidores em um ambiente concorrencial. Por mais que não estivessem “100% localmente estabelecidas”, empresas francesas como OVHGandiIkoula,Clozy Cloud e Lima competiam ao nível nacional. E desde uma perspectiva internacional, potencialmente fariam concorrência aos líderes de mercado. O fracasso do governo foi que, ao invés de privilegiar ou estimular que as empresas presentes no mercado desenvolvessem localmente suas plataformas, preferiu consagrar investimentos públicos para a confecção de novos conglomerados, incorrendo forçosamente a custos mais elevados.
Desanimador se imaginarmos que depois do inicio do projeto Andrômeda a empresa luxemburguesa Altice (Numericable) comprou SFR, Bull cedeu suas partes à Atos, e mais recentemente aprendemos que Cloudwatt vai ser completamente adquirida por Orange. Mais desanimador ainda se soubermos que, com o passar do tempo e dentro das esferas governamentais, houveram conversas e boatos ao longo dos últimos anos sobre uma possível fusão entre os dois conglomerados. Ou seja, se um dos interesses era favorecer empresas locais, por Numergy o plano fracassou, se o interesse era assegurar o governo acionário, o plano fracassou para Cloudwatt: ao final o que houve foi o favorecimento de grandes grupos e oferta de dinheiro público à empresas que sequer eram verdadeiramente do ramo.
O quarto fracasso é a desproporção dos erros de previsão feitos em matéria de horizonte de retorno e em termos de empregos criados. Em 2012, era anunciado por Cloudwatt a previsão de um volume de negócios da ordem de 500 milhões de Euros até 2017, por uma geração de 300 à 500 empregos. Do lado de Numergy, era anunciado um volume de negócios da ordem de 400 milhões de Euros, por uma geração de 400 empregos. Recentemente Cloudwatt revisou suas previsões para um volume de negócios de 200 milhões de Euros em 2017, não obstante, volume bem distante dos 2 milhões efetivamente realizados em 2014. Idem por Numergy, que registrou 6 milhões em volume de negócios em 2014. Obviamente, equívocos são naturais, e em empresas novas não se pode pretender um retorno imediato ou de curto prazo, mas quando temos discrepâncias dessa natureza percebemos que para justificar determinadas políticas e captação de recursos públicos, o governo e os industriais podem prometer até mesmo a Lua.
Do lado dos empregos, aprendemos que até recentemente Numergy não havia empregado mais do que uma centena de pessoas, bem distante ainda dos 400 empregos prometidos para 2017. Até Setembro do ano passado, Cloudwatt já licenciava 15 entre os 95 colaboradores, por motivos de reestruturação e talvez em contrapartida se tenha empregado mais um punhado, não deixa de ser evidente estarmos bem distantes dos 500 empregos prometidos ou projetados.
Os 150 milhões de Euros não criaram, até então, mais do que algo em torno de 200 empregos, uma das relações dispêndio público vs. emprego gerado das mais medíocres. A titulo ilustrativo, com metade da soma, 75 milhões de Euros, seria possível manter o financiamento de 240 vagas em creches públicas por 20 anos, ou ainda, pagar um mês de salário mínimo francês à 62 400 pessoas, ou um salario mínimo a 5 mil e 200 pessoas durante um ano. O terceiro fracasso do governo francês, em um país onde o desemprego é recorde, foi arbitrar de maneira não muito realista em matéria de dispêndio público e geração de empregos.
O que temos, de fato, é mais um exemplo e manifestação de um sintoma que permeia desde os temos ancestrais os representantes políticos, burocratas e administradores integrando os poderes públicos: a Síndrome do Idiota Prodígio. Quem quer que tenha realmente entendido o que ensinou a economia política moderna sabe que, dificilmente, a boa intenção de burocratas e a precisão dos relatórios de instâncias públicas são os verdadeiros guias para determinação das diretrizes do desenvolvimento industrial.
Em matéria de (fracasso da) política industrial o país de Jean-Baptiste Colbert é grande reincidente, o que dizer das experiências recentes doConcorde e do Minitel? Acreditar que o governo poderia a partir de intervenções apropriadas “guiar” duravelmente uma indústria na direção de objetivos considerados mais desejáveis representa uma fé comparável a fé no planismo total. No caso do cloud computing da França, a fé esbarrou na própria dinâmica de funcionamento de uma economia de mercado, mas principalmente, nas condições concretas de funcionamento da democracia representativa e decisões em política industrial.
Compadrio Aplicado: A Ilusão da Política Industrial
O aspecto político foi extensivamente abordado nos seguintes artigos {[1] ; [2]}, e é possível sintetizar o problema da seguinte maneira: entre o momento em que germina a idéia ou solução “teórica” em matéria de política pública na mente dos funcionários das administrações – e responsáveis pela conduta da política industrial do governo – e o momento até onde esta política se traduz em decisões concretas e é aplicada, se coloca um processo de elaboração de textos, portarias, leis e regulamentos administrativos sobre os quais vão se manifestar uma série de influências tendo origens diversas: origem político-partidária, de categoria ou profissão, de origem sindical, religiosa ou ideológica. A elaboração de políticas em democracias representativas nunca é um processo linear e simples, lugar de onde partimos de uma idéia clara e aplicamos imediatamente após codificar. O exemplo do cloud computing é bem ilustrativo.
Não é desta forma espantoso ver que a política industrial geralmente se concentra em setores tendo forte presença sindical, setores onde existem grupos de pressão e lobby fortemente implantados: setores onde não existiria nenhuma razão para que os recursos destinados – muitas vezes sob forma de subvenção ou empréstimos públicos – não pudessem ter sido obtidos no mercado, sobretudo quando as condições institucionais minimamente necessárias e a conjuntura econômica permitissem.
Nas democracias ocidentais o que chamam “política industrial” é apenas uma das modalidades através das quais certos grupos organizados (de pressão) impõem à coletividade esforços de redistribuição que eles não conseguiriam justificar por meios tradicionais ou diretos. Sob álibi da satisfação do interesse geral encontramos uma lógica do desperdício ditada e promovida pelo discurso técnico controlado, manipulado e imposto por grandes produtores e sindicatos.
Desde o dia em que o governo se arrogou o direito de espoliar significativamente os direitos de propriedade de uns para redistribuir a outros, se colocou em funcionamento nas democracias representativas um mecanismo social implacável de progressão e expansão da ficção segundo a qual todos acreditam poder obter legitimamente benefícios privados desde que tais benefícios estejam de acordo com a agenda do interesse nacional, do bem estar geral, do progresso da indústria, da salvaguarda de empregos em setores cruciais, da sobrevivência de um segmento chave ao progresso tecnológico, da defesa da matriz industrial…. e todas as outras expressões integrando o economês sem verdadeiro fundamento e embasamento teórico credível.
Por trás de uma linguagem que muitas vezes não quer dizer estritamente nada, ou que não quer dizer o que verdadeiramente está subentendido, a política industrial se traduz frequentemente na defesa de interesses corporatistas e implica quase sempre mecanismos de redistribuição. O caso francês é mais um exemplo notório de que isso ocorre com frequência mesmo em países desenvolvidos. Em suma: ao que conduz quase sempre a maioria das recomendações em matéria de política industrial? Simplesmente tomar dinheiro do bolso do contribuinte pra transferir ao beneficiado do dia e predileto do governo.

Sobre o autor

Matheus Bernardino
Economista (Universidade de Paris I Panthéon Sorbonne)
Economista (Universidade de Paris I Panthéon Sorbonne)

onte: Instituto Liberal

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