Viciadas pelo assistencialismo do Estado e corrompidas pelo relativismo moral, as famílias trabalhadoras já não possuem valores a repassar aos filhos e são as principais vítimas da derrocada da ordem
Por José Maria e Silva
As datas comemorativas são os andaimes da construção histórica que o presente faz sobre o passado. É através delas que a historiografia oficial sai das cátedras e ganha as ruas, criando seu imaginário, seus heróis, sua narrativa. Por isso, as datas históricas mudam com o tempo ou ganham novas interpretações, adequando-se à visão hegemônica de um dado período da sociedade. O Dia da Inconfidência, por exemplo, comemorado em 21 de abril, foi uma invenção da República, que precisava reconstruir um passado inexistente, já que a sociedade brasileira, majoritariamente católica, tinha um perfil muito mais próximo do paternalismo monárquico do que do falso republicanismo de quartel. Da mesma forma, o efêmero “10 de Novembro”, data de criação do Estado Novo, foi uma invenção da ditadura de Getúlio Vargas e chegou a ser comemorado nas escolas durante seu regime.
O 1º de Maio é uma dessas datas comemorativas que ajudam a reconstruir a história nem sempre a partir dos fatos, muitas vezes irremediavelmente perdidos, mas a partir do viés político que o presente impõe ao passado. Para a maioria, a data remete às lutas operárias de Chicago, nos Estados Unidos, que resultaram nos distúrbios de 1º de maio de 1886, quando um atentado a bomba matou um policial, motivou a reação da polícia e resultou em dezenas de mortos, entre policiais e civis. No ano seguinte, cinco líderes anarquistas foram executados como responsáveis pelo atentado terrorista, servindo de marco para as celebrações anarquistas do 1º de Maio. Mas há setores da esquerda que preferem desassociar a data das reivindicações trabalhistas norte-americanas – que se deram no âmbito do capitalismo – para associá-la ao bolchevismo, alegando que a comemoração do 1º de Maio teve início na União Soviética, como forma de celebrar a revolução proletária.
No Brasil, segundo Isabel Bilhão, doutora em História pela UFRGS, o 1º de Maio começou a ser comemorado a partir de 1891, no Rio de Janeiro, por iniciativa de militantes socialistas. Mas sua celebração, que se repetia em outras cidades pelo País afora, acabou adquirindo um caráter patriótico, de apoio à jovem República, com desfiles, festejos, bandas de música e até moças em trajes típicos declamando poemas em louvor aos operários. Posteriormente, a data foi apropriada pelos anarquistas e serviu de estopim para as greves operárias na Primeira República, sobretudo em defesa da redução da jornada de trabalho. Mas as comemorações do 1º de Maio ganharam força com a Revolução de 30, quando a data serviu ao culto personalista de Getúlio Vargas, que promovia grandes celebrações do Dia do Trabalho no Estádio São Januário, do Vasco da Gama. Nos Estados, seus interventores recebiam autorização para transportar os operários do interior para a comemoração nas capitais.
Esmola estatal no Dia do Trabalho
Durante o regime militar, as comemorações do 1º de Maio ganharam um caráter apolítico, celebrando mais o “trabalho” do que o “trabalhador”, numa tentativa de esvaziar o histórico de lutas reivindicatórias que cerca a data. Natural, portanto, que, com a abertura política, a partir da década de 80, houvesse uma inversão de sentido, retomando-se o caráter político do 1º de Maio como memória histórica das lutas operárias. Essa tendência ganhou força durante a Nova República de José Sarney e se intensificou durante os dois governos de Fernando Henrique Cardoso, quando as centrais sindicais, sobretudo a CUT (Central Única dos Trabalhadores), cada vez mais enriquecidas pelo imposto sindical, tornaram-se capazes de realizar grandes eventos no 1º de Maio, inclusive shows musicais com artistas famosos.
Após a eleição de Luiz Inácio Lula da Silva, em 2002, o 1º de Maio passou a ter um caráter ufanista, em que Lula, apesar de ter passado infinitamente mais tempo nos palanques sindicais e eleitorais do que no torno mecânico, vestia sua máscara de eterno operário e ia comemorar a data em São Bernardo do Campo, no ABC Paulista, junto com seus antigos companheiros de Sindicato dos Metalúrgicos. Com a presidente Dilma Rousseff a coisa piorou: sem a mesma história sindical de seu criador, ela transformou a data num palanque virtual, convocando, religiosamente, a cada ano, uma cadeia nacional de rádio e televisão para fazer promessas eleitorais. Foi o que ocorreu na véspera do último 1º de maio, na quarta-feira, 30, quando prometeu corrigir a tabela do Imposto de Renda e anunciou um aumento de 10% no valor do Programa Bolsa-Família, que, segundo ela, já atinge 36 milhões de brasileiros.
Na verdade, deve atingir muito mais. Segundo dados do próprio Ministério do Desenvolvimento Social, o Programa Bolsa-Família fechou o mês de abril deste ano atendendo 14,145 milhões de famílias, que receberam um benefício médio de R$ 149,46, a um custo no mês de R$ 2,114 bilhões. Como é muito difícil que, em média, cada uma dessas famílias tenha menos de três pessoas, o número de beneficiários deve estar entre 42 milhões e 56 milhões, caso se considere três ou quatro pessoas por família. Isso significa que um quarto da população brasileira vive de esmola estatal – e o aumento dessa esmola é anunciado, ironicamente, no Dia do Trabalho. Sem contar que, em janeiro deste ano, no Cadastro Único para Programas Sociais do Governo Federal (que engloba Bolsa-Família, Tarifa Social de Energia, Carteira do Idoso, Minha Casa Minha Vida etc.), estavam inscritas 27,294 milhões de famílias, o que eleva para 108 milhões, no mínimo, o número de pessoas dependentes do Estado, ou seja, mais da metade da população brasileira.
Capitalista com alma de operário
Com isso, o Brasil vai ficando cada vez mais distante de uma ética do trabalho, que, para Max Weber, foi a base do capitalismo moderno. No clássico “A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo”, Weber analisa a obra do teólogo puritano inglês Richard Baxter (1615-1691) e demonstra que, para ele, a graça de Deus se manifesta na terra por meio da ascese do trabalho, avessa ao ócio e partidária de uma labuta infatigável até mesmo para os ricos que não precisam derramar o próprio suor para sobreviver. Foi assim, segundo Weber, que surgiu a “ética profissional especificamente burguesa” e, com ela, o “empreendedor burguês”, que não precisava envergonhar-se de sua riqueza, desde que ela fosse auferida pelo trabalho árduo. “O poder da ascese religiosa, além disso, punha à sua disposição trabalhadores sóbrios, conscientes e incomparavelmente industriosos, que se aferraram ao trabalho como a uma finalidade de vida desejada por Deus”.
“Viver é trabalhar. Só por meio do trabalho podemos conseguir felicidade e prosperidade. Da tentativa de furtar-se ao curso normal do trabalho é que a miséria humana deflui” – afirma o visionário industrial norte-americano Henry Ford (1863-1947) em seu livro “Minha Vida, Minha Obra”, escrito em parceria com o jornalista Samuel Crowther (1880-1947) e publicado em 1922. No Brasil, o livro foi lançado em 1925, anunciado como “exclusividade” da Companhia Gráfico-Editora Monteiro Lobato, dois anos antes de Ford iniciar sua aventura amazônica, ao receber do governo do Estado do Pará 1 milhão de hectares para o plantio de seringueiras. “As funções básicas da vida são a agricultura, a manufatura e o transporte. Sem elas, impossível a vida em sociedade. Plantar, fazer e carregar são coisas tão antigas como as necessidades humanas, e apesar disso tão modernas como o que mais seja. Constituem a essência da vida física. Quando esses elementos desaparecem, cessa a vida coletiva” – reitera Ford, na mesma autobiografia, buscando conciliar trabalho e natureza como expressão do capitalismo em que acreditava.
Henry Ford foi talvez o maior protagonista desse capitalismo descrito por Max Weber em que o trabalho era o valor supremo da sociedade, quase um substituto de Deus ou ao menos sua expressão máxima no mundo secular. Em sua autobiografia, Ford afirma que “o princípio econômico fundamental é o trabalho”. Essa crença levava-o a fazer afirmações que podem parecer desumanas no Brasil do Bolsa-Família: “Não há razão alguma que autorize um homem que pode, mas não quer trabalhar, a receber a remuneração de um trabalho que não executou. A um indivíduo qualquer só lhe é permitido exigir da comunidade o equivalente exato da sua contribuição de trabalho. Se a contribuição foi nula, nada poderá exigir dos seus semelhantes. Fica-lhe apenas a liberdade de morrer de fome”.
Trabalho como ascensão social
Na época de Ford, a humanidade havia superado certa aversão pelo trabalho cultivada durante muitos séculos pela aristocracia europeia e vivia o auge da grande indústria, empregando milhares de trabalhadores em seus parques industriais, especialmente nos Estados Unidos, que premiava o trabalho do indivíduo com uma possibilidade de ascensão social sem precedentes. Os norte-americanos cultivavam o ideal do homem prático, encarnado pelo inventor Thomas Edson (1847-1931), por sinal muito amigo de Ford, apesar de 16 anos mais velho. Tendo alguma teoria, um homem precisava aplicá-la, mediante seu próprio esforço, muitas vezes manualmente. Era o caso do próprio Ford, homem essencialmente prático, ainda que impregnado por ideais utópicos. “As máquinas são para um mecânico o que os livros são para o escritor. Delas recebe ideias e se tiver inteligência saberá aplicá-las”, observa Ford, expressando sua essência prática, ainda que não fosse avesso às ideias e fosse um leitor assíduo do filósofo e poeta Ralph Waldo Emerson (1803-1882).
Desde a infância, Ford já se mostrava curioso em relação ao funcionamento das máquinas e aprendeu muito novo a arte da relojoaria. Seu pai, um abastado fazendeiro, queria que ele se dedicasse à agricultura, mas Ford tinha uma visão pouco lisonjeira do trabalho no campo, que lhe parecia improdutivo, por falta de tecnologia. “Estava convicto que os animais, comparando o cuidado que davam no tratá-los e mantê-los, com o pouco serviço que prestavam, não pagavam nem as próprias despesas”, escreve ele, referindo-se ao modo negativo como, desde muito jovem, avaliava o trabalho agrícola em estado bruto, sem o concurso da ciência e da técnica. “Um roceiro faz da sua tarefa cotidiana um problema demasiadamente complicado. Creio que, em geral, de toda a energia que ele expende no serviço apenas uns 5% são verdadeiramente utilizados”, comparava.
Para Ford, os agricultores deviam se comportar como industriais, como ele fazia em sua fazenda, mecanizando ao máximo a produção. Foi com esse objetivo que teve a ideia de aperfeiçoar as máquinas então utilizadas na lavoura, ainda muito precárias e pesadas, devido ao problema do combustível utilizado, que exigia uma caldeira e recipientes de água e carvão. Esse homem-símbolo da indústria automobilística não se interessou de imediato em construir carros de passeio, atendendo um sonho cada vez mais popular, e preferiu se dedicar à tarefa de construir um veículo leve a vapor “que substituísse os animais e que, servindo de trator, pudesse acudir ao trabalho excessivamente pesado de arar”. Mas Ford se viu obrigado a construir primeiro um automóvel ao ver que os homens se interessavam muito mais por um veículo de lazer: “Duvidei que o uso dos tratores se generalizasse pelas fazendas, quando vi que os fazendeiros tinham os olhos postos nos automóveis de passeio” – conta em sua autobiografia.
Industrial avesso a mudança
A partir de 1891, aos 18 anos, Henry Ford dedicou-se com afinco ao aperfeiçoamento do automóvel com motor a gasolina, criado na Alemanha por Karl Benz (1844-1829). Na primavera de 1893, aos 20 anos, concluiu a construção de seu primeiro veículo, que oferecia duas velocidades, 16 ou 32 quilômetros por hora, intercambiáveis por meio de uma manivela. Por muito tempo, em Detroit, seu “calhambeque a gasolina” foi o primeiro e único automóvel, fazendo barulho, espantando os animais e provocando congestionamento de curiosos por onde passava. “Se o deixava só, ainda que por um minuto, sempre algum curioso tentava experimentá-lo. Por fim, me vi obrigado a trazer uma corrente de cadeado para amarrar o curioso monstrengo a um poste de lampião, todas as vezes que devia demorar-me algures”, conta. Depois vieram as encrencas com a polícia, devido à falta de regulação para o automóvel e, por fim, uma licença especial do prefeito, que o permitia dirigir seu veículo.
Em 15 de agosto de 1899, depois de ter construído outros veículos com motor a gasolina, Ford deixou o emprego numa empresa de energia elétrica para se aventurar na fabricação em série de automóveis a gasolina, o que iria se consolidar com a criação de sua própria companhia em 1903. Era ainda uma aventura, pois não tinha capital suficiente e o automóvel a gasolina era visto como um meio para a prática esportiva – os grandes empresários não achavam que fosse vingar como meio de transporte. Quando ficou provado que o automóvel realmente tinha utilidade e algumas empresas começaram a lançá-lo comercialmente, surgiu a pergunta sobre qual era o automóvel mais veloz, algo em que Ford diz nunca haver pensado até então. Para ele, o povo sempre “considerou o automóvel como um divertimento de velocidade” e ele próprio se viu obrigado a tomar parte nas corridas automobilísticas. “Essa tendência prematura para a velocidade só trouxe prejuízos à indústria porque fez com que os fabricantes se dedicassem mais à velocidade do que à qualidade dos carros. O negócio era ótimo para os especuladores”, avalia.
Em 31 de maio de 1921, pouco antes de Ford lançar sua autobiografia, a Companhia de Automóveis Ford apresentou o carro de número 5.000.000, que foi posto no museu do industrial ao lado do primeiro automóvel que ele começara a criar 30 anos antes e que pôs em marcha em 1893. “Há entre os dois automóveis diferenças profundas nos materiais e no modelo, mas na essência ainda são curiosamente iguais, a não ser em algumas peculiaridades que o carro antigo possui e que ainda não adotamos no moderno”, afirmou Ford, referindo-se ao histórico Ford Modelo T, que revolucionou a indústria automobilística. “Conservando todas as perfeições do tipo primitivo, é mais simples do que ele”, explica Ford, acrescentando que “é preferível aperfeiçoar uma boa ideia do que andar à cata de outras”, numa atitude que confronta o pensamento atual vigente entre empreendedores como ele.
Em que pese se afirmar como homem inovador, professando a ideia hieraclitiana de que a vida é uma constante mudança, um eterno fluir, e que quem estaciona no tempo, na verdade, regride, Henry Ford acabou se tornando quase um “reacionário” diante de sua insistência em cultivar os princípios originais de sua indústria, que se alicerçava numa divisão do trabalho racional e no controle de toda a cadeia produtiva. Com seu senso extremo de praticidade e utilidade, Ford optou por lançar seus carros em cor única, o preto, reduzindo custos de produção e podendo, com isso, oferecer um veículo mais barato, que era comprado por seus próprios funcionários, já que eles também tiveram aumentos substanciais, muito acima do mercado. Ford também se preocupava com o pós-venda, conceito que praticamente inexistia nos primórdios da indústria automobilística, e condenava os seus concorrentes, muitos dos quais, ao contrário dele, não se preocupavam com oficinas mecânicas e postos de combustível.
O fim do capitalismo estável
O historiador Greg Grandin, professor associado da Universidade de Nova York, autor de “Fordlândia: Ascensão e Queda da Cidade Esquecida de Henry Ford na Selva” (Editora Rocco, 2010), mostra que a decisão de Ford de construir uma cidade no meio da Amazônia, mais do que um empreendimento comercial para plantar os seringais necessários à sua indústria, era uma missão civilizatória, pois ele tinha a sensação de que “algo saíra errado” com a América. Escreve Grandin: “As frustrações de Ford com a política e a cultura de seu país eram muitas: guerra, sindicato, Wall Street, monopólios de energia, judeus, danças modernas, leite de vaca, a família Roosevelt, cigarros, álcool e intervenção do governo. Contudo, por baixo de todos esses aborrecimentos havia o fato de que a força do capitalismo industrial, que ele havia ajudado a liberar, estava solapando o mundo que esperava restaurar”.
O mundo capitalista do industrial Henry Ford – em essência também um trabalhador – já não existe mais. Assim como as utópicas Fordlândia e Belterra que ele construiu na Amazônia foram devoradas pela selva, delas não restando senão ruínas, o capitalismo dos grandes parques industriais, congregando milhares de empregados e oferecendo segurança às suas famílias, deu lugar ao flexível capitalismo da terceirização, que levou a própria esquerda a falar no fim da centralidade do trabalho na vida moderna. O romance autobiográfico “Patrimônio”, do escritor norte-americano Philip Roth, ilustra essa antiga centralidade do trabalho encarnada na figura de seu pai, Herman Roth. Nessa narrativa, Philip Roth reitera as acusações de antissemitismo que havia feito num artigo na “New York Times Book Review” contra a companhia de seguros onde seu pai trabalhou a vida inteira, alegando que Herman Roth não teve maiores promoções por ser judeu. A meu ver, uma acusação totalmente injusta, pois, como se vê no próprio relato do romancista, seu pai ocupou cargos intermediários de chefia, chegando a comandar cerca de 50 empregados, e foi homenageado várias vezes pela empresa por seus serviços prestados.
O pai de Philip Roth criou os filhos trabalhando durante anos numa só empresa, a exemplo de milhões de outros pais de família que, na Europa e nos Estados Unidos, beneficiaram-se desse mundo estável do capitalismo industrial, em que um empregado tinha uma carreira pela frente e podia planejar a vida, melhorando aos poucos a sua situação financeira, que ia se traduzindo em bens duráveis, como moradia, veículo, seguro, educação para os filhos etc. Hoje, vive-se a era do capitalismo flexível, denunciado pela esquerda, em que o trabalhador já não pode contar com uma carreira estável, capaz de lhe garantir o tempo necessário para melhorar paulatinamente de vida, como ocorria no passado. “Tempo é o único recurso que os que estão no fundo da sociedade têm de graça”, afirma o sociólogo norte-americano Richard Sennett no livro “A Corrosão do Caráter” (Editora Record, 1999), referindo-se ao mundo estável que os trabalhadores desfrutavam, permitindo-lhes planejar a vida e melhorá-la aos poucos.
Nessa obra, em que analisa os reflexos do “capitalismo flexível” na vida pessoal dos trabalhadores, Richard Sennet descreve os choques entre a “vida de curto prazo” do trabalho no moderno capitalismo – constituído de “projetos” temporários e não de “carreiras” estáveis – e a “vida de longo prazo” que as relações humanas no seio da família continuam a exigir dos pais em relação a seus filhos. “Esse conflito entre família e trabalho impõe algumas questões sobre a própria experiência adulta. Como se podem buscar objetivos de longo prazo numa sociedade de curto prazo? Como se podem manter relações sociais duráveis? Como pode um ser humano desenvolver uma narrativa de identidade e história de vida numa sociedade composta de episódios e fragmentos?”, questiona Richard Sennet, acrescentando que as condições da nova economia alimentam no trabalhador a sensação de que está à deriva no tempo. Sennet afirma que esse capitalismo de curto prazo “corrói o caráter” do trabalhador, “sobretudo aquelas qualidades de caráter que ligam os seres humanos uns aos outros e dão a cada um deles um senso de identidade sustentável”.
A danosa “moral flexível” da esquerda
Mas, será que é só o “capitalismo flexível” que deve ser responsabilizado pela crise moral da sociedade moderna? A rigor, as grandes massas trabalhadoras de baixa qualificação nunca tiveram estabilidade no emprego e viviam em condições precárias, ao menos em países subdesenvolvidos como o Brasil. A construção civil, por exemplo, que ergueu cidades planejadas como Goiânia e Brasília no período áureo da urbanização brasileira, sempre se caracterizou por essa forma de “capitalismo flexível”, oferecendo a seus trabalhadores “projetos” e não “carreiras”. Um fugitivo da fome nordestina que trabalhasse como servente de pedreiro em Goiânia nas décadas de 50 e 60 e se aposentasse nessa condição, depois de um período “encostado” por invalidez no antigo INPS, preencheria, tranquilamente, duas carteiras de trabalho, pois o emprego na construção civil durava apenas o tempo da obra, coisa de três meses, um semestre, no máximo um ano, lançando o operário novamente na incerteza da procura de um novo serviço, o que obrigava sua mulher a também trabalhar fora, como doméstica, não por emancipação, mas por sobrevivência.
Mas aquele operário se orgulhava dos calos nas mãos e da carteira de trabalho cheia, que levava no bolso como documento de identidade, numa época em que praticamente não existia RG nem CPF. Era seu passaporte de pobre honesto, motivo de orgulho diante dos filhos, em que pese jamais ter tido o amparo social que as famílias pobres têm hoje, como bolsa-família, vale-transporte, seguro-desemprego etc., sem contar a falta de energia elétrica, de água encanada, de fogão a gás e das ruas empoeiradas ou lamacentas dos bairros operários, sem transporte coletivo, de onde saíam esses homens e mulheres calejados, que andavam quilômetros a pé, todos os dias, para trabalhar nas obras e casas das regiões centrais. Naquele tempo, quando uma família pobre passava fome, o que era muito frequente, era socorrida por parentes e vizinhos. Não havia esse Estado onipresente de hoje, que leva educação e saúde às favelas, sim, ao contrário do que diz a esquerda, alegando que nelas só entra a polícia.
O homem que trabalha arduamente, já dizia Henry Ford, deve ter a tranquilidade de sua poltrona no seio da família, algo cada vez mais difícil num mundo em que a esquerda, elegendo as minorias em lugar dos proletários, trocou a revolução econômica pela subversão moral e, através de passeatas gays, marchas das vadias e marchas da maconha, coloca o desejo acima do dever, transformando o próprio corpo dos jovens num instrumento da revolução, o que gera profundos e incontornáveis conflitos de gerações. E esses conflitos são muito mais danosos para os filhos das famílias pobres, que não dispõem das mesmas estruturas de proteção familiar dos jovens ricos.
Um Cazuza, por exemplo, considerando a vida sem limites que levava, corria o risco de virar presidiário antes de se tornar um roqueiro, caso fosse morador de favela. Não por questão de preconceito, mas de contingência. Ao contrário do rico, que não precisa trabalhar para ter dinheiro, um pobre viciado em drogas pesadas acaba roubando para sustentar o vício. É questão de tempo, pois a droga pesada inviabiliza o trabalho humilde, com cartão de ponto, calcado no dever e não no desejo. Um roqueiro até pode fazer show com cocaína na veia, mas um operário não pode dirigir um ônibus ou governar uma máquina na mesma condição.
Por isso, ainda que a instabilidade gerada pelo “capitalismo flexível” possa ser um fator de desagregação familiar, dificultando o compartilhamento de um projeto de vida que transcenda gerações, só isso não explica a derrocada ética da sociedade contemporânea, que praticamente inverteu todos os seus valores e naufraga numa espécie de niilismo de massas, em que o pobre já não pode se orgulhar de sua honestidade, pois o novo clero deste mundo secular – a intelectualidade acadêmica – enxerga na transgressão das leis e na subversão moral uma nova forma de luta revolucionária e, através das escolas, destrói o que resta da família, criando conflitos artificiais entre pais e filhos, o que promove uma instabilidade sem limites, tornando ainda mais vulneráveis justamente os pobres, que são os que mais precisam da ordem social, pois são eles os primeiros a tombar num ambiente anárquico, como o que se vê hoje nas periferias, onde se queimam ônibus sob qualquer pretexto. São os efeitos do hegemônico relativismo moral da esquerda – mais danoso do que o próprio “capitalismo flexível” que ela tanto condena.
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