terça-feira, 27 de outubro de 2015

Spotniks
Acabei de sair do Enem.
E foi uma das provas mais bizarras que já fiz 
na minha vida.
Felipe Hermes
Há alguns anos tenho  sido, como qualquer  universitário, um mero espectador
quando o assunto são as provas do Enem. Acompanhando de longe e
participando da recepção dos alunos que entram no meu curso todos
os semestres, não é difícil reparar o impacto da massificação provocada
pelo exame, que substituiu vestibulares em diversas universidades
por uma única prova nacional.

Neste ano, porém, minha relação com a prova mudou. Por querer manter
aberta a opção de me transferir de universidade, decidi me
inscrever no exame, mesmo faltando  meros 2 semestres para me graduar.

Como em todos os anos anteriores, minha mente apenas associava a prova a vídeos engraçados sobre adolescentes que perdem a hora, ou dois dias inteiros de memes e repercussões no twitter, além de algumas reclamações perdidas sobre o teor ideológico do exame, as quais nunca parei para dar atenção.

Algumas curiosidades, no entanto, não pude ignorar. Um dos estudantes me alertou,  e aos demais na roda de conversa, que provas de filosofia geralmente são “fáceis”, e que “toda vez que lermos o termo luta de classes, devemos marcar
a opção Karl Marx”. 
O jovem, que é estudante de física no primeiro semestre,
pareceu de uma sinceridade avassaladora – o que certamente revela mais sobre seus professores do que sobre ele mesmo. 

Logo na primeira questão me deparo com um trecho citando o artigo “Segundo sexo” de Simone de Beauvoir, que dizia.
“Ninguém nasce mulher: torna-se mulher.
Nenhum destino biológico, psíquico, econômico define a forma que a fêmea humana assume no seio da sociedade; é o conjunto da civilização que elabora esse produto intermediário entre o macho
e o castrado que qualificam de feminino. 
Somente a mediação de outrem pode constituir um indivíduo como um Outro. Enquanto existe para si, a criança não pode apreender-se como sexualmente diferenciada…”

Dentre as diversas reportagens de jornais sobre assuntos
de relevância duvidosa como as técnicas de gotejamento na lavoura,
o teor ideológico insistia em permanecer. Críticas ao agronegócio,
aos alimentos industrializados e as inúmeras referências às mudanças climáticas foram constantes. 

Provavelmente o ponto auge da prova tenha sido o momento de
definir a ideia central das obras de Paulo Freire e um texto do
Movimento Sem-Terra. Graças aos nomes a cada dia mais
estranhos como se qualificam as disciplinas clássicas de História,
Geografia, Filosofia e Língua Portuguesa, que hoje se encontram
todas emboladas em “ciências humanas e suas tecnologias”,
confesso que demorei a perceber que havia de fato uma separação
entre cada disciplina e não apenas uma prova única de filosofia
segundo o MEC. Não houve sequer uma citação à crise econômica
ou política pela qual passa o país. Quem lê a prova sai com a
impressão de que a crise de 2008 segue um assunto mais
relevante para a maioria dos estudantes do que a
realidade atual do país.

 Ao voltar para a faculdade, segunda-feira, provavelmente devo
apenas me lembrar que minha dignidade ficou perdida naquela sala,
junto ao cartão resposta, onde em certo momento fui obrigado a
marcar que “o desemprego é uma consequência prática da globalização”.

No cômputo geral, ainda estou em dúvida se passo a respeitar
mais os calouros de Economia por terem resistido a um ano de
massificação de ideias capengas, ou se a lição do dia é que “felizmente”
(com todas as aspas do mundo) nossas crianças mal aprendem
português e matemática. De fato, se fosse para elas aprenderem 
o que cobra o Enem, o melhor caminho ainda é ser ignorante. 

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