segunda-feira, 24 de junho de 2013

Caos e estratégia (I)

ARTIGOS  - MOVIMENTO REVOLUCIONÁRIO

Tomando como ponto de partida o fato de que “o movimento” teve como seus criadores e mentores o Foro de São Paulo e a elite globalista condensada simbolicamente na pessoa do sr. George Soros, o seu objetivo geral já foi declarado muito antes de que o movimento eclodisse.


Nossos liberais e conservadores lêem Ludwig von Mises e Friedrich von Hayek e, vendo que eles tratam o marxismo como uma pseudo-ciência econômica, concluem alegremente que ele não vale nada, não merece maior atenção. Acontece que o marxismo enquanto ciência e técnica da ação revolucionária não depende em nada da “base econômica” que nominalmente o sustenta. Essa ciência e essa técnica são de uma exatidão assustadora e não podem ser compreendidas só com a leitura dos “pais fundadores” do movimento ou com a da sua crítica liberal: requer o acompanhamento de toda uma evolução do pensamento estratégico marxista, que começa com Marx e se prolonga até Saul Alinsky e Ernesto Laclau. Este último, invertendo a fórmula clássica das relações entre “infra-estrutura” e “super-estrutura”, propõe abertamente a tese de que a propaganda revolucionária cria livremente a classe da qual em seguida se denominará representante. Maior independência de toda “base econômica” não se poderia conceber. Aqueles que imaginam ter dado cabo do marxismo tão logo refutaram seus princípios econômicos se acreditam muito realistas, porque eles próprios são crentes devotos da “base econômica” do acontecer político, a qual os próprios marxistas já superaram há muito tempo. O marxismo deve ser estudado, em primeiro lugar, como uma “cultura”, no sentido antropológico do termo. Remeto os interessados a três artigos em que resumo o que penso a respeito (v.http://www.olavodecarvalho.org/semana/031218jt.htm, http://www.olavodecarvalho.org/semana/040101jt.htm ehttp://www.olavodecarvalho.org/semana/040108jt.htm). Em segundo lugar, deve ser estudado como ciência e técnica da ação revolucionária, da intervenção ativa da elite revolucionária na sociedade e na história. Essa ciência é tão veraz, e a técnica que nela se arraiga é tão eficiente, que delas resulta este fato, tão fundamental entre todos e tão solenemente ignorado pelos críticos do marxismo: há pelo menos um século e meio o comunismo é o único – repito: o único – movimento político organizado unitariamente em escala mundial e dotado de uma consciência clara da sua continuidade, bem como das suas metamorfoses estratégicas. Todos os seus pretensos adversários e concorrentes são fenômenos locais, inconexos e passageiros, espalhados no tempo e no espaço como grãos de poeira soltos no vento, incapazes não só de fazer face ao rolo compressor do movimento comunista, mas até de enxergá-lo como um todo.
Sem nenhuma presunção de expor aqui o fenômeno no seu conjunto, mas raciocinando antes em função exclusiva dos últimos acontecimentos no Brasil, destaco adiante alguns pontos que, se não forem levados em conta, tornarão inviável qualquer tentativa de compreender os lances mais recentes da história continental e nacional.

O primeiro desses pontos é o seguinte: nenhuma ação comunista tem jamais – repito: jamais – um objetivo único e linear. Todas as decisões do comando estratégico comunista são sempre de natureza dialética e experimental. De um lado, jogam sempre com uma multiplicidade de forças em conflito, não interferindo jamais no quadro antes de ter uma visão bem clara das contradições em jogo e dos múltiplos sentidos em que elas podem ser trabalhadas. Sob esse aspecto, o pensamento marxista não mudou muito desde o começo. Apenas aprimorou formidavelmente a sua visão das contradições, integrando no seu retrato mental da sociedade inúmeros tipos de conflitos novos que ou não existiam no tempo de Marx ou ele não julgou relevantes; por exemplo, o conflito entre os impulsos sexuais e a ordem social, ou entre pais e filhos. De outro lado, a essa visão dialética cada vez mais sutil e aprimorada o marxismo acrescenta o caráter experimental e não dogmático de todas as suas decisões e ações estratégicas. A articulação de dialética e experimentalismo permite que as ações do movimento comunista se beneficiem, por um lado, de uma multiplicidade de direções simultâneas que desnorteiam o adversário, e, por outro, de uma capacidade de agir por avanços e recuos mediante contínuas e não raro velocíssimas mudanças de rumo.

Quem quer que, ao analisar a recente explosão de protestos, concentre sua atenção nas reivindicações nominais – redução das tarifas de transporte público, “mais educação”, “mais saúde” etc. – para discutir sua justiça e viabilidade já prova, só nisso, sua total incompetência para lidar com o assunto. Mas quem quer que, furando essa primeira barreira de aparências, procure encontrar por trás delas um objetivo determinado e único que explique o conjunto, se engana talvez ainda mais desastrosamente.

Se os protestos têm um objetivo político determinado, este só é definido, na mente dos seus planejadores estratégicos maiores, em termos muito gerais e vagos. Gerais e vagos o bastante para admitir, a cada momento, novas e – para o adversário – imprevistas mudanças de rumo.

Tomando como ponto de partida o fato de que “o movimento” teve como seus criadores e mentores o Foro de São Paulo e a elite globalista condensada simbolicamente na pessoa do sr. George Soros, o seu objetivo geral já foi declarado muito antes de que o movimento eclodisse e não requer nenhum esforço especial de interpretação. Trata-se, em resumo, de encerrar a fase “de transição” e partir para a “ruptura” ou destruição ativa de um “sistema” já cambaleante e debilitado pela onipresente “ocupação de espaços”. Os slogansescolhidos para instigar a massa não têm, em si, a mais mínima importância. Podem ser trocados a qualquer momento, conforme o rumo que as coisas vão tomando. A técnica da mutação também não é rígida, mas adapta-se velozmente a uma conjuntura em constante transformação; transformação que o próprio movimento acelera por sua vez. Não se trata, portanto, de alcançar este ou aquele objetivo concreto em particular, mas de operar com um leque de possibilidades em aberto e conservar, na medida do possível, algum controle do conjunto.
Essas possibilidades são exploradas simultaneamente e, conforme uma ou outra se revele mais viável ou mais problemática, será intensificada ou refreada pelo comando do processo. As mais importantes, a meu ver, são as seguintes:

(a) Trocar a própria liderança visível da esquerda, substituindo os agentes da “transição” pelos agentes da “ruptura”, decididos a ações mais drásticas.

(b) Espalhar o caos para justificar medidas de força, aproveitando para, no mesmo ato, testar os “agentes de transição”: se conseguirem controlar repressivamente a situação e aumentar o poder do grupo dominante, sobreviverão; caso contrário, serão trocados.

(c) Incitar à ação pública as forças antagônicas (cristãos, patriotas, conservadores etc.), para mapeá-las e averiguar as possibilidades de controlá-las ou extingui-las.

(d) Caso a evolução do movimento se mostre majoritariamente favorável aos objetivos dos planejadores, fomentá-lo ainda mais para que a própria ação da militância enragée adquira autonomia e conquiste autoridade por si própria, transmutando-se em nova estrutura de governo.

Esta possibilidade, a mais ostensivamente “revolucionária”,.parece já ter sido excluída, na medida em que as forças antagônicas, malgrado sua total desorganização e ausência de comando, se mesclaram ao movimento, ocuparam as praças públicas e acabaram, em certos casos, por acuar e sobrepujar a militância esquerdista.

O próprio comando da esquerda militante ordenou que as manifestações cessassem, o que imediatamente deixa o campo livre para as massas antagônicas e favorece, ipso facto, a adoção da via repressiva para estrangular a ameaça de um “golpe teocrático e fascista”. Se esse estrangulamento tomará a forma de uma repressão policial violenta ou de um simples incremento do aparato de investigação e controle social, é cedo para dizer.

O detalhe mais importante, aí, é que as forças antagônicas se constituem exclusivamente de massas amorfas e desorganizadas, sem o mais mínimo comando estratégico e até sem aquelas figuras de heróis improvisados que um erro terminológico denomina “líderes”, quando o certo seria chamá-los apenas de “símbolos aglutinadores”. Essa massa é numericamente superior, seja à militância organizada do Foro de São Paulo, seja às tropas de arruaceiros subsidiadas pelo sr. George Soros. Sua presença nas ruas, bem como a vaia multitudinária que despejou sobre a presidenta Dilma Rousseff, são, no sentido mais estrito do termo, explosões espontâneas e anárquicas no mais alto grau, contrastando, nisso, com a ação bem planejada dos militantes do outro lado, que ocupam o espaço público armadas de instruções precisas, de slogans bem ensaiados (em Brasília, viu-se até o texto de uma convocatória inteira recitado em côro pela multidão). Desse modo, o que se viu nas ruas não foi uma competição entre forças de um mesmo gênero – duas militâncias, duas ideologias, duas forças políticas –, mas entre dois tipos de multidão radicalmente heterogêneos: a massa e a militância, a revolta confusa e a ação premeditada.

Quem não levar em conta esses fatores não entenderá absolutamente nada do que está acontecendo e estará privado até da mera possibilidade teórica de uma ação conseqüente.


 ***
O que acabo de dizer pode levar o leitor surpreso a concluir que no meu entender, ou mesmo na realidade das coisas, os mentores do movimento comunista são gênios fora do comum, capazes de pensar em todas as alternativas ao mesmo tempo e de manejar todas as peças do tabuleiro.

Decerto não é bem assim. Comparado com a vastidão do seu alcance, o movimento comunista teve um número relativamente pequeno de gênios estratégicos, a começar por Lênin e Stálin, e um número um pouco maior mas nada notável de talentos estratégicos secundários, como Saul Alinsky, Ernesto Laclau ou a dupla Cloward & Piven. Mas algumas regras explícitas e tácitas que esses e outros seguiram acabaram por se incorporar à “cultura” comunista, isto é, a um conjunto de hábitos reflexos de pensamento compartilhados por toda a militância, que os assimila sem grande exame crítico, às vezes até num nível semiconsciente e pré-verbal. Isso quer dizer que essas regras transparecerão nebulosamente na conduta de líderes e militantes como as regras da gramática transparecem, deformadas mas não abolidas, na fala de quem nunca estudou gramática.

Não é preciso dizer que, na passagem dos princípios estratégicos explícitos e criticamente elaborados às regras semiconscientes automatizadas, o que era tirocínio estratégico se rebaixa ao estatuto de cacoetes mentais e de uma espécie de estupidez astuta; a complexidade do raciocínio dialético aparece agora como pensamento dúplice e escorregadio, uma espécie de incompreensão maliciosa que tudo deforma, mas deforma num sentido coerente com os propósitos gerais do movimento comunista e benéfico aos interesses do Partido.

Quem estudou o livro do psiquiatra polonês Andrew Lobaczewski, Political Ponerology, reconhecerá aí a queda de nível desde uma liderança original psicopática a uma classe de epígonos histéricos. A psicopatia é compatível com elevado grau de inteligência e aguda consciência da situação real. O epigonato histérico copia a conduta psicopática sem compreendê-la muito bem e, por isso, não diferencia claramente o diagnóstico objetivo da situação e o discurso de auto-identidade partidária. Dito de outro modo: não percebe muito bem quando está descrevendo uma situação objetiva e quando a está deformando para reforçar o sentimento de unidade da militância, fomentar o ódio ao inimigo ou persuadir a militância a seguir determinada linha de ação. O psicopata, quando mente, sabe que mente. No histérico, a mentira conveniente já se interiorizou ao ponto de não poder ser discernida como tal. O resultado é que uma visão totalmente falsa da situação pode, paradoxalmente, produzir uma ação relativamente eficiente, na medida em que reflete ainda, de longe e obscuramente, a visão estratégica originária. É como se disséssemos que o epígono ou militante histérico é louco, mas não rasga dinheiro: tem uma visão deformada da realidade, mas deformada num sentido que, por força dos automatismos acumulados na cultura comunista e da sua raiz longínqua numa visão estratégica consciente, ainda favorece a ação partidária.

Um exemplo claríssimo desse fenômeno é o recente pronunciamento do sr. Valter Pomar, reproduzido abaixo como Apêndice 2.

Ele começa assim: “Quem militou ou estudou os acontecimentos anteriores ao golpe de 1964 sabe muito bem que a direita é capaz de combinar todas as formas de luta.”

Historicamente isso é falso. A direita brasileira nunca teve, por exemplo, um partido de massas ou uma militância adestrada e organizada. Muito menos teve uma rede mundial de partidos aliados, uma “internacional”. Nem teve uma rede organizada de editoras de livros como o Partido Comunista sempre teve. E, durante todo o tempo de ocupação esquerdista do governo, nunca teve à sua disposição centenas de jornais “nanicos” como a esquerda teve durante o regime militar. Muito menos uma militância estudantil significativa. Muitas são as “formas de luta” que lhe faltaram e faltam.

Pomar não parece ter a mínima consciência disso. No entanto, tomar a falsidade como um fato ajuda a fortalecer a unidade da militância esquerdista pelo temor a um inimigo comum evocado de um passado quase mítico.

Pomar não está mentindo intencionalmente. Está mesclando e confundindo os dois níveis de discurso – a descrição da realidade e o apelo à unidade do grupo ouvinte --, como é próprio dos epígonos histéricos e da “estupidez astuta” a que me referi, quase que uma “deficiência eficiente”, expressão paradoxal que corresponde à natureza paradoxal do fenômeno mesmo.


[Continua]

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