segunda-feira, 30 de março de 2015

Estatal não é público

 

size_810_16_9_protesto-petrobras.jpgSe usamos uma só palavra para nomear duas coisas diferentes que às vezes aparecem juntas, essas duas coisas acabam se tornando uma só no imaginário popular. 
É o caso do termo "público".
Público opõe-se a privado. Só que há dois tipos de "privado": aquilo que é do uso exclusivo de poucos, e aquilo que é propriedade privada.
E há dois tipos de "público": aquilo que muitos usam livremente, e aquilo que pertence ao estado. Sob um mesmo termo, "do estado" e "para todos" viram sinônimos. Mas o estado não é, nem nunca será, para todos.

Essa confusão serve muito bem aos interesses do próprio estado, que se aproveita da aura positiva que o termo "público" confere. Ele, de alguma maneira, é de todos, por todos, para todos.  Representa a vontade geral, tem um pouquinho de cada cidadão, é uma força ordenadora que paira sobre a sociedade — diferente do setor privado, onde impera a ganância, o lucro (esse pecado capital) e o interesse... privado.

Muita gente nem percebe que "estado" e "sociedade" não são a mesma coisa.
Ao dizermos que o estado é público repetimos mantras espirituais de um passado em que se acreditava que o estado tinha algo de divino, numa verdadeira mística do poder. Tirou-se o Deus transcendente da jogada e colocou-se o deus-povo em seu lugar, como se houvesse um povo além e acima dos indivíduos que o compõem.

Hoje em dia, nosso estado é laico, mas apenas com relação às religiões que competem com a sua. Quanto a si mesmo, não há ficção espiritual, mentira piedosa ou hagiografia de que ele não faça uso para perpetuar seu poder onde ele mais importa: nas mentes dos fieis/súditos/cidadãos/contribuintes. Uma dessas santas artimanhas é justamente a ilusão de que se trata de um "setor público", representante e servidor do povo.

Algumas das posses do estado são, de fato, públicas. Ele tem o monopólio quase absoluto, por exemplo, do tipo mais básico de espaço público: a rua. Mesmo as ruas, contudo, nem sempre são públicas: em São Paulo, muitas vilas têm portões que impedem a entrada de não moradores. Estradas estatais cobram pedágio. Por outro lado, praças, parques, museus e bibliotecas, que também são espaços públicos, nem sempre são do estado. E ainda outros espaços públicos como bares, restaurantes e shoppings são quase sempre propriedades privadas.
Muito do que o estado tem ou faz, ademais, é exclusivo, é para poucos. Poucos podem usar a frota de carros oficiais ou cursar o Instituto Rio Branco ou mesmo receber um diploma da USP. São do estado, mas impõem severas restrições ao acesso.

Pensemos no ensino estatal; ele é "gratuito". Mas há escolas privadas que também oferecem vagas gratuitas; e outras, filantrópicas, que atendem apenas gratuitamente; e nem por isso as chamamos de "públicas". Ao mesmo tempo, instituições de ensino estatal podem cobrar, como fazem as universidades estatais nos EUA e na Inglaterra. Ser chamado de "público" não tem nada a ver com a real abertura, gratuidade ou universalidade; é apenas um termo que se aplica ao que vem do estado. E um termo nada neutro.

O estado, por ser o "setor público", goza de uma prerrogativa de benevolência ou generosidade. No entanto, a ideia de que os bens e serviços do estado "servem a todos", ao interesse comum ou ao bem público — em oposição a empresas que buscam o bem privado — é uma fórmula retórica vazia. Por acaso empresas que produzem e distribuem comida não servem ao interesse público? E as que produzem e vendem serviços de cultura e entretenimento? Tudo que tem uma demanda é um interesse público.

Empresas como Google e Facebook servem — gratuitamente — a muito mais pessoas do que o estado brasileiro.  Qual o sentido de dizer que os interesses deste são "públicos" e os delas "privados"?
Outra faceta do mito estatal diz que o estado é público porque é seu, meu e de todos nós; ou ao menos que ele representa o coletivo. Isso também não é verdade. O estado é uma organização entre outras, e ele não é mais "nosso" do que qualquer empresa. O mecanismo do voto, nosso meio de agir sobre ele, é mais tênue e ineficaz do que o poder do consumidor sobre qualquer empresa ao comprar e deixar de comprar (poder do qual o estado se blinda por meio dos impostos e da emissão de dinheiro).

Ademais, o poder dos políticos eleitos é limitado, pois eles constituem uma fina camada do estado. O grosso dele é composto de funcionários cuja atividade independe do voto popular e sem o apoio dos quais nenhum político pode governar. Já no famigerado setor privado, ao menos no caso das empresas negociadas em bolsa (que também são chamadas, à sua maneira, de públicas), aí sim você pode se tornar dono de uma parte delas; e pode inclusive vendê-la depois.
Por acaso temos direito de vender a parcela do estado que supostamente nos pertence? Não, e por quê? Dica: ele não é nosso.

O estado não é mais público do que tantas outras instituições que são propriedade privada. Quem de fato o controla são poucos e não tem como ser diferente. Muitos de seus serviços e benefícios são direcionados a poucos (pensemos agora no BNDES ou nas aposentadorias dos servidores públicos, esses heróis da pátria). Ele também não está mais voltado ao serviço do público do que outras organizações. Seus agentes, por fim, não são mais virtuosos ou altruístas do qualquer outra pessoa; respondem aos mesmos exatos incentivos que todos os pobres mortais.

Assim, ao falar das coisas do estado, evite o adjetivo "público"; ele engana. Utilize "estatal" em seu lugar. Funcionário estatal, escola estatal, rua estatal, interesse estatal, setor estatal. Reserve o "público" para praças e bares, que podem ser estatais ou não. A perpetuação da mística do poder do estado só nos afasta da realidade crua: o estado não é você, o que é dele não é seu, não há uma vontade coletiva por trás dele e ele não conhece e nem serve a seus interesses melhor do que qualquer outra organização.

Na verdade, o estado — esse ente de razão — nem existe; são só pessoas como você e eu, que não sabem mais e não são melhores do que você e eu, mas cuja vontade recebe — de nossa parte — a permissão tácita para se impor à força. No dia em que essa verdade realmente penetrar nossa consciência, ele estará em maus lençóis.

Joel Pinheiro da Fonseca é mestre em filosofia e escreve no site spotniks.com." Siga-o no Twitter: @JoelPinheiro85 
Matéria extraída do website do Instituto Ludwig von Mises Brasil

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