Por José Maria e Silva, jornalista e sociólogo, dono do blog Palavra Acesa
Nota de LIBERTATUM: Embora não concorde com o autor do artigo que segue abaixo com relação ao voto distrital e alguns outros poucos itens, considero suas reflexões muito oportunas e realistas, especialmente para o momento em que está em voga a proposta do voto distrital. Após o texto seguem meus comentários.
O palhaço Tiririca — nome artístico do humorista cearense Francisco Everardo Oliveira Silva — foi o grande fenômeno das eleições de 2010. Eleito deputado federal por São Paulo com 1.353.820 votos, ele obteve 6,35% dos votos válidos, quase três vezes mais do que o escritor Gabriel Chalita, que veio em seguida, com 560.022 votos. Tiririca tornou-se o segundo deputado federal mais votado da história do País, perdendo apenas para Enéas Carneiro, que, em 2002, foi eleito com 1.573.642 votos, o que representou, na época, 8,01% do eleitorado. Para efeito de comparação, nem Paulo Maluf (5,8% dos votos válidos em 1982) e Luiz Inácio Lula da Silva (4,22% em 1986), que estão entre os dez deputados federais mais votados da história, suplantaram a marca percentual de Tiririca e Enéas.
Mesmo agora que já superou judicialmente a suspeita de ser analfabeto (o que lhe rendera um processo do Ministério Público), Tiririca continua sendo tratado pelos analistas políticos sob duas perspectivas: ora é visto como sintoma do despreparo do eleitor; ora é apontado como catalizador do voto de protesto. Todavia, longe de ser filho da ignorância ou da indignação, Tiririca é, sobretudo, produto de marketing. Ele não foi eleito porque o povo brasileiro é ignorante ou porque queria dar uma lição nos políticos e, sim, porque a legislação eleitoral é surrealista: ao mesmo tempo em que submete o eleitor a uma ditadura de campo de concentração, ela permite que os partidos chafurdem numa promiscuidade de fazer inveja a prostíbulo.
Tiririca foi uma bem-sucedida jogada de marketing do Partido da República (PR), que planejou a candidatura do artista antes mesmo que o próprio a aceitasse. Na prática, a eleição do palhaço foi uma antecipação disfarçada do voto em lista, que está em discussão no Congresso Nacional juntamente com o financiamento público de campanha. Nesse sistema, cada eleitor votaria duas vezes: uma vez no candidato de sua escolha pessoal e uma segunda vez na lista fechada de candidatos do partido de sua preferência. É exatamente o contrário do voto distrital, em que a definição dos eleitos é pulverizada por regiões, segundo a votação individual do candidato em cada distrito.
Ocorre que, hoje, antes mesmo de se aprovar ou não o polêmico voto em lista (que divide o Congresso Nacional), os partidos já se valem de uma espécie de voto em lista disfarçado. Foi o que ocorreu com o PR no caso de Tiririca. A exemplo de outras siglas partidárias, o PR usou o palhaço para angariar votos para os demais candidatos da coligação. Com isso, Tiririca ajudou a eleger Otoniel Lima (PRB), Protógenes Queiroz (PC do B) e Vanderlei Siraque (PT), cujos partidos faziam parte da coligação, assim como o PT do B. Ou seja, foi como se cada eleitor que votou em Tiririca tivesse votado duas vezes: no próprio artista e nas candidaturas que o PR, ardilosamente, embutiu sob a sua própria.
Eleição por dinheiro
Sem uma pesquisa de campo qualitativa, não há como aferir com precisão o perfil do voto em Tiririca. Mas é fácil perceber que não se trata de um protesto espontâneo do eleitor, como parece à primeira vista. Se a legislação eleitoral permitisse candidaturas avulsas e Tiririca se apresentasse como candidato de si mesmo, seu talento como humorista no máximo seria suficiente para elegê-lo vereador, como ocorreu com o rinoceronte Cacareco nas eleições municipais de 1959, em São Paulo. A eleição de Tiririca para a Câmara dos Deputados só foi possível mediante toda a estrutura de marketing que o PR colocou à sua disposição. Segundo reportagem da revista “Época”, de 24 de setembro de 2010, Tiririca protagonizou uma “campanha endinheirada”, contando com vans, carro de som, micro-ônibus e mais de 30 cabos eleitorais em todas as suas andanças.
Também é óbvio que as falas de Tiririca no horário gratuito, que tanto sucesso fizeram, não foram criadas por ele, mas produzidas por humoristas profissionais do programa “Café com Bobagem” — também pagos pelo PR. Consta, inclusive, que quando foi gravar o seu primeiro programa eleitoral, o humilde Francisco Everardo, levando seu novo papel a sério, chegou ao estúdio de terno. Valdemar da Costa Neto, o poderoso chefão do PR, teria dito a ele para tirar paletó e gravata e vestir a roupa do palhaço Tiririca. E esse é justamente o aspecto mais grave do caso. Como é que no país do voto obrigatório, em que o eleitor vota debaixo de vara, o partido político pode ser absolutamente livre para avacalhar o sistema do qual faz parte, ainda por cima torrando dinheiro público nessa avacalhação?
Em 2010, o PR foi o nono partido mais aquinhoado pelo Fundo Partidário, recebendo R$ 7,893 milhões. Grande parte desse dinheiro foi revertido diretamente para a campanha de Tiririca. É que o palhaço, além de ter sido um bem-sucedido investimento eleitoral do PR, também significa rendimento financeiro garantido para o partido. De acordo com a legislação que rege a distribuição do Fundo Partidário, quanto mais votos o partido tiver na eleição para a Câmara dos Deputados, mais dinheiro ele recebe. Como Tiririca obteve quase 1,5 milhão de votos, ele vai aumentar expressivamente a fatia que cabe ao PR na divisão do Fundo Partidário. Estima-se que, ao longo de seus quatro anos de mandato, Tiririca, sozinho, vai representar para o PR mais de R$ 11 milhões abocanhados dos cofres públicos.
Abusando do eleitor
É por isso que um fenômeno como Tiririca desperta em mim uma vontade de desobediência civil. Não pelo palhaço em si, de quem eu poderia até ser eleitor, dependendo de quem concorresse com ele, mas devido ao caráter cartorial da democracia brasileira, que transparece claramente na conduta inescrupulosa do PR — com a cumplicidade da Justiça Eleitoral. É simplesmente revoltante ser obrigado a votar debaixo de vara, ainda por cima tendo que aguentar as campanhas imbecis do TSE pelo voto consciente, quando o próprio partido político — usando dinheiro público — invade nossas casas para fazer chacota do processo eleitoral. As falas de Tiririca divulgadas no horário eleitoral gratuito do TSE são inadmissíveis sob qualquer ponto de vista.
Infelizmente, os analistas políticos que se debruçaram sobre o fenômeno Tiririca não atentaram para o aspecto mais grave de sua campanha: o absurdo da legislação eleitoral e de sua interpretação pela Justiça. O TSE usa dois pesos e duas medidas: ao mesmo tempo em que cobra decoro máximo do eleitor, chegando ao cúmulo de tentar impedir que ele anule o voto, simplesmente permite que as máfias partidárias façam o que bem entendem, inclusive cuspir no prato em que comem, ridicularizando um sistema político do qual se alimentam feito sanguessugas. Quando um partido político usa dinheiro do Fundo Partidário para fazer chacota do próprio processo eleitoral, como fez o PR, ele está praticamente roubando dinheiro público, pois o está desviando de sua finalidade precípua. Isso é abusar duas vezes do cidadão-eleitor-contribuinte: rindo da cara dele e, ainda, por cima, obrigando-o a pagar pelo escárnio.
Eu sei que nas melhores democracias do mundo, como a norte-americana, praticamente não há limite para a crítica que um candidato pode fazer. Ele pode rasgar a bandeira do país na campanha e fazer chacota de tudo. Mas há uma diferença crucial: o voto é facultativo nesses países e geralmente o candidato que faz isso é um candidato avulso, que nem mesmo integra uma agremiação partidária e faz campanha com dinheiro do próprio bolso. Se Tiririca fosse candidato de si mesmo e só contasse com dinheiro privado em sua campanha, ele teria todo o direito de avacalhar o processo eleitoral, escarnecendo dos políticos, do eleitor e da própria Justiça. Agora, é sem dúvida um completo absurdo que o PR, valendo-se de um palhaço, possa transformar a eleição num circo — não com seu próprio dinheiro, mas usando e abusando do dinheiro público, como se o contribuinte o tivesse autorizado a transformar imposto em capim.
TSE como feitor
A minha revolta é ainda maior — daí a vontade de desobediência civil — quando me vejo obrigado a suportar o horário eleitoral gratuito, que, na verdade, não passa de um horário ditatorial pago, em que o cidadão entra com o lombo curtido por impostos e o TSE entra com o chicote de feitor da lei. A cada eleição, a Justiça Eleitoral faz do horário eleitoral uma espécie de democracia tarja-preta. Qualquer ameaça de debate mais sério entre os candidatos é motivo para que os tribunais intervenham e coloquem uma tarja na tela da TV, obrigando o telespectador a ficar aguardando a continuidade do programa. Por que a Justiça Eleitoral, que só sabe deslumbrar-se com a urna eletrônica, não aproveita para veicular informações úteis para o eleitor nesse tempo em que corta o programa do partido e a imagem fica parada na tela? E se quiser continuar assistindo o programa, o eleitor tem que ficar diante dessa imagem parada, sem nem mesmo saber quanto tempo dura a intervenção.
A Justiça Eleitoral gosta tanto de falar em cidadania, mas é simplesmente desrespeitosa a forma como intervém no horário gratuito. Ela transforma o eleitor no verdadeiro Tiririca, obrigado a servir de bobo da corte em sua própria casa. As propagandas do TSE que pregam o voto consciente tratam o eleitor como se ele fosse aluno de escola especial. Com dramatizações ridículas, que parecem extraídas do besteirol das redes sociais, as campanhas pelo voto consciente do TSE aviltam a inteligência. Todo e qualquer eleitor, mesmo que more nos grotões, sabe o significado do voto. O que ele não dispõe são de informações técnicas ou históricas sobre a democracia brasileira, que poderiam orientá-lo muito mais na hora de escolher seu candidato ou partido.
Hoje, por exemplo, cresce, cada vez mais, a ojeriza da nação ao Congresso Nacional, especialmente ao Senado. O que é extremamente perigoso para a sobrevivência da democracia. O próprio PT — encampando uma antiga tese do ex-prefeito Pedro Wilson — encabeça uma campanha de extinção do Senado. E muitos intelectuais, com argumentos toscos, endossam a campanha petista, talvez porque fugiram das excelentes aulas de “Moral e Civismo” do regime militar e não sabem que o Senado é imprescindível num país federativo como o Brasil. Sem ele, a democracia fica capenga, pois os Estados mais populosos, como São Paulo, seriam verdadeiros ditadores da República. Como as vagas da Câmara dos Deputados são preenchidas de acordo com a população de cada Estado, haveria um grave desequilíbrio em detrimento dos Estados menos populosos se não existisse o Senado, pois ele é quem garante a mesma representação (três senadores) para todos os Estados, independentemente de seu tamanho.
Além de representar os Estados, o Senado Federal tem outras funções exclusivas, não compartilhadas pela Câmara dos Deputados. O artigo 52 da Constituição estabelece que é da competência privativa do Senado processar e julgar as autoridades máximas do País, como o presidente da República e os ministros das cortes superiores de Justiça, bem como aprovar previamente a indicação dos ministros do Supremo e do presidente do Banco Central, entre outros titulares de cargos públicos. Outra função do Senado é a aprovação de operações externas de natureza financeira. Se não fosse assim, os Estados mais populosos, com o peso de suas bancadas na Câmara Federal, poderiam, em tese, prejudicar os Estados menores, ficando com todos os recursos de empréstimos externos, provenientes de órgãos internacionais de fomento, como o Banco Mundial.
Extinção do Senado
Por que o TSE, em vez produzir historietas imbecis sobre voto consciente, não explica ao eleitor o papel de cada uma das Casas do Congresso, inclusive estabelecendo comparativos com outros países? O cidadão não precisa de conselhos — precisa de dados. E os dados mostram que o sistema bicameral é um imperativo em países federativos ou com regiões autônomas, como é o caso do Brasil. Tanto que o legislativo bicameral existe em 77 países, inclusive em grandes democracias como Estados Unidos, França, Alemanha, Inglaterra, Itália e Espanha. Além disso, o Congresso Nacional brasileiro está longe de ter o excesso de parlamentares que comumente se imagina. Basta compará-lo com o Legislativo de outros países. O Congresso Nacional é, proporcionalmente, o oitavo menor Parlamento do mundo entre os 194 países existentes.
Enquanto o Brasil tem 513 deputados e 81 senadores, a Inglaterra — a mais antiga e mais sólida democracia do planeta — tem 650 deputados na Câmara dos Comuns e 733 parlamentares na Casa dos Lordes. O total de 1.383 parlamentares ingleses (mais do que o dobro dos brasileiros) faz com que a Inglaterra tenha um parlamentar para apenas 44 mil habitantes, enquanto o Brasil tem um parlamentar para 328 mil habitantes — uma proporção quase oito vezes menor. Além da Inglaterra, os demais países europeus (com exceção do Vaticano, uma cidade-estado) têm um Parlamento proporcionalmente maior do que o Congresso Nacional brasileiro.
A Itália tem 951 parlamentares (630 deputados e 321 senadores) ou um parlamentar para 63 mil habitantes. A França tem 920 parlamentares (577 deputados e 343 senadores) ou um parlamentar para 68 mil habitantes. A Alemanha, cujo sistema eleitoral é considerado modelo, tem 691 parlamentares — um parlamentar para 118 mil habitantes. Até mesmo o Japão — com sua reconhecida austeridade — tem muito mais parlamentares do que o Brasil. Sua Câmara dos Representantes (correspondente à nossa Câmara) tem 480 membros, enquanto a Câmara dos Conselheiros (correspondente ao Senado), tem 242 integrantes. Ou seja, 722 parlamentares ou um parlamentar para 175 mil japoneses, quase o dobro do Brasil.
Liberdade de voto
A proposta de extinção do Senado é apenas uma das ideias mirabolantes que fazem a cabeça de muitos intelectuais (os políticos costumam ter mais bom senso). A última delas é a adoção do voto distrital, um movimento que conta com o apoio do Centro de Liderança Pública (CLP), presidido pelo jornalista e cientista político Luiz Felipe D’Ávila, que foi o responsável pelas revistas “República” e “Bravo”. O movimento pelo voto distrital lançou um manifesto na internet que já conta com 59.410 assinaturas [até as 6:23 horas desta manhã de domingo, 11], além do apoio de celebridades como Luciano Huck e Marcelo Tas. A revista “Veja” encampou o movimento e, tanto na edição que chega às bancas, quanto na internet, apresenta dez supostas razões para que o País adote o voto distrital.
Eu sou contra o voto distrital e se tivesse de optar entre ele e o voto de lista proposto pelo PT, ficaria com o voto de lista. Todo povo precisa ser protegido de si mesmo e é para isso que existem as instituições. Precisamos fortalecer os partidos políticos e não enfraquecê-los ou pervertê-los ainda mais por meio do voto distrital. O que resta de qualidade no Congresso Nacional é decorrência do voto proporcional. Se adotarmos o voto distrital, abolindo o quociente eleitoral e contabilizando apenas o voto do candidato, sem levar em conta o partido, não tenho dúvida que o Congresso seria transformado numa Casa de Tiriricas e outras celebridades. Que partido ousaria bancar um candidato com ideias, mas ruim de voto, arriscando-se a não eleger ninguém já que só poderia lançar um candidato por distrito?
A rigor, sou contra a reforma política em si, pois qualquer que seja o novo sistema adotado — voto de lista, voto distrital, voto distrital misto, financiamento público de campanha etc. — ele tende a exacerbar os vícios do atual sistema. É como tentar erguer um edifício sobre os alicerces de um barracão. Antes de se pensar em qualquer mudança radical no sistema político, é preciso corrigir as graves distorções da legislação eleitoral vigente. Começando pela verdadeira liberdade de voto. E nem estou falando do voto facultativo (que também defendo) e, sim, da liberdade que deve ser dada ao eleitor para escolher seu candidato sem a presença incômoda, irritante e onipresente da Justiça Eleitoral a conduzi-lo pela mão. No Brasil, o voto não é livre — saímos da ditadura militar e caímos na ditadura do TSE.
Golpe na democracia
A Lei 9.504, de 30 de setembro de 1997, foi um golpe na democracia, ao estabelecer, no seu artigo 2º, que os votos brancos e nulos não mais seriam computados. É esse tipo de legislação que incentiva o voto nos Tiriricas. O eleitor sério, quando anula seu voto, está dando uma opinião consciente e legítima sobre os candidatos e merece ter o seu voto considerado. Se isso não ocorre, ele é tentado a aderir à esculhambação da política como a que foi proposta pelo PR — com a cumplicidade oficial do TSE. Sem contar que o desprezo pelo voto nulo acomoda os políticos. A presidente Dilma Rousseff não poderia se orgulhar muito de seus 55,7 milhões de votos se tivesse que confrontá-los com os mais de 4,6 milhões de votos nulos, 2,4 milhões de votos brancos e uma espantosa abstenção de quase 30 milhões de eleitores.
Mas o aspecto mais grave da atual legislação eleitoral é o engessamento da política que ela promove. Rendendo-se à pressão dos grupos de interesse, o Congresso Nacional estabeleceu na Lei 9.504, em seu artigo 51, inciso IV, que, na propaganda eleitoral gratuita, é “vedada a utilização de gravações externas, montagens ou trucagens, computação gráfica, desenhos animados e efeitos especiais, e a veiculação de mensagens que possam degradar ou ridicularizar candidato, partido ou coligação”. A pretexto de coibir o abuso do poder econômico (resquício da propaganda de cinema de Fernando Collor em 1989), a lei proíbe os candidatos de se mostrarem no meio do povo e também de se ridicularizarem uns aos outros, para gáudio do eleitor. Mas não proíbe um partido de ridicularizar o próprio país, como fez o PR de Tiririca, ao escarnecer das leis, do Congresso e do próprio eleitor.
Na esteira dessa obsessão em reduzir custo de campanha, atacando sintomas e não causas, a lei também acabou com os shows em comícios e com o trabalho dos cabos eleitorais em dia de votação. Essa última medida chega a dificultar o voto do eleitor, já que os cabos eleitorais, muito mais do que pressioná-lo, prestavam-lhe um serviço oferecendo uma profusão de possíveis escolhas para os indecisos. Sem contar que tanto a boca de urna quanto os grandes comícios em forma de shows representavam uma oportunidade de trabalho para muita gente. Uma dupla sertaneja, por exemplo, não ficava com o dinheiro todo para ela: tinha que pagar os demais músicos e toda a equipe de apoio, que envolve até operários.
Irônico é que, quanto mais a lei eleitoral corta o emprego de cantores, artistas, cabos eleitorais e outros trabalhadores, sonegando-lhes um oportuno ganha-pão, mais sobe absurdamente o custo das campanhas. Se nem Dilma Rousseff nem José Serra tiveram que contratar duplas sertanejas milionárias, por que o custo da campanha de cada um deles cresceu em relação às campanhas presidenciais anteriores, ficando próximo de estratosféricos R$ 200 milhões para cada um? Pelo visto, as eleições no Brasil continuam sendo uma indústria milionária, só que essa indústria já não emprega quase ninguém, pois a lei eleitoral acabou fazendo o contrário do que pretendia — em vez de reduzir a influência do poder econômico nas campanhas, ela apenas concentrou esse poder nas mãos de poucos, sonegando aos pobres até as migalhas que lhes sobravam do festim.
Infantilizando o eleitor
Todavia, o que há de mais grave na atuação legislação eleitoral é o cerceamento do debate político. Enquanto nas escolas, o MEC obriga crianças do ensino fundamental a debater sexo, drogas, violência, aborto e casamento gay, nas eleições, o TSE protege os pais dessas mesmas crianças de qualquer referência a esses assuntos no horário eleitoral gratuito. Foi o que se viu na campanha passada, em que a Justiça Eleitoral — extrapolando ditatorialmente os limites da lei — mandou apreender folhetos católicos contra o aborto e, na propaganda eleitoral, procurou impedir o debate desses temas polêmicos. Que país é esse em que o Ministério da Educação perverte as crianças, obrigando-as a chafurdarem nas mazelas do mundo adulto, enquanto a Justiça Eleitoral infantiliza os adultos, poupando o eleitor até do bate-boca entre dois candidatos?
Esse é um dos motivos pelos quais o brasileiro é conservador, mas não existe um partido político de direita que o represente. Se a direita tem algum serviço a prestar ao país é justamente na questão dos costumes. Mas a Justiça Eleitoral entende que, para um candidato discutir aborto, é preciso tirar o eleitor da sala. Na concepção de juízes, promotores e analistas políticos, o debate eleitoral tem de ser propositivo, limitando-se a discutir orçamento e obras. Para os bem-pensantes, o que um candidato pensa sobre aborto, parada gay, pena de morte ou liberação das drogas é assunto privado. Com isso, a esquerda fica desobrigada de explicar no horário eleitoral gratuito seu total apoio ao aborto, a legalização das drogas, à anarquia pedagógica, à permissividade sexual e às regalias para criminosos — verdadeiros vírus sociais que estão destruindo crianças, adolescentes e jovens.
Caso o debate eleitoral volte a ser totalmente livre, cabendo exclusivamente ao eleitor julgar se o candidato está faltando com o decoro ou está mentindo, não tenho dúvida que a democracia brasileira daria um salto de qualidade. Até a corrupção talvez pudesse ser reduzida. Nos Estados menores, onde toda a economia gira em torno do governo e ele consegue controlar a mídia, a liberdade total dos partidos no horário gratuito poderia preencher a lacuna deixada por esse jornalismo regional censurado, servindo de escoadouro para denúncias de corrupção. O TSE precisa entender que, em política, roupa suja se lava em público, caso contrário, o eleitor é quem será enganado. Só que no Brasil, faz-se o contrário: a legislação eleitoral tenta estender suas garras ditatoriais até à internet.
Por isso, antes de se pensar numa reforma política mágica é preciso entender uma verdade lógica — sem candidatos e eleitores livres, não se faz democracia alguma. Mas confesso que, a despeito de ser contra a reforma política e achar que o País precisa apenas de liberdade eleitoral, também sou tentado a propor medidas um pouco mais radicais para o sistema político. Defendo que as eleições proporcionais (para os Legislativos, incluindo o Senado) sejam separadas das eleições majoritárias (para os cargos Executivos), sendo realizadas em anos diferentes. As eleições para prefeito, governador e presidente monopolizam as verbas e os debates, condicionando vereadores, deputados e senadores a serem meros coadjuvantes do Executivo até nas questões que compete apenas ao Legislativo resolver, como a legalização do aborto, a redução da maioridade penal, o casamento gay ou a progressão continuada nas escolas. Por isso, o Brasil vive uma democracia cartorial, onde um Legislativo sem vez deixa o povo sem voz.
(Publicado no Jornal Opção, de Goiânia, em 11 de setembro de 2011)Comentários de LIBERTATUM
Em linhas gerais, considero as reflexões expostas acima muito válidas. No entanto, manifesto a minha discordância (parcial) do autor com relação ao voto distrital. Para melhor compreensão, destaco-o abaixo:
Eu sou contra o voto distrital e se tivesse de optar entre ele e o voto de lista proposto pelo PT, ficaria com o voto de lista. Todo povo precisa ser protegido de si mesmo e é para isso que existem as instituições. Precisamos fortalecer os partidos políticos e não enfraquecê-los ou pervertê-los ainda mais por meio do voto distrital. O que resta de qualidade no Congresso Nacional é decorrência do voto proporcional. Se adotarmos o voto distrital, abolindo o quociente eleitoral e contabilizando apenas o voto do candidato, sem levar em conta o partido, não tenho dúvida que o Congresso seria transformado numa Casa de Tiriricas e outras celebridades. Que partido ousaria bancar um candidato com ideias, mas ruim de voto, arriscando-se a não eleger ninguém já que só poderia lançar um candidato por distrito?
Vejo aqui duas inconsistências:
A primeira está em o autor defender o voto proporcional e até o voto em lista porque entende que isto protege o povo de si mesmo, e que as instituições devem existir para este fim. Bom, em uma democracia, o povo (atomísticamente falando, o indivíduo) é o sujeito de direito. Falar que o cidadão deve ser protegido de si mesmo por meio das instituições pode ser válido, mas não na hora em que ele deve escolher o seu representante. Se ele escolhe o Tiririca, muito bem, mas que pague por isto. A democracia não é uma garantia contra o erro, mas contra a ditadura. Errar e arcar com as consequências faz parte do jogo. Ademais, em todo o restante do texsto, paradoxalmente, o autor reclamou do TSE, que de fato está a tutelar a escolha dos cidadãos por praticar a censura seletiva nas campanahs eleitorais.
A segunda objeção (parcial, e logo adiante explico o porquê) que apresento ao autor encontra-se no fato de ele acreditar que o efeito Tiririca faz com que políticos verdadeiros sejam eleitos no vácuo, enquanto que um sistema de voto distrital só elegeria Tiriricas. Ora, o sistema proporcional viabiliza políticos profissionais, mas isto não significa necessariamente que sejam patriotas, ou que carreguem consigo valores e propostas. Pelo contrário, a esperteza de tais manobras indicam justamente o contrário, isto é, de que eles buscam se desvencilhar da necessidade de se expor ao público. Em um sistema distrital, o eleitor conhecerá quem o representa: há um elo direto e inconfundível entre representante e representados, digno demandas, cobranças e até mesmo um impeachment.
Agora explico porque só o voto distrital não é suficiente, o que faz esta objeção ser parcial: trata-se da altíssima concentração tributária nas mãos da União: isto contribui para esvaziar, pelo menos em parte, o senso de responsabilidade da população, já que tenderá a sentir menos o impacto por escolhas erradas. Todavia, esta mesma pode ser uma nova bandeira de luta pelos movimentos sociais: a regionalização das contribuições sociais e o alargamento da capacidade legislativa dos estados.
Caro Klauber, obrigado pela reprodução do artigo e a discussão de alguns de seus pontos. Eu sei que o quociente eleitoral dos partidos hoje esconde muitos políticos ruins, que não seriam eleitos por seu próprio valor. Mas também sei que o voto distrital -- sem corrigir todas as mazelas que apontei -- vai eleger unica e exclusivamente os piores, inclusive narcotraficantes, em distritos que coincidirem com o seu domínio. O voto distrital, num país como o Brasil, pode ser a pior ditadura -- a ditadura da ralé moral e intelectual, que será eleita através dele, contrariando as esperanças de seus respeitáveis defensores. Pretendo escrever mais detalhadamente sobre isso. Abraços.
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