Postado em 19 de Dezembro, 2014.Autor James Buchanan James M. Buchanan (1919 - 2013) recebeu o Prêmio Nobel de Economia em 1986. Ele foi diretor geral do Center for Study of Public Choice e professor da George Mason University, nos Estados Unidos.

 Restaurando o espírito do liberalismo

Postado em 19 de Dezembro, 2014.
Autor James Buchanan

James M. Buchanan (1919 - 2013) recebeu o Prêmio Nobel de Economia em 1986. Ele foi diretor geral do Center for Study of Public Choice e professor da George Mason University, nos Estados Unidos.

Ignorando a evidência histórica

Há muitos anos, escrevi um artigo no qual afirmo que o liberalismo tinha perdido seu espírito. Perdemos esse espírito por uma falha de nossa parte em compreender e apreciar a superioridade do sistema de valores do ocidente. Quando o Primeiro Ministro italiano Silvio Berlusconi sugeriu durante uma visita à Washington que o sistema de valores ocidental era superior a todas as alternativas existentes, ele foi criticado pela mídia americana, pela academia e pelos políticos. Ignorando as evidências de toda a história humana, passaram a acreditar em suas próprias construções da realidade e se recusam a admitir que um sistema possa ser melhor que qualquer outro. É dessa maneira que o politicamente correto tem corrompido nossas almas. Apenas ao reconhecer que o sistema de valores ocidental é verdadeiramente superior a todas as alternativas conhecidas, nós poderemos restaurar o espírito do liberalismo.

O primeiro passo para essa restauração exige o reconhecimento de que nossas instituições básicas são heranças de uma filosofia pública claramente articulada por nossos ascendentes do século dezoito, notadamente por Adam Smith e o iluminismo escocês, bem como pelos fundadores americanos. Foram eles que refinaram um conjunto de normas, regras, procedimentos e hábitos que hoje consideramos naturais: o estado de direito e sua universal e indiscriminada aplicação; a separação dos poderes; cidadania universal e aberta. Isso tudo significa a garantia de proteção às pessoas, propriedades e contratos, com eleições periódicas, livre participação na disputa por um cargo político e de limites constitucionais ao alcance da ação governamental. Essa é a herança institucional do liberalismo que devemos proteger com zelo. Apesar disso, os estímulos para tal proteção se tornam frágeis quando se erode a percepção pública dos fundamentos de uma sociedade livre.

Quando abandonamos a idéia da indiscriminada e universal aplicação da lei, o estado do “bem-estar coletivo” se transforma em um estado transferidor, com programas que miram segmentos particulares da população. E quando as grandes coalizões divergentes se tornam cada vez mais eficientes, o estado transferidor se transforma em parte de um jogo em que as pessoas acham que tem o direito de exigir que a autoridade política retire a propriedade dos outros e em que os preceitos do liberalismo se enfraquecem ou mesmo desaparecem.

Entre a cruz e a caldeirinha

Essa mudança demonstra uma falha na estrutura de nossas instituições políticas. Os processos para a tomada de decisões coletivas devem operar dentro das regras constitucionais que foram desenvolvidas muito tempo antes de o welfare state moderno passar a demandar uma parcela de nossa capacidade fiscal. Esses processos permitem que decisões tomadas pelos que gastam o orçamento sejam tomadas independentemente das vontades dos contribuintes. A lógica simples da teoria da Escolha Pública explica que sob tais condições os níveis dos gastos do governo serão sempre mais altos que a receita vinda dos tributos impostos pelo poder legislativo sobre os eleitores.

Durante a segunda metade do século XX, essa diferença entre gastos governamentais e receita tributária foi frequentemente ignorada pela população em geral. A preocupante crise fiscal emergiu aos olhos do povo apenas neste novo século. Algumas estimativas sugerem que o déficit líquido que os Estados Unidos enfrentam seja da ordem de 45 trilhões de dólares. Ao mesmo tempo, não desejamos nos tributar ainda mais para pagar por esse endividamento com o qual o governo comprometeu o povo americano.

Nós estamos definitivamente entre a cruz e a caldeirinha. Como nossas instituições políticas responderão, dadas as atitudes públicas atuais? Pode-se esperar que haja uma resistência ampla e politicamente eficiente a qualquer redução nos benefícios prometidos e ao mesmo tempo a qualquer tentativa de aumento de impostos.

Parece claro, na minha visão, que estamos caminhando em direção à introdução de mudanças discriminatórias. O plano do presidente Bush para reformar a previdência social já sugeria o corte de benefícios para os grupos de maior renda e um aumento ou manutenção de benefícios para grupos com renda menor. Em relação aos impostos, o governo terá de aumentar gradualmente a porcentagem de renda recolhida para financiar a previdência social. Dessa forma, a previdência perderá completamente seus aspectos de “seguro” e passará a ser um programa de transferência de renda puro e simples. As falhas estruturais que permitimos emergir em nossa democracia constitucional aprofundarão a erosão da nossa herança liberal em vez de restaurá-la.

Isso levanta uma questão importante: por que, apesar do reconhecimento do fracasso do socialismo, tanto na teoria quanto na prática, as pessoas continuam a exigir programas que compõem o welfare state moderno? Certamente esperávamos que, com a morte do socialismo de comando e controle, as sociedades de todos os lugares se dedicariam ao mercado e às instituições governamentais democráticas, porém não foi o que ocorreu. O socialismo está morto, mas o Leviatã ainda sobrevive.

Deveríamos estar alarmados pelo contínuo aumento da parcela politizada da atividade econômica, motivada pela demanda por pagamentos de assistência social estatal. Eu chamo esse fenômeno de socialismo paternal. Sob o socialismo paternal as pessoas, em geral, reconhecem “a arrogância fatal” que Hayek enfatizou e as falhas deploráveis do socialismo administrativo. Os americanos, em sua maioria, não acreditam que uma organização coletiva seja eficiente, nem buscam controlar a vida dos outros. Pedem programas de bem-estar governamentais por uma razão bem diferente: desejam simplesmente ser dependentes do Estado. As pessoas têm medo da liberdade.

O medo da liberdade

A demanda popular pela provisão coletiva, através de programas de bem-estar social, tem sua origem na coincidência histórica de duas mudanças fundamentais no campo das idéias. No fim do século XIX, o filósofo alemão Friedrich Nietzsche afirmou que Deus estava morto. Nietzsche quis dizer que a fé religiosa em um Ser Supremo, junto com a encarnação institucional dessa fé, não era mais uma força motivacional na vida das pessoas.

Ao mesmo tempo, o pensamento socialista, inspirado por Karl Marx, apareceu nas discussões públicas. O socialismo demanda controle político e coletivo sobre a produção e as trocas como medida para solucionar todos os problemas sociais e necessidades espirituais. À medida que o poder da Igreja minguava, a liberdade individual foi deliberadamente renegada pela transferência da autoridade de Deus para o Estado. O sentimento expresso no antigo hino religioso “God Will Take Care of You” [Deus cuidará de você] foi transformado em “O Estado cuidará de você”. O Estado simplesmente substituiu Deus, como um pai adotivo.

Os programas assistencialistas não foram, na verdade, uma imposição vertical por uma elite que alegava possuir uma sabedoria superior ou por aqueles que simplesmente procuravam se beneficiar às custas dos outros. O apoio da população a tais projetos teve sua fonte exatamente nessa substituição da lealdade a Deus pela lealdade ao Estado. As pessoas passaram a temer a responsabilidade pessoal que teriam de assumir caso fossem libertadas das correntes do controle coletivo.

Quando as ilusões fiscais do estado moderno – alimentadas por nossos processos constitucionais falhos – forem reveladas, esse Deus social-democrata fracassará. De certa forma, ele já está fracassando: as modernas democracias de bem-estar social não conseguem mais financiar todas as dívidas que se acumularam por várias décadas sem prejudicar fiscalmente alguma parcela do eleitorado. A discussão em relação a quem pagará essa conta será central na política da primeira metade desse século. Mais classificações hierárquicas irão surgir para identificar indivíduos de acordo com sua filiação a determinados grupos políticos, seguidas por mais discriminação.

As idéias tem conseqüências

A premissa básica do liberalismo se opõe à idéia anterior: as pessoas são naturalmente iguais e devem ser tratadas assim em todas as dimensões da organização e ação política. Nesse sentido, o liberalismo é profundamente igualitário, em vez de hierárquico. A referência de Adam Smith à igualdade natural entre um filósofo e um carregador de rua reflete essa atitude, a qual deve continuar a ser uma parte crucial da fé liberal se quisermos preservar as instituições de ordem cívica que essa fé possibilitou.

O liberalismo clássico como pensamento e estrutura institucional não tem nenhuma pretensão de ocupar o lugar de Deus. Na verdade, a fé religiosa, com sua ênfase no esforço pessoal e na independência, é um complemento ao liberalismo clássico. Na medida em que Deus volta à cena, a dependência dos cidadãos em relação ao Estado é necessariamente reduzida, desde que o fanatismo religioso não motive a invasão política sobre as liberdades individuais daqueles que não professem uma fé similar. A separação entre Igreja e Estado, se respeitada pelos políticos, ao lado da competição aberta entre facções religiosas diferentes, serve para manter o fanatismo sob controle.

Seria muito fácil adotar uma postura pessimista e julgar a situação sem esperança alguma, porém sempre digo que “sou um pessimista, se olho para o futuro, mas um otimista, quando olho para o passado.” Nós ocidentais temos a sorte de possuirmos as instituições de uma sociedade livre como parte de nossa tradição. Devemos assegurar que tais instituições não se erodam a ponto de se tornarem irreconhecíveis por não conseguirmos valorizar sua base ética lógica.

A “cidade resplandecente sobre um morro” de Ronald Reagan emocionou homens e mulheres em toda parte. É fundamental que continuemos a ser fieis ao sonho do liberalismo clássico e que ensinemos – que preguemos – seus princípios.

* Resumo do discurso de abertura no jantar do Prêmio Adam Smith, em maio de 2005, apresentado pela Foundation for Economic Education (FEE).

Extraído do Instituto Ordem Livre.