sexta-feira, 20 de fevereiro de 2015

Ernesto Geisel: o testamento político de um presidente militar

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Alguém pode questionar: regime militar, mais uma vez? Quando nos surge algo novo sobre determinado período histórico, ou uma evidência nova de um fato que já conhecemos, é sempre positivo que enriqueçamos as abordagens. Isso se torna ainda mais importante se tratamos de uma das fases da história brasileira que mais despertam paixões políticas, seguramente a mais “manipulada” e distorcida, por grupos opostos, para favorecer determinadas narrativas que lhes interessam particularmente. Entre esses que não estão genuinamente desejando compreender os 21 anos de comando dos “generais”, costuma restar propositadamente uma lacuna mal preenchida: a análise do pensamento expresso pelos personagens que fizeram a história. Seja porque são, “obviamente”, “heróis”, seja porque são “vilões”, pouco se leva em conta o que disseram ou alegaram sobre o que faziam. Os pesquisadores Maria Celina D’Araujo e Celso Castro, da Fundação Getúlio Vargas, nos deixaram um verdadeiro tesouro, ao realizarem uma série de entrevistas com o presidente que começou a chamada “abertura gradual”, o penúltimo mandatário do regime militar: Ernesto Geisel.
Nessa coletânea de diálogos exclusivos, voluntariamente aceitos pelo ex-presidente, lançada em 1997 com o simples título “Ernesto Geisel”, o leitor pode visitar, pelos olhos do personagem, fatos marcantes de quase um século da história brasileira, desde os movimentos tenentistas revolucionários da República Velha até o governo Itamar Franco, passando pelo movimento de 64, os governantes que o antecederam no regime (Castelo, Costa e Silva, a junta militar e Médici), seu próprio mandato e a relação com o sucessor Figueiredo. É uma oportunidade preciosa de entender com mais amplitude aquele período, a partir de quem o realizou.

O que destacar desse testamento político e histórico? O mais importante é que, se os fatos já não fossem suficientes para comprovar isso, o discurso da esquerda de simplificar em demasia para confundir, associando o regime militar a ideias capitalistas liberais, cai totalmente por terra, nas palavras do próprio Geisel. O que nós temos diante de nós é uma figura de viés nacionalista em sentido econômico, com desconfiança profunda do capitalismo liberal e das privatizações. Às informações que já temos disseminadas em fontes variadas sobre seu governo ter sido campeão na criação de empresas estatais, vêm se juntar, pela leitura desta obra, suas próprias afirmações positivas sobre o assunto.

Em seu “História do liberalismo brasileiro”, Antônio Paim referencia um autor chamado Wanderley Guilherme dos Santos, que, baseado em obra de Oliveira Viana, publicada em 1920, define o conceito de “autoritarismo instrumental”. Segundo Viana, o Brasil não seria uma sociedade liberal, e, para que se tornasse uma, demandaria um regime autoritário transitório que, à força, consolidasse as reformas necessárias. O discurso ideológico do regime militar – e aqui falo mesmo do regime, e não do movimento de 1964, já que são instâncias diferentes e exigiriam análises particulares minuciosas -, que se reflete em Geisel, evoluiu nessa direção. Em nenhum momento, os militares depois de Castelo Branco assumiram que uma ditadura indefinida seria o modelo ideal de governo para uma nação. Objetivamente, está claro que nem mesmo eles se atreviam a assumir que seu governo era uma ‘ditadura” – muito embora esteja claro que, tecnicamente, era um regime de exceção, por mais exageros que a esquerda aprecie pintar sobre o tema. A “Revolução” (termo que quase nunca é bom sinal) duraria apenas até que consolidassem suas reformas, que, pontua Geisel – atribuindo esse pensamento à chamada “linha dura” -, muitas vezes chegavam a ter a vagueza de um genérico “combate à corrupção”. Inegável que tivemos obras interessantes de infraestrutura, mas podemos dizer que “recebemos” daqueles regimes uma nação enfim avançada, com uma vocação liberal-democrática francamente estabelecida? Não me parece que o Brasil do PT confirme essa tese.
Do ponto de vista de sua classe de militares, Geisel diz que a desconfiança que havia para com Jango, o presidente deposto em 64, desde os tempos em que foi eleito vice de Jânio Quadros, vinha da ideia de que ele era “um homem fraco, dominado pelas esquerdas”, de “tradição vinda do getulismo com a política trabalhista”. Pessoalmente, estou de acordo com todas essas qualificações, no entanto Geisel avança em que se acreditava que o governo dele seria “voltado inteiramente para a classe trabalhadora, em detrimento do desenvolvimento do país”. O problema é que o conceito de Geisel acerca do desenvolvimento nacional não é muito diferente do conceito getulista. É um desenvolvimento conduzido, a mão de ferro, pelo próprio Estado.

Um desenvolvimento que receia, por princípio, a “ordem espontânea” de que bem falava o economista austríaco Friedrich Hayek. Em matéria de Petrobras, a que nos preocupa tanto hoje e toma as manchetes de jornais, há um capítulo inteiro destinado à defesa de Geisel da manutenção do setor sob controle do Estado. Aí, ele apresenta o Brasil como um país vulnerável, em que o Estado deve ser o promotor e agente crucial do desenvolvimento. Geisel ataca diretamente o economista liberal Roberto Campos, que o acusava de ser “estatizante”, dizendo que a realidade brasileira exige que os governos se comportem dessa maneira e controlem fortemente o fluxo de capitais e recursos. Até mesmo a privatização das telecomunicações tinha sua oposição! “Como o país não tinha capitais próprios, como a iniciativa privada era tímida, às vezes egoísta, e não se empenhava muito no sentido do desenvolvimento, era preciso usar a poderosa força que o governo tem”, defendeu ele. Diante do cenário de crise, Geisel defendia que “ativar a economia, desenvolver o país”, para manter a segurança social era o atalho. Não queria tomar “medidas impopulares” que os “teóricos que nada produzem” alertavam serem necessárias. Precisamos lembrar quais foram as consequências para a economia do país do “altruísmo” do general? Por outra: não parece essa posição bastante familiar, se olharmos para o discurso do governo Dilma hoje? Que consequências isso trará para nós, atualmente?

Muito interessante notar que, manifestando-se sobre figuras com tendências realmente liberais ou conservadoras, na acepção que costumamos empregar, Geisel as via com receio evidente; ele chega a dizer que Carlos Lacerda, líder civil da UDN, o partido que tinha esse perfil na época, por exemplo, poderia se tornar, vejam só, “ditador”, caso chegasse à presidência da República. Incrível. Por acaso, o que os militares foram? Em que teriam sido superiores ou melhores, em gestão, ao governador da Guanabara, que deixou um legado tão notável às terras fluminenses?

Em termos de política externa, em vez da suposta postura de “capacho dos americanos”, tão constantemente atribuída pelas esquerdas a todos os presidentes militares, Geisel se ufana do que se chamava de “pragmatismo responsável”, sustentação de certa independência que motivou algumas importantes tensões com os americanos, em problemas que envolveram desde a polêmica nuclear, até acusações contra violações de direitos humanos pelo governo brasileiro. Acerca de suas posições sobre o regime político, Geisel defendia o presidencialismo, com centralização de poder nas mãos do líder máximo do Executivo, como modelo ideal para o Brasil, recorrendo sempre ao discurso de que nossas limitações e nossa “juventude” como nação nos impedem de dar voos mais altos, cabendo o parlamentarismo apenas a países mais avançados.

Começamos este artigo deixando claro que não devemos viver de maniqueísmos distorcidos. Com todas as reservas que temos a Geisel, reconhecemos que viveu em um tempo em que a tônica da política nacional era a disputa de diferentes formas de autoritarismo, com vozes liberais permanecendo quase sempre à margem da condução dos fatos. Sabemos, também, que comandou o país no meio de uma tensão entre forças mais radicais da “linha dura” militar e opositores estridentes, que nem sempre sabiam lidar com a situação delicada da melhor maneira ao exigirem as necessárias reformas de abertura. Necessárias, sim, porque, com todo respeito aos saudosistas do regime, um governo militar como aquele não é um modelo ideal de governo e não poderia realizar, persistindo indefinidamente, o Brasil que queremos. Articular-se pela abertura é, em teoria, algo bom, a despeito de erros que possam ter sido cometidos no processo.

Entretanto, o modelo de sociedade que Geisel parecia desejar ver no Brasil era tudo, menos liberal, na sólida expressão com que poderíamos sonhar. O que vemos na preciosa coletânea da Fundação Getúlio Vargas é alguém que enxergava o país como uma criança, que precisava de constante tutela de seus senhores – os governantes, o Estado – para conseguir avançar. Com uma imperfeita interrupção durante os governos tucanos, onde foram feitas privatizações que certamente desagradariam a Geisel, a Nova República que sucedeu Figueiredo tem mantido, na administração nacional, essa visão de um Estado grande a carregar consigo as esperanças de crescimento e justiça social. O petismo, supostamente representante do que haveria de mais avesso a Geisel, apresenta assustadoras semelhanças com o militar. Assustadoras, para quem não entende a história das ideias políticas no Brasil, e, com isso, desconhece o verdadeiro adversário cultural que deve enfrentar. Pois o que queremos é que a criança cresça e se torne adulta; para isso, deverá se libertar do agigantamento do tutor, e fortalecer em si a consciência do que é ser livre.

Sobre o autor
Lucas Berlanza
Acadêmico de Comunicação Social, com habilitação em Jornalismo, na UFRJ, e colunista do Instituto Liberal. Estagiou por dois anos na assessoria de imprensa da AGETRANSP-RJ. Sambista, escreveu sobre o Carnaval carioca para uma revista de cultura e entretenimento. Participante convidado ocasional de programas na Rádio Rio de Janeiro.

Matéria extraída do website do Instituto Liberal

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