Alertado sobre o artigo de minha autoria Quem é o criador de confusão? É o estado, claro!, o Sr Embaixador Paulo Roberto de Almeida recordou de já ter se manifestado com a mesma posição em outubro de 2007, por meio de dois brilhantes textos dois quais repasso o segundo aqui (abaixo) intitulado Autobiografia de um fora-da-lei, 2 (uma história do Estado brasileiro).
Muito mais do valor de mera retribuição da gentileza a mim prestada, faço questão de republicá-lo aqui por se tratar de um brasileiro rextremamente respeitável e conhecedor do que fala, como uma forma de mostrar que nem eu nem ele e nem ainda os leitores frequentes de ambos os nossos blogs estão sós em suas convicções: o estado brasileiro tem existido fundamentalmente para se propor a resolver os problemas que ele mesmo tem criado, torrando desta forma trilhões de reais do esforço diário de milhões de brasileiros para coisa nenhuma.
Autobiografia de um fora-da-lei, 2 (uma história do Estado brasileiro) | ||
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www.pralmeida.org pralmeida@mac.com Uma questão de método: como o Estado pode escrever sua própria biografia? Expostas as razões pelas quais decidi escrever minha própria história, cabe agora responder à difícil questão de como pode uma entidade que é, por definição, impessoal, vale dizer, indefinível enquanto personalidade individual e, portanto, sem vontade própria, escrever sua biografia na primeira pessoa? Quem é você, seu fora-da-lei assumido? Sim, afinal de contas, quem está falando, ou quem está escrevendo, exatamente? Seria sempre a mesma pessoa, ao longo do tempo, em toda e qualquer circunstância? Qual inteligência anima essa pluma, ou movimenta esse mouse e bate os dedos nesse teclado de computador? Que cérebro está atrás dos argumentos escritos e responde pela veracidade do que vou aqui expor? O Estado, isto é, eu mesmo, não foi o mesmo ao longo do tempo, não há um fio condutor que leva da mera capitania-geral e do vice-reinado da era colonial, para um reino sui generis no contexto americano, no início do século XIX, daí para um império pretensioso em seu aristocratismo mestiço e, finalmente, uma república de oligarcas e aventureiros que foi se transformando ao longo do século XX. Em cada uma dessas etapas da minha existência, forças e ânimos diferentes estiveram atrás de minhas ações (e omissões), vontades diversas, e muitas vezes contraditórias, me empurraram para esta ou aquela aventura política ou militar, interesses concretos daqueles que ocuparam minhas sedes eventuais levaram a características muito particulares que fui assumindo no decorrer dessas fases, algumas mais tempestuosas do que outras, sem que se possa, em todos os casos, identificar o momento certo de ruptura com certas práticas e hábitos ancestrais e o começo de uma nova era de dominação. Claro, o que permanece constante no decorrer de toda a minha existência é essa essência verdadeira de todo Estado: a concentração do poder e o exercício indisputável – algumas vezes disputado – da dominação política, ou seja, o comando sobre os homens e a administração das coisas. Tirando essa característica fundamental do meu modo de ser, tudo o mais mudou, ao longo desses anos e séculos de trajetória errante, de ações claudicantes, por vezes decisivas, em outras timoratas, em todo caso, determinantes para o destino de tanta gente e de tantos interesses. Eu sempre fui fiel a um único princípio, a uma única vontade, ou seja, a mim mesmo, buscando preservar a lógica do poder absoluto, que é o monopólio do uso da força e a eliminação de todo e qualquer concorrente no exercício daquela capacidade de agir que os cientistas políticos chamam de nomes aliás coincidentes: Macht, power, puissance. Não admito competição quando se trata da minha própria vontade! Por isso mesmo eu sou único, ainda que diversas personalidades se tenham sucedido no comando de minhas ações. Mas todos aqueles que se sentaram na minha cadeira de comando estiveram a meu serviço exclusivo, e encarnaram minha vontade exclusiva, mesmo sem o saber ou sequer perceber. Muitos pensaram, sobretudo aqueles com vocação caudilhesca ou ditatorial, que se guiavam por sua própria vontade, quando na verdade estavam cumprindo meus desígnios permanentes, que são o de sempre acumular poder e o de aumentar cada vez mais meu domínio sobre os homens e as coisas. Alguns me serviram fielmente, outros pensaram que estavam devolvendo o “poder ao povo”, quando nada mais faziam do que confirmar minha determinação em exercer solitariamente toda e qualquer decisão relevante na vida da nação. O país se coloca aos meus pés, este é princípio diretor que orienta todas as minhas ações. Isso não quer dizer que eu tenha sido sempre arbitrário e prepotente no decorrer de minha história multissecular, longe disso. Na maior parte das vezes, eu agi com o consentimento e a concordância da maior parte dos meus súditos, ou cidadãos, conforme o caso. Raras vezes me vi obrigado a me afastar de meu próprio livro-guia para impor minha vontade unilateral ao povo miúdo ou aos poderosos que sempre me cercaram. Normalmente todos eles me obedecem, por costume ou porque são sensatos, não lhes importando muito saber de onde vem a minha força e o poder de minha clava, apenas interessando-lhes ter certeza de que ela poderia se abater sobre suas cabeças caso ousassem infringir as normas fixadas nas tábuas da lei. E, para tocar no ponto certo, quem impunha a sua lei sobre os pergaminhos e papéis que condensavam a vontade superior que eu representava ao longo do tempo? Bem, isso variou muito no decorrer dos séculos pois, ainda que a minha palavra fosse unívoca e singular, os comandos foram sendo articulados pelas diferentes figuras que, na sucessão dos reis postos, de sucessores impostos, de monarcas de ocasião e de tribunos cooptados pelas oligarquias, ocuparam os meus palácios pela razão ou pela força. Essas leis, em todo caso, foram sempre sendo interpretadas à minha própria maneira, segundo meus desejos circunstanciais, foram sendo modificadas sempre quando isso me convinha, foram sendo dobradas à minha vontade ou descartadas como inúteis e substituídas por novas leis, sempre melhores, claro, do meu ponto de vista. Foi assim que eu fui acumulando, sem sequer enrubescer uma única vez, constituições várias e milhares de normas, centenas de alvarás-régios, dezenas de milhares de leis, incontáveis decretos, medidas provisórias, portarias, circulares, instruções, avisos e tudo o que foi possível humanamente (e até de forma desumana) inventar como injunções aos súditos e cidadãos (à falta de poder me dirigir às coisas inanimadas). Confesso que eu mesmo me perdi, inúmeras vezes, no meio dessa barafunda de regras, nessa selva de leis, sem saber ao certo qual a que devia aplicar a cada caso específico. Mas, isso não importa muito, pois o que vem com o carimbo do Estado e a chancela da autoridade merece ser cumprido, sob as penas da lei, que sou eu mesmo quem faço (ainda que alguns juízes inventem de interpretá-la). Sendo assim, nada obsta a que eu escreva minha própria história, nas minhas próprias palavras, com o que hão de concordar (obrigatoriamente) os mais sensatos. Nada impede que eu tenha escolhido para ser meu escriba particular – e temporário – um mero empregado do Estado, um servidor público temporariamente disponível para estas digressões fora do comum, posto que raramente me é dado o lazer de eu mesmo descrever minha trajetória política (e econômica). No mais das vezes, minha história e carreira política têm sido escritas por cientistas sociais ou sábios da academia, ocasionalmente até um ou outro psicanalista ou filósofo improvisado. Eles falam muita bobagem a meu respeito, e até algumas inverdades. Esta é, portanto, a minha autobiografia autorizada, a única que me foi dada escrever até este momento, ao que eu saiba, pelo menos. Desconheço, na verdade, se, em outras encarnações de minha múltipla personalidade, antecessores tomaram eles mesmos da pluma – aqui no sentido literal – para escrever minha história pregressa, ou se delegaram a outros essa tarefa. Não tenho registro de exemplos precedentes nos meus arquivos implacáveis, algo confusos, é verdade, e, no mais das vezes, impenetráveis. Quero, em todo caso, deixar constância de minha honestidade proverbial na reconstituição dos meus atos e fatos, o que, aliás, vem expresso no subtítulo desta autobiografia: eu escrevi que se trata de “uma” história do Estado brasileiro, e não “da” história desse Estado. Esta é a minha história, quem quiser que conte outra. Nunca pretendi retirar o sustento de tantos cronistas voluntários da minha existência, nem competir deslealmente com tantos intérpretes da academia. O presente rábula é de ocasião, mas ele é meu, ele sou eu. Esta é, portanto, a minha versão da minha história, a única por mim autorizada. Outras existirão, que não receberam a minha chancela, ou até à minha revelia, quando não deformando totalmente as minhas ações e os meus dizeres. Não me importa! Sou democrata, se isso não causar arrepios (ou calafrios) ao mais respeitável dos filósofos políticos. Minha vontade é a lei, mas eu deixo que a interpretem à vontade, à condição que ela seja cumprida. Tem sido assim nos últimos quatro ou cinco séculos e não vejo por que isso tenha de mudar agora. Não temam os historiadores se eu não revelar as fontes documentais dos muitos atos e fatos que eu aqui relatar: não tenho tempo, agora, para ir remexer no pó dos arquivos e dali retirar as “provas irrefutáveis” do que vou contar, em linguagem livre e por vezes desabusada. Vou ser sincero, tanto quanto me permite a idade e o alcance da memória, e não tenho por que esconder as coisas mais escandalosas que andaram dizendo ao meu respeito. Aprendi, em outros tempos, com um intérprete genial, Niccolò Machiavelli, que não devemos nos envergonhar de exercer a única coisa que nos é dada como essência da nossa própria existência: o poder total, em todas as suas formas e manifestações. Dele faço questão e é por isso mesmo que eu decretei ao meu escriba: senta-te e escreve a minha história verdadeira. É a que eu passo agora a relatar... Brasília, 2 de novembro de 2007. Mais sobre Paulo Roberto de Almeida |
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