Na edição de Janeiro da revista Commentary, Norman Gall, referindo-se ao Brasil, mencionou “a tradicional incapacidade dos brasileiros para investir naquilo que se poderia chamar de capital humano”.
Se Norman Gall lesse os jornais brasileiros, teria podido citar, em apoio à sua opinião sobre a nossa escassez de capital humano, três tópicos tão característicos quanto impressionantes.
1) Estado de são Paulo, em editorial de 17 de corrente, relata o que tem sido o fracasso do Lloyd Brasileiro, no serviço de passageiro, com os navios tipo “princesa” lindo e moderno navios, importados há 15 anos atrás. O último deles, o Anna Nery, chegou ao Rio de Janeiro no dia 16, rebocado, depois de malograda viagem de turismo pelo norte do Brasil. Não foi a primeira vez (longe disso) que o navio teve deparar em meio de viagem, por acidentes nas máquinas. O Princesa Izabel foi vendido a preço de sucata e reformado pelo comprador, fazendo viagens de longo curso, sob o nome de Marco Pólo. O Princesa Leopoldina foi também vendido a preço de sucata a uma empresa inglesa, por apenas um milhão e setecentos mil dólares; hoje faz cruzeiros no Extremo Oriente, sob o nome de Coral Princess. Agora tudo indica ter chegado a vez do Anna Nery, porque os reparos de que necessita não são exeqüíveis no Brasil, malgrado nossos grandes estaleiros de construção naval. Vai ser substituído por um navio de registro panamenho, chamado Romanza, com 33 anos de idade, fretado a um custo de 5 a 6.000 dólares por dia.
2) Outro fato impressionante é o do terceiro forno da siderúrgica Nacional em Volta Redonda, o maior (naturalmente o mais dispendioso) da América Latina, inaugurado há poucos meses pelo Presidente Geisel. Depois de outras peripécias, teve agora seu funcionamento suspenso “por tempo indeterminado” devido às precárias condições do sistema de alimentação.
3) As comportas da eclusa da Lagoa Mirim há poucos dias inaugurada pelo Presidente da República, na funcionaram no dia da inauguração!
4) No gênero, poder-se –ia mencionar, a título de recordação, o caso do trem Teresina-Fortaleza, inaugurado pelo Ministro Andreazza, com bombástico discurso na estação da partida. “Enguiçou” poucas horas depois da partida; e afinal desmantelou-se em descarrilamento nas linhas do Ceará....
A culpa de tudo isso não é das máquinas, devidamente projetadas, importadas e fiscalizadas, e sim da falta de gente competente para manobrá-las e conserva-las.
É o caso que tão sabidamente assinala Sr. Roy Harrol, autor da famosa fórmula Harrod-Domar: “Nos países em desenvolvimento, este depende principalmente da taxa a que os quadros humanos de empreendedores, engenheiros de produção, gerentes, inspetores, projetores, desenhistas, contadores, et hoc genus omne se desenvolvem.
As taxas de crescimento e expansão desses quadros humanos impõem, na minha opinião, uma limitação muito mais importante ao desenvolvimento econômico dos países do que escassez do capital, conquanto este também tenha o seu lugar“.
Mas como se explica, malgrado a multiplicação de universidades e faculdades verificada nos últimos decênios, que persista tanta penúria de gente competente para os misteres ordinários de engenharia industrial e mecânica?
A meu ver, a resposta está na grave deficiência do ensino nesse setor. Porque a mecânica aplicada aos vários setores dfa indústria (inclusive estradas de ferro e navegação) não se aprende apenas nos livros, como no caso do direito, da economia, ou da matemática. O ensino da física aplicada, da química, da mecânica industrial exige laboratórios e oficinas, inexistentes em ossos cursos. E se o ensino da medicina sofre menos que os demais é porque nesse curso a oficina e o ensino prático se encontram no hospital, que os estudantes são obrigados a freqüentar.
Persiste, de outro lado, entre nós, a velha prevenção, oriunda da civilização grega, contra o trabalho manual, em contraste com o apreço pela cultura livresca.
Somos países onde se cultua o “diploma” (canudo) e se despreza a “experiência”.
Em 1936, em conferência pronunciada, a convite do Ministro Capanema, sobre o tema “Educação e Riqueza” aproveitei a ocasião para demonstrar a necessidade de criarmos escolas técnicas com oficinas de mecânica, de eletricidade, de siderurgia, etc, do tipo que os franceses chamam de arts et métiers, onde se preparam, em três anos, engenheiros com boa base matemática corrente, desenho de projetos e trabalhos de oficina, inclusive o manual. Propus que se criasse uma primeira escola em São Paulo, montada com bom aparelhamento e professores contratados no exterior, quando necessário. Ao fim de dez anos, aproveitando a experiência e os recursos da primeira, far-se-ia uma segunda escola em Recife.
Fizeram-se “escolas técnicas”, uma em cada Estado (!!), mas sem aparelhamento nem professores competentes. É como se não existissem.
Precisamos reformar a fundo nossa mentalidade, substituindo o culto do “diploma” pelo culto da “experiência”.
E não podemos perder tempo. Porque, como se vê pelos supracitados e muitos outros, o atraso do elemento humano nesse setor é considerável.
Constrói-se uma máquina, mesmo um grande equipamento, em um ou dois anos. Mas a formação de gente competente e experiente exige uma ou mais dezenas de anos.
A não ser que encontrássemos outros espécimes de homens como o Governador Faria Lilá; que fez em dois anos mais do que todos os seus antecessores em cem! Mas é que é mui difícil outro exemplar de tão milagrosa capacidade.
*Eugênio Gudin Filho (Rio de Janeiro, 12 de julho de 1886 - Rio de Janeiro, 24 de outubro de 1986) foi um economista brasileiro, ministro da Fazenda entre setembro de 1954 e abril de 1955, durante o governo de Café Filho.
Formado em Engenharia Civil em 1905 pela Escola Politécnica do Rio de Janeiro, passou a interessar-se por Economia na década de 1920. Entre 1924 e 1926, publicou seus primeiros artigos sobre Economia em O Jornal, do Rio de Janeiro.
Em 1944, o então ministro da Educação, Gustavo Capanema, designou Gudin para redigir o Projeto de Lei que institucionalizou o curso de Economia no Brasil. Nesse mesmo ano, foi escolhido delegado brasileiro na Conferência Monetária Internacional, em Bretton Woods, nos Estados Unidos, que decidiu pela criação do Fundo Monetário Internacional (FMI) e do Banco Mundial (Bird)
Durante os sete meses em que foi ministro da Fazenda (1954-1955), promoveu uma política de estabilização econômica baseada no corte das despesas públicas e na contenção da expansão monetária e do crédito, o que provocou a crise de setores da indústria. Sua passagem pela pasta foi marcada, ainda, pelo decreto da Instrução 113, da Superintendência da Moeda e do Crédito (Sumoc), que facilitava os investimentos estrangeiros no país, e que seria largamente utilizada no governo de Juscelino Kubitschek. Foi por determinação sua também que o imposto de renda sobre os salários passou a ser descontado na fonte.
Ricardo Bergamini
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NOTA de LIBERTATUM: textos históricos sempre são apreciáveis porque nos esclarecem as coisas atuais. Todavia, nem sempre precisamos concordar com elas. A carência de capital humano vivenciada por Eugênio Gudin se deu em meio a um país extremamente estatizado. Tínhamos, portanto, um capital humano desvirtuado e desmotivado, porque os empregos eram oferecidos preferencialmente mediante critérios políticos. O LLoyd Brasileiro acabou literalmente, de podre. Teve de ser extinto, mesmo depois de três tentativas de privatização, porque ninguém se dispôs a assumir as suas dívidas. Por outro lado, Gudin foi o protagonista de mais uma intervenção sinistra para o cidadão humano, qual seja, o da retenção do imposto de renda na fonte.
Meu caro Klauber,
ResponderExcluirSobre este ponto:
"Gudin foi o protagonista de mais uma intervenção sinistra para o cidadão humano, qual seja, o da retenção do imposto de renda na fonte."
Não foi o único: Milton Friedman foi o "inventor" dessa modalidade perversa de intervenção governamental, mas por uma causa nobre: tratava-se de financiar o esforço de guerra americano entre 1941-1945.
Depois nunca mais conseguiu enfiar o gênio na garrafa outra vez. Arrependeu-se a vida toda.
Depois que o governo descobre que pode meter a mão no seu bolso sem o seu consentimento, aí não tem mais volta...
Uma tragédia.
Paulo R. Almeida