sexta-feira, 21 de fevereiro de 2014

REFLEXÕES SOBRE O ENSINO DE FILOSOFIA

Por José Junio Souza da Costa
O ensino de filosofia pode estar sujeito à vontade de uma maioria, ainda que seja uma maioria de “especialistas em filosofia”, sem perder sua natureza filosófica?


RESUMO

            Quais devem ser as diretrizes curriculares oficiais da disciplina filosofia? Qual deve ser seu modo de funcionamento, sua metodologia de ensino, seus princípios orientadores, seus objetivos, sua estrutura curricular, seus conteúdos estruturantes e específicos? O que essas perguntas dizem se examinadas fora dos limites de sua literalidade? O ensino de filosofia pode ser exercido sob diretrizes curriculares oficiais ou nos moldes de uma instituição oficial como a escola ou a universidade sem deixar de ser verdadeiramente filosófico? Onde buscar inspiração filosófica, pedagógica e metodológica para o ensino da filosofia? A inspiração e a influência dos antigos filósofos gregos, buscadas antes de dar o merecido valor aos filósofos posteriores a eles, impõem-se como condição indispensável para qualquer estudo realmente sério a respeito da pedagogia filosófica e da Filosofia enquanto genuína educação.

ABSTRACT

            What should be the official curriculum guidelines of the discipline philosophy? What should be its mode of functioning, teaching methodology, guiding principles, objectives, curricular structure, contents, and structuring and specific content? What do these questions tell if examined outside the bounds of its literality? The teaching of philosophy can be exercised under official curriculum guidelines or in the molds of an official institution like school or university without ceasing to be truly philosophical? Where seek philosophical, pedagogical, and methodological inspiration to the teaching of philosophy? The inspiration and influence of ancient Greek philosophers, fetched before giving the deserved value to the later philosophers them, impose themselves as indispensable condition for any do serious study about the philosophical pedagogy and philosophy while education genuine.

INTRODUÇÃO

            Qualquer pergunta tem em si, de forma subentendida, uma ou mais afirmações que servem de fundamento para ela, fundamento este sem o qual não poderia ser feita, possibilitando a sua conexão com a realidade concreta ou com uma hipótese acerca do real. Essas afirmações se apresentam não somente no próprio enunciado da pergunta, mas em outros níveis de significação que, obviamente, não aparecem na literalidade do enunciado, também carregando em si, necessariamente e em outro grau, certas negações que, por sua vez, também expressam um sentido diferente daquele encontrado no plano literal de suas manifestações negativas, ou seja, além de negarem determinadas coisas, igualmente afirmam outras que, é claro, não se opõem nem a seu conteúdo inicial negativo, nem ao teor afirmativo implícito na pergunta em questão. Isso tudo também vale para quaisquer outras afirmações e negações, mesmo que não procedentes de alguma pergunta – embora seja possível enxergar qualquer afirmação ou negação como possível resposta a uma pergunta hipotética. Em outras palavras, quem faz perguntas, também está afirmando algumas coisas e negando outras; quem afirma, também está negando; e quem nega, também está afirmando.[1]
            Assim, antes de responder a uma pergunta, é necessário primeiro entendê-la corretamente e, para isso, é preciso identificar seus níveis de significado – pelo menos (é obvio) os que forem possíveis de ser reconhecidos – e, com isso, perceber o que essa pergunta está afirmando no momento mesmo em que é feita e, consequente e necessariamente, o que está negando. O mesmo vale para as afirmações e negações no que lhes diz respeito.[2]
            Nos debates acerca do tema “filosofia no ensino médio” tem sido comum a enunciação das seguintes perguntas: Quais devem ser – para o ensino médio – as diretrizes curriculares oficiais da disciplina filosofia? Qual deve ser seu modo de funcionamento, sua metodologia de ensino, seus princípios orientadores, seus objetivos, sua estrutura curricular, seus conteúdos estruturantes e específicos? É verdade que, por vezes, essas questões aparecem articuladas de maneira diversa, com a utilização de outros termos e expressões, mas possuindo o mesmo significado, ou seja, expressando as mesmas dúvidas. O que essas perguntas dizem se examinadas fora dos limites de sua literalidade? O que há além de seu enunciado interrogativo?

A FILOSOFIA E O ENSINO OFICIAL

            Em primeiro lugar, para perguntar “quais devem ser – para o ensino médio – as diretrizes curriculares oficiais da disciplina filosofia” é preciso – obviamente – admitir: a existência de um nível de instrução chamado ensino médio; a presença da disciplina filosofia nesse ensino; que há a possibilidade de enxergar a filosofia como disciplina escolar/acadêmica; que devam existir diretrizes curriculares para essa disciplina; que essas diretrizes tenham caráter oficial. Quanto à segunda pergunta – que, na verdade, não é somente uma, pois contêm em sua extensão várias indagações que, por outro lado, se referem a temas similares e convergentes – para que seja feita é necessário aceitar – evidentemente – que deve haver, para a disciplina filosofia no ensino médio: um modo de funcionamento; uma metodologia de ensino; princípios orientadores; objetivos; uma estrutura curricular; conteúdos estruturantes e específicos. Assim, dessas questões pode ser extraída a seguinte declaração: deve haver – para o ensino médio – diretrizes curriculares oficias da disciplina filosofia, a qual deve ter um modo de funcionamento, uma metodologia de ensino, princípios orientadores, objetivos, uma estrutura curricular e conteúdos estruturantes e específicos. Portanto, antes de tentar encontrar as respostas adequadas às perguntas acima, é preciso discutir primeiro os pressupostos que servem de base para tais perguntas. Procurar as respostas a essas perguntas sem uma reflexão séria sobre os fundamentos destas, sobre as ideias que possibilitam a articulação das mesmas, significa aceitar a legitimidade desses fundamentos sem, ao menos, ter pensado na possibilidade de sua impugnação, admitindo-os a priori. Dito isso, deve-se buscar maior compreensão, analisando cada um desses fundamentos.

Ensino Médio

            Pensar em um ensino “médio” implica, necessariamente, aceitar que o mesmo existe entre, pelo menos, mais dois níveis de ensino, um inferior ou básico e outro superior ou avançado, e que isso transmite a ideia de um processo gradativo. Não fosse dessa forma, também não haveria motivo para chamá-lo “médio”. Sendo um ensino “médio”, obviamente não poderia ser simples ou basilar, mas também não teria o direito de ser sinônimo de um ensino aprofundado ou mais minucioso. Nisso tudo está escondida a concepção de que o ensino precisa ser ministrado em etapas, gradualmente ou, em outras palavras, de maneira progressiva, de acordo – possivelmente – com o nível de conhecimentos daquele que está sendo ensinado, isto se o fundamento da divisão básico/médio/superior levar em conta que o estudante, para receber ensino médio, necessite já ter recebido e assimilado ensino básico e que este mesmo estudante, para auferir ensino superior, careça ter sido submetido a ensino médio, também com a devida assimilação deste.

Filosofia no Ensino Médio

            Se for admitido o que foi dito a respeito do ensino médio, a disciplina filosofia, nesse nível de ensino, deverá ser ministrada em grau equivalente, ou seja, não poderá ser ensinada de forma básica, mas, também, não de maneira aprofundada. Contudo, nesse caso, mantendo os mesmos pressupostos do parágrafo anterior, o estudante de filosofia no ensino médio necessitaria já ter recebido ensino básico de filosofia – pelo menos se for aceito que os conteúdos trabalhados em todas as disciplinas do ensino médio tenham forçosamente que ser conteúdos “médios”, ou seja, entre o básico e o superior, como já foi dito. Com isso, haveria a necessidade de se ter filosofia no ensino básico, como preparação para o nível seguinte. Porém, pode ser dito que os conteúdos básicos de filosofia estão presentes em outras disciplinas e que, por isso, bastaria haver a disciplina filosofia a partir do ensino médio. No entanto, esse argumento também poderia ser usado contra a presença dessa disciplina no ensino médio, uma vez que seria possível afirmar que outras disciplinas constituem as bases para o aprendizado da filosofia, sendo admitida como disciplina autônoma apenas no nível superior de ensino. Surgem, então, outras questões: a filosofia, considerada como disciplina autônoma, deve estar contida: em todos os níveis de ensino, somente a partir do nível médio ou apenas no nível superior? É possível ensinar filosofia nos modos básico, médio e superior ou só há possibilidade de ensiná-la por um modo único, original?
            Aceitar a presença da filosofia como disciplina no ensino básico, sendo este dedicado às crianças, significa acreditar que é possível ensinar filosofia – ou a prática filosófica – para pessoas ainda na infância e que não é exigido, para o aprendizado filosófico, possuir a experiência intelectual, cognitiva e de vida que um adulto pode possuir. Isto também pode ser afirmado com relação à filosofia no ensino médio, voltado geralmente para adolescentes, tendo-se que crer na possibilidade de se ensinar filosofia para indivíduos dessa faixa etária. Por conseguinte, defender o ensino de filosofia apenas no ensino superior, expressa a convicção de que tal ensino filosófico deve ser direcionado somente a adultos ou a pessoas com certa experiência, tanto existencial quanto no que diz respeito ao conhecimento.
            Por outro lado, admitindo-se três modos de ensino da filosofia (básico, médio e superior), admitir-se-ia, também, que a filosofia é ensinável de maneira gradual, conforme a faixa etária ou o patamar existencial/intelectual do aluno. Então, restaria perguntar o que significa ensinar filosofia nos modos básico, médio e superior, isto é, como se dá cada um desses modos de ensino filosófico, caso haja possibilidade de praticá-los. Além disso, sem abandonar a ideia dos três níveis de ensino da filosofia e aceitando que este ensino pode contribuir para que seja formado um filósofo naquele que recebe tal ensino, poderia ser dito que em qualquer desses níveis há possibilidade de se manifestar um filósofo ou somente depois de o indivíduo atingir ou concluir o nível superior, sendo os níveis anteriores apenas etapas da formação desse possível filósofo? Se uma criança e um adolescente podem aprender filosofia ainda nessas respectivas fases da vida, podem também ser filósofos nessas mesmas fases? As respostas a essas perguntas implicam uma concepção do que seja filosofia e, se for negativa a resposta à última, ter-se-ia como implicação a tese que afirma ser possível aprender filosofia sem ser filósofo. Como explicar que crianças e adolescentes podem aprender filosofia e não podem, também, serem filósofos – tudo isso, respectivamente, ainda na infância e na adolescência? A não ser que se diga que tal tese só se confirma nessas fases da vida, não valendo, portanto, para a fase adulta. Com isso, teria que ser dito o porquê de crianças e adolescentes não poderem ser filósofos e, provavelmente, se voltaria ao argumento da falta de experiência que, sendo admitido, implicaria dizer que é possível aprender filosofia sem possuir essa experiência exigida acima.
            Ainda pode haver o entendimento de que o aprendizado de outras disciplinas, nos ensinos básico e médio, seria parte de um processo necessário para o conhecimento filosófico no nível superior e o ensino de outras disciplinas corresponderia, conforme o caso em questão, aos ensinos básico e médio de filosofia; as outras disciplinas não estariam fora do âmbito filosófico; ao contrário, seriam parte fundamental no processo de aquisição de um saber superior que culminaria no conhecimento filosófico, caso o estudante optasse por avançar até esse nível, estando inclinado para a filosofia. Nessa concepção, a filosofia seria considerada o saber superior por excelência, por buscar unidade e conexão entre todos os conhecimentos humanos e em relação à realidade, e as outras disciplinas do nível superior de ensino estariam imediatamente abaixo da filosofia, porém, sendo ministradas de maneira avançada, aprofundada, enfim, verdadeiramente em uma dimensão superior de ensino e aprendizado, possibilitando, em seu conjunto, uma compreensão mais rigorosa e num grau de confiabilidade maior a respeito do real como um todo e em cada uma de suas partes constituintes. Logo, nessas condições, a filosofia ocuparia uma posição especial no conjunto da cultura e do saber superiores.

Filosofia como Disciplina Escolar/Acadêmica

            A análise deste tópico exige que seja determinado o que se pretende dizer por disciplina. O próprio enunciado do tópico em questão já estabelece uma delimitação: a disciplina aqui referida diz respeito àquela do âmbito escolar/acadêmico – e não como regra ou disposição rigorosa do espírito para alguma atividade, ou ainda como obediência a alguma autoridade visando à manutenção de certa ordem – pois é no sentido escolar/acadêmico que se fala, nos debates supramencionados, da presença da filosofia tanto no ensino médio como no superior.
            Disciplina, com o significado aqui abordado, é um ramo do conhecimento, uma matéria de ensino ou mesmo um conjunto de conhecimentos professados em cada cadeira de uma instituição escolar. Assim, cabe agora perguntar: é possível que a filosofia possa ser considerada uma disciplina – conforme esta foi definida aqui? A filosofia é um ramo do conhecimento, uma matéria de ensino, um conjunto de conhecimentos que possam ser transmitidos em uma instituição escolar, assim como ocorre com outras disciplinas? Sendo um ramo do conhecimento, de que tipo pode ser definido: como ramo das ciências exatas, humanas, naturais, entre outras, ou não pode ser enquadrada em nenhum dos ramos conhecidos, sendo especialmente original e singular? Pode ser matéria de ensino, isto é, pode a filosofia ser ensinada? Se sim, de que maneira? Se for um conjunto de conhecimentos, qual o seu conteúdo?
            Portanto, afirmar a presença da filosofia como disciplina escolar/acadêmica em qualquer nível de ensino significa admitir também que ela é um tipo de conhecimento distinto dos outros e que, por isso, possui determinados conteúdos que podem ser ensinados em um contexto escolar. Resta saber de que maneira tais conteúdos poderão ser transmitidos e se, além de se diferenciar das outras disciplinas quanto aos conteúdos abordados, a filosofia também é distinta quanto ao modo de ensino desses conteúdos. Mas, é evidente que não há consenso quanto àquilo que deve ser ensinado em um curso de filosofia, ou seja, quanto aos conteúdos a serem ministrados, nem acerca dos métodos que precisam ser usados para que se tenha êxito nesse ensino. Deste modo, antes de concordar com a existência da filosofia como disciplina no ensino médio é preciso anuir com a possibilidade de que ela possa estar configurada dessa forma (como disciplina), tendo-se que estabelecer, em seguida, quais os conteúdos que serão abordados e quais os métodos que serão utilizados para tal propósito. É a partir dessa problemática que surge – nos debates citados – a pergunta acerca das diretrizes curriculares para a disciplina filosofia.


Diretrizes Curriculares para a Disciplina Filosofia

            Assim como no tópico anterior, primeiro é preciso delimitar do que trata o assunto em questão, ou seja, é indispensável saber o que é uma diretriz curricular antes de dar sequencia a esta reflexão.
            Diretriz é uma linha reguladora de um caminho ou estrada, de um plano, um negócio, um procedimento; é uma diretiva, uma orientação, um guia, um rumo, etc. Curricular, por sua vez, é relativo a currículo, que significa curso ou carreira. Geralmente a palavra curricular também é usada para se referir às matérias constantes de um curso, sendo este o sentido sobre o qual se volta esta reflexão. Assim, nos moldes propostos nos debates sobre o ensino de filosofia, as diretrizes curriculares seriam, para esta disciplina, um conjunto de direcionamentos referentes ao modo de funcionamento, à metodologia de ensino, aos princípios orientadores, aos objetivos, à estrutura curricular, aos conteúdos estruturantes e específicos, dentre outros de valor similar.
            Porém, não há acordo quanto à identificação de quais sejam as diretrizes curriculares mais adequadas à filosofia e ao seu ensino. É possível que haja quem defenda a não possibilidade de se estabelecer diretrizes curriculares em sentido mais amplo, coletivo, podendo apenas existir em nível individual, ou seja, cada professor ou filósofo é que determinaria as diretrizes para a sua prática de ensinar filosofia. Em outras palavras, estes últimos seriam contrários ao estabelecimento dessas diretrizes curriculares coletivas e, consequentemente, também se posicionariam contra o ensino de filosofia num âmbito institucional, visto que, neste âmbito, o ensino de filosofia está sujeito, quanto ao conteúdo e à metodologia, a direcionamentos de cunho oficial, aos quais não se pode deixar de seguir.

Caráter Oficial das Diretrizes Curriculares para o Ensino de Filosofia
           
            Busca-se, nos debates acerca do ensino de filosofia, chegar a um consenso sobre quais devem ser o teor e os métodos referentes a esse ensino, ou seja, deseja-se alcançar um acordo quanto à delimitação das melhores ou mais adequadas diretrizes curriculares para o magistério no campo da filosofia. Porém, nesses debates, tem-se como objetivo não só estabelecer quais sejam tais diretrizes, mas também que elas tenham caráter oficial.
            Como já foi dito, entre filósofos, professores de filosofia, especialistas e estudantes, não há unanimidade quanto à definição das diretrizes curriculares para o ensino de filosofia. A realização de muitos debates sobre o assunto não tem conseguido eliminar as divergências a respeito do mesmo. Há inclusive aqueles – e são muitos, talvez a maioria – que afirmam não haver possibilidade de consenso quanto ao tema, não tanto pelo fato de existirem várias opiniões e propostas sobre a questão debatida, mas por que seria da própria natureza da filosofia essa indefinição quanto aos seus conteúdos e métodos de ensino, já que, para defini-los, seria necessário antes dar o conceito de filosofia, conceito este também sujeito a debates infindáveis sobre qual seja seu teor. No entanto, ao final das séries de discussões, são estabelecidas certas diretrizes curriculares para a disciplina, mesmo havendo quem discorde total ou parcialmente do conteúdo delas. Assim, importa perguntar: se não há acordo quanto às diretrizes curriculares mais adequadas para o ensino de filosofia, como normalmente são definidas as diretrizes curriculares dessa disciplina? Quais os critérios adotados para determinar o encerramento do debate e que, consequentemente, pode-se redigir e publicar um texto com as referidas diretrizes? Seja como for, o fato é que muitas diretrizes, aprovadas em congressos, seminários ou em quaisquer outros encontros que visam discutir as metodologias e os conteúdos mais apropriados para o ensino de filosofia, se tornam oficiais, sendo este mesmo o objetivo principal que motiva a realização de tais encontros, ou seja, ambiciona-se instituir diretrizes curriculares oficiais para o ensino de filosofia.
            Oficial é aquilo que está relacionado à autoridade reconhecida, que é anunciado, ordenado ou proposto por ela; é algo revestido de formalidades, possuidor de caráter solene e que, por todas essas feições características, também é obrigatório. Enfim, oficial é o que está ligado, de alguma maneira, ao governo ou ao estado[3], ao chamado “poder público”, recebendo apoio ou sendo determinado por este.
            Assim, pode-se dizer que diretrizes curriculares oficiais para a disciplina filosofia são regulamentações para o ensino dessa matéria, determinadas por algum órgão ou instituição estatal/governamental através de um ato solene ou formal e que, por isso, possuem caráter obrigatório, já que, geralmente, tal ato é considerado como fruto de um processo democrático, o que legitimaria essas diretrizes.
            Porém, quem são os indivíduos que participam desse chamado “processo democrático” para definição de diretrizes curriculares para o ensino de filosofia que receberão o status de oficiais? Toda a população, todos os interessados na matéria, todos os envolvidos com a disciplina, somente os ditos “especialistas na área”, ou apenas membros do órgão ou instituição estatal/governamental responsável pela elaboração dessas diretrizes? Quem dá a palavra final? É coerente com a atividade filosófica a existência de regras oficiais para a sua prática, ainda que elaboradas “democraticamente”?
            Identificam-se, portanto, muitos problemas resultantes da intenção e da prática de elaborar diretrizes oficiais para o ensino de filosofia. Por terem caráter oficial, elas se impõem sobre tudo o que está sujeito à sua influência, proibindo qualquer prática, docente ou discente, que contrarie suas determinações. Nenhum conteúdo ou metodologia pode, então, ser diferente daqueles estipulados nessas diretrizes. O argumento utilizado para defender a legitimidade do conteúdo e da aplicação dessas diretrizes é aquele que diz que tais diretrizes são resultantes de um processo democrático. Mas, como já foi inquirido, importa saber quem são os indivíduos participantes desse processo. Se toda a população ou somente todos os interessados, ou mesmo só os envolvidos com a disciplina participassem dos debates que visam à elaboração dessas diretrizes, colaborando com ideias e propostas e tendo influencia quanto ao seu conteúdo, poder-se-ia dizer que houve, de alguma forma, um processo democrático. No entanto, todos esses grupos de indivíduos sabem o que é coerente com a filosofia? O “desejo da maioria” – ou “desejo democrático” – legitima qualquer norma quanto à sua validade para o ensino de filosofia? O mesmo vale para “processos democráticos” envolvendo especialistas em filosofia ou unicamente membros da burocracia estatal responsáveis pela elaboração de diretrizes curriculares oficiais para essa disciplina. Em muitos casos, evidentemente, “especialistas” em uma disciplina qualquer e burocratas responsáveis pela elaboração de diretrizes curriculares para essa mesma disciplina são as mesmas pessoas, ou seja, são “especialistas do governo/estado”.
            Todavia, mesmo que a dita “vontade geral” legitimasse o conteúdo das normas de ensino de filosofia quanto à adequação daquelas a esta, dever-se-ia perguntar quem é que decide que se chegou a essa “vontade geral”. Quem identifica a manifestação dessa vontade no decorrer do debate, manifestação essa que marca o consequente fim deste? Não seriam os especialistas ou os integrantes do órgão estatal responsável pela educação aqueles que fariam, de fato, tal identificação? E essa identificação ou mesmo o conteúdo estabelecido oficialmente por esses órgãos para o ensino de filosofia não teriam um viés ideológico, ou uma cosmovisão ou, então, certo conceito de filosofia, justamente por expressarem a possibilidade de se estabelecer um conteúdo e uma metodologia, ambos oficiais, para seu ensino, e já que essa oficialidade, segundo seus defensores, é resultante de procedimentos democráticos e que, por outro lado, muitos filósofos defenderam ideias antidemocráticas?

CONCLUSÃO

            Diante de tudo o que foi exposto, termina-se este texto do mesmo modo que foi iniciado, a saber, com perguntas para reflexão: o ensino de filosofia pode estar sujeito à vontade de uma maioria, ainda que seja uma maioria de “especialistas em filosofia”, sem perder sua natureza filosófica? Pode ser exercido sob diretrizes curriculares oficiais ou nos moldes de uma instituição oficial como a escola ou a universidade sem deixar de ser verdadeiramente filosófico? É possível haver filosofia de fato quando seu ensino é oferecido pelo estado/governo?
            Se as respostas a essas perguntas forem positivas e se forem admitidas como verdadeiras as afirmações acerca das implicações da existência de diretrizes curriculares oficiais para o ensino de filosofia, então, ter-se-ia que admitir também que a filosofia possui natureza político-ideológica, o que possibilitaria sua harmonização com os interesses estatais/governamentais e/ou de grupos políticos, variando suas diretrizes conforme as modas ideológicas e “filosóficas” vigentes. Sendo negativas as respostas, impor-se-ia a necessidade de admitirmos que nossos métodos contemporâneos de ensino da filosofia estão, na verdade, distantes de qualquer prática que possa ser reconhecida como verdadeiramente filosófica, já que as estruturas dos cursos oficiais de filosofia estão profundamente vinculadas a instituições governamentais e a organizações políticas. Desse modo, é mister pensar em outras possibilidades de ensino da filosofia, não sujeitas a normas oficiais – ao estado/governo, portanto – nem às opiniões das massas ou aos desejos dos “especialistas”, sempre desejosos de dar a última palavra quando o assunto é filosofia, embora geralmente eles afirmem que é da essência da filosofia não possuir uma definição absoluta sobre si mesma, expressando, ao agirem assim, evidente contradição.
            Afinal, onde buscar inspiração filosófica, pedagógica e metodológica para o ensino da filosofia? Como conciliar essa inspiração com a experiência real de colocá-la em prática através do ensino? De fato, não é possível a educação filosófica sem o conhecimento do que seja Filosofia. Não necessariamente um conhecimento expresso através de uma proposição ou sentença, mas certamente um saber intuitivo e existencial, resultante da experiência real de imersão na tradição filosófica iniciada na Grécia Antiga pelos fundadores da Filosofia. Estes, ainda que não tenham encontrado as soluções para todos os problemas filosóficos e, mesmo que, nas soluções que apresentaram, tenham cometido erros, sem dúvida sabiam o que é Filosofia e como ensiná-la – afinal de contas, são seus fundadores –, e foi exatamente sua prática pedagógica que possibilitou o início da expansão da postura e técnica filosóficas – alcançando outras pessoas e chegando a outros lugares do mundo – e a existência da referida tradição filosófica, sem as quais não se daria, entre nós, nenhuma importância aos problemas aqui expostos; talvez nem mesmo se fizesse menção a eles. Por isso, a inspiração e a influência dos antigos filósofos gregos, buscadas antes de dar o merecido valor aos filósofos posteriores a eles, impõem-se como condição indispensável para qualquer estudo realmente sério a respeito da pedagogia filosófica e da Filosofia enquanto genuína educação.





[1] Isso não significa que quem diz “sim” sobre algo também esteja dizendo “não” sobre este mesmo algo, mas, ao contrário, está negando este “não”; e quem diz “não” está dizendo “sim” para a negação. Além disso, qualquer afirmação (ou negação) também pode ser entendida como resposta a alguma pergunta originária implícita.
[2] Muitas vezes, o próprio autor de alguma pergunta ou de uma afirmação/negação não tem consciência dos significados implícitos do que diz, não percebe o que está afirmando ou negando ao fazer seu questionamento ou ao articular uma sentença afirmativa ou negativa. Isso expressa outro patamar de significado presente em uma simples pergunta ou sentença, mas de forma oculta, a saber, o significado relacionado à subjetividade do que fala, se este tem consciência ou não dos sentidos mais profundos da sentença que articula ou da pergunta que faz. Neste último caso – quando o questionante não percebe o significado implícito de seu questionamento – a pergunta expressa uma ignorância maior do que a anunciada literalmente na questão formulada, ou seja, além de não saber a resposta à sua pergunta, o questionante também desconhece o fundamento de sua interrogação, o que está por trás dela. Assim sendo, fica evidente que até mesmo uma simples pergunta exige prévia reflexão antes de ser formulada - isso se aquele que pergunta tem verdadeira intenção de compreender a matéria em questão - já que não se limita a ser uma interrogação somente, mas sempre diz algo, negativa e afirmativamente. Por outro lado, quando o questionante tem consciência dos significados mais ocultos de sua pergunta, ou age com honestidade e sinceridade e deixa claro para seu interlocutor o que pretende com sua questão, expondo, da maneira mais clara possível, suas convicções e crenças, seus pressupostos, o solo onde está alicerçado; ou, ao contrário, tem uma atitude de indiferença com relação aos sentidos mais profundos de sua indagação, indiferença essa no que se refere a revelá-los ao seu interlocutor, deixando que este venha a descobri-los por si mesmo se quiser e tiver condições para tal, embora isso não signifique que, necessariamente, o interrogante em questão esteja interessado nesse desvendamento por parte de seu interlocutor, já que, em muitos casos, o que pergunta procura esconder de seu ouvinte os pressupostos sustentadores de sua interrogação, no intuito de conduzi-lo para dentro dos contornos conceituais e estruturais de sua cosmovisão ou ideologia, ou seja, para os limites das ideias contidas em sua pergunta. Ainda nesse mesmo caso, se porventura o ouvinte – ou interrogado – responda à pergunta sem refletir sobre seus significados implícitos, estará admitindo, automaticamente, as ideias contidas de forma subentendida nessa pergunta que, por isso mesmo, estabelece os limites e as possibilidades de resposta para o campo restrito de seus pressupostos, sendo o respondente iludido pela desonestidade intelectual do questionante que, ao fazer sua pergunta, visa uma aparência de humildade, imparcialidade e ignorância, mas a verdade é que pretende convencer – ou simplesmente “vencer’’ o debate – pela dissimulação, dando como verdadeiras certas pressuposições impostas sutilmente através de uma “inocente” pergunta.
[3] Embora a norma culta recomende a grafia “Estado”, com “e” maiúscula, o autor prefere utilizar “estado”, com “e” minúsculo. A mesma postura é adotada pelo Instituto Ludwig von Mises e pela revista Veja, a qual argumenta que “se povo, sociedade, indivíduo, pessoa, liberdade, instituições, democracia, justiça são escritas com minúscula, não há razão para escrever estado com maiúscula”. Este autor concorda, apesar de haver a justificativa de que o uso de “e” maiúsculo tenha o objetivo de distinguir a acepção em questão daquela de “condição” ou “situação”, o que não convence, pois o contexto permite fazer a diferenciação dos significados, não prejudicando a compreensão. O autor apoia o entendimento, defendido tanto pelo Instituto Ludwig von Mises quanto por Veja, de que escrever “estado” é uma contribuição, ainda que mínima, para que seja lançada por terra a noção anômala de que o estado é um ente superior aos indivíduos.

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