Por José
Junio Souza da Costa
O ensino de filosofia pode estar sujeito à vontade de uma maioria, ainda que seja uma maioria de “especialistas em filosofia”, sem perder sua natureza filosófica?
RESUMO
Quais
devem ser as diretrizes curriculares oficiais da disciplina filosofia? Qual
deve ser seu modo de funcionamento, sua metodologia de ensino, seus princípios
orientadores, seus objetivos, sua estrutura curricular, seus conteúdos
estruturantes e específicos? O que essas perguntas dizem se examinadas fora dos
limites de sua literalidade? O ensino de filosofia pode ser exercido sob
diretrizes curriculares oficiais ou nos moldes de uma instituição oficial como
a escola ou a universidade sem deixar de ser verdadeiramente filosófico? Onde
buscar inspiração filosófica, pedagógica e metodológica para o ensino da
filosofia? A inspiração e a influência dos antigos filósofos gregos, buscadas antes
de dar o merecido valor aos filósofos posteriores a eles, impõem-se como
condição indispensável para qualquer estudo realmente sério a respeito da
pedagogia filosófica e da Filosofia enquanto genuína educação.
ABSTRACT
What
should be the official curriculum guidelines of the discipline philosophy? What
should be its mode of functioning, teaching methodology, guiding principles,
objectives, curricular structure, contents, and structuring and specific
content? What do these questions tell if examined outside the bounds of its
literality? The teaching of philosophy can be exercised under official
curriculum guidelines or in the molds of an official institution like school or
university without ceasing to be truly philosophical? Where seek philosophical,
pedagogical, and methodological inspiration to the teaching of philosophy?
The inspiration and influence of ancient Greek philosophers, fetched before
giving the deserved value to the later philosophers them, impose themselves as
indispensable condition for any do serious study about the philosophical
pedagogy and philosophy while education genuine.
INTRODUÇÃO
Qualquer
pergunta tem em si, de forma subentendida, uma ou mais afirmações que servem de
fundamento para ela, fundamento este sem o qual não poderia ser feita,
possibilitando a sua conexão com a realidade concreta ou com uma hipótese
acerca do real. Essas afirmações se apresentam não somente no próprio enunciado
da pergunta, mas em outros níveis de significação que, obviamente, não aparecem
na literalidade do enunciado, também carregando em si, necessariamente e em
outro grau, certas negações que, por sua vez, também expressam um sentido
diferente daquele encontrado no plano literal de suas manifestações negativas,
ou seja, além de negarem determinadas coisas, igualmente afirmam outras que, é
claro, não se opõem nem a seu conteúdo inicial negativo, nem ao teor afirmativo
implícito na pergunta em questão. Isso tudo também vale para quaisquer outras
afirmações e negações, mesmo que não procedentes de alguma pergunta – embora
seja possível enxergar qualquer afirmação ou negação como possível resposta a
uma pergunta hipotética. Em outras palavras, quem faz perguntas, também está
afirmando algumas coisas e negando outras; quem afirma, também está negando; e
quem nega, também está afirmando.[1]
Assim,
antes de responder a uma pergunta, é necessário primeiro entendê-la
corretamente e, para isso, é preciso identificar seus níveis de significado –
pelo menos (é obvio) os que forem possíveis de ser reconhecidos – e, com isso,
perceber o que essa pergunta está afirmando no momento mesmo em que é feita e,
consequente e necessariamente, o que está negando. O mesmo vale para as
afirmações e negações no que lhes diz respeito.[2]
Nos
debates acerca do tema “filosofia no ensino médio” tem sido comum a enunciação
das seguintes perguntas: Quais devem ser – para o ensino médio – as
diretrizes curriculares oficiais da disciplina filosofia? Qual deve ser seu
modo de funcionamento, sua metodologia de ensino, seus princípios orientadores,
seus objetivos, sua estrutura curricular, seus conteúdos estruturantes e
específicos? É verdade que, por vezes, essas questões aparecem articuladas
de maneira diversa, com a utilização de outros termos e expressões, mas
possuindo o mesmo significado, ou seja, expressando as mesmas dúvidas. O que
essas perguntas dizem se examinadas fora dos limites de sua literalidade? O que
há além de seu enunciado interrogativo?
A FILOSOFIA E O ENSINO OFICIAL
Em
primeiro lugar, para perguntar “quais devem ser – para o ensino médio – as
diretrizes curriculares oficiais da disciplina filosofia” é preciso –
obviamente – admitir: a existência de um nível de instrução chamado ensino médio; a presença da disciplina filosofia nesse ensino; que há a
possibilidade de enxergar a filosofia como disciplina
escolar/acadêmica; que devam existir diretrizes
curriculares para essa disciplina; que essas diretrizes tenham caráter oficial. Quanto à segunda pergunta –
que, na verdade, não é somente uma, pois contêm em sua extensão várias
indagações que, por outro lado, se referem a temas similares e convergentes –
para que seja feita é necessário aceitar – evidentemente – que deve haver, para
a disciplina filosofia no ensino médio: um
modo de funcionamento; uma metodologia de ensino; princípios orientadores;
objetivos; uma estrutura curricular; conteúdos estruturantes e específicos.
Assim, dessas questões pode ser extraída a seguinte declaração: deve haver – para o ensino médio –
diretrizes curriculares oficias da disciplina filosofia, a qual deve ter um
modo de funcionamento, uma metodologia de ensino, princípios orientadores,
objetivos, uma estrutura curricular e conteúdos estruturantes e específicos.
Portanto, antes de tentar encontrar as respostas adequadas às perguntas acima,
é preciso discutir primeiro os pressupostos que servem de base para tais
perguntas. Procurar as respostas a essas perguntas sem uma reflexão séria sobre
os fundamentos destas, sobre as ideias que possibilitam a articulação das
mesmas, significa aceitar a legitimidade desses fundamentos sem, ao menos, ter
pensado na possibilidade de sua impugnação, admitindo-os a priori. Dito isso, deve-se buscar maior compreensão, analisando
cada um desses fundamentos.
Ensino
Médio
Pensar
em um ensino “médio” implica, necessariamente, aceitar que o mesmo existe
entre, pelo menos, mais dois níveis de ensino, um inferior ou básico e outro
superior ou avançado, e que isso transmite a ideia de um processo gradativo.
Não fosse dessa forma, também não haveria motivo para chamá-lo “médio”. Sendo
um ensino “médio”, obviamente não poderia ser simples ou basilar, mas também
não teria o direito de ser sinônimo de um ensino aprofundado ou mais minucioso.
Nisso tudo está escondida a concepção de que o ensino precisa ser ministrado em
etapas, gradualmente ou, em outras palavras, de maneira progressiva, de acordo
– possivelmente – com o nível de conhecimentos daquele que está sendo ensinado,
isto se o fundamento da divisão básico/médio/superior levar em conta que o
estudante, para receber ensino médio, necessite já ter recebido e assimilado
ensino básico e que este mesmo estudante, para auferir ensino superior, careça
ter sido submetido a ensino médio, também com a devida assimilação deste.
Filosofia
no Ensino Médio
Se
for admitido o que foi dito a respeito do ensino médio, a disciplina filosofia,
nesse nível de ensino, deverá ser ministrada em grau equivalente, ou seja, não
poderá ser ensinada de forma básica, mas, também, não de maneira aprofundada.
Contudo, nesse caso, mantendo os mesmos pressupostos do parágrafo anterior, o
estudante de filosofia no ensino médio necessitaria já ter recebido ensino
básico de filosofia – pelo menos se for aceito que os conteúdos trabalhados em
todas as disciplinas do ensino médio tenham forçosamente que ser conteúdos
“médios”, ou seja, entre o básico e o superior, como já foi dito. Com isso,
haveria a necessidade de se ter filosofia no ensino básico, como preparação
para o nível seguinte. Porém, pode ser dito que os conteúdos básicos de
filosofia estão presentes em outras disciplinas e que, por isso, bastaria haver
a disciplina filosofia a partir do ensino médio. No entanto, esse argumento
também poderia ser usado contra a presença dessa disciplina no ensino médio,
uma vez que seria possível afirmar que outras disciplinas constituem as bases
para o aprendizado da filosofia, sendo admitida como disciplina autônoma apenas
no nível superior de ensino. Surgem, então, outras questões: a filosofia, considerada como disciplina
autônoma, deve estar contida: em todos os níveis de ensino, somente a partir do
nível médio ou apenas no nível superior? É possível ensinar filosofia nos modos
básico, médio e superior ou só há possibilidade de ensiná-la por um modo único,
original?
Aceitar a presença da filosofia como disciplina no
ensino básico, sendo este dedicado às crianças, significa acreditar que é
possível ensinar filosofia – ou a prática filosófica – para pessoas ainda na
infância e que não é exigido, para o aprendizado filosófico, possuir a
experiência intelectual, cognitiva e de vida que um adulto pode possuir. Isto
também pode ser afirmado com relação à filosofia no ensino médio, voltado
geralmente para adolescentes, tendo-se que crer na possibilidade de se ensinar
filosofia para indivíduos dessa faixa etária. Por conseguinte, defender o
ensino de filosofia apenas no ensino superior, expressa a convicção de que tal
ensino filosófico deve ser direcionado somente a adultos ou a pessoas com certa
experiência, tanto existencial quanto no que diz respeito ao conhecimento.
Por
outro lado, admitindo-se três modos de ensino da filosofia (básico, médio e
superior), admitir-se-ia, também, que a filosofia é ensinável de maneira
gradual, conforme a faixa etária ou o patamar existencial/intelectual do aluno.
Então, restaria perguntar o que significa ensinar filosofia nos modos básico,
médio e superior, isto é, como se dá cada um desses modos de ensino filosófico,
caso haja possibilidade de praticá-los. Além disso, sem abandonar a ideia dos
três níveis de ensino da filosofia e aceitando que este ensino pode contribuir
para que seja formado um filósofo naquele que recebe tal ensino, poderia ser
dito que em qualquer desses níveis há possibilidade de se manifestar um
filósofo ou somente depois de o indivíduo atingir ou concluir o nível superior,
sendo os níveis anteriores apenas etapas da formação desse possível filósofo?
Se uma criança e um adolescente podem aprender filosofia ainda nessas
respectivas fases da vida, podem também ser filósofos nessas mesmas fases? As
respostas a essas perguntas implicam uma concepção do que seja filosofia e, se
for negativa a resposta à última, ter-se-ia como implicação a tese que afirma
ser possível aprender filosofia sem ser filósofo. Como explicar que crianças e
adolescentes podem aprender filosofia e não podem, também, serem filósofos –
tudo isso, respectivamente, ainda na infância e na adolescência? A não ser que
se diga que tal tese só se confirma nessas fases da vida, não valendo,
portanto, para a fase adulta. Com isso, teria que ser dito o porquê de crianças
e adolescentes não poderem ser filósofos e, provavelmente, se voltaria ao
argumento da falta de experiência que, sendo admitido, implicaria dizer que é
possível aprender filosofia sem possuir essa experiência exigida acima.
Ainda
pode haver o entendimento de que o aprendizado de outras disciplinas, nos
ensinos básico e médio, seria parte de um processo necessário para o
conhecimento filosófico no nível superior e o ensino de outras disciplinas
corresponderia, conforme o caso em questão, aos ensinos básico e médio de
filosofia; as outras disciplinas não estariam fora do âmbito filosófico; ao
contrário, seriam parte fundamental no processo de aquisição de um saber
superior que culminaria no conhecimento filosófico, caso o estudante optasse
por avançar até esse nível, estando inclinado para a filosofia. Nessa
concepção, a filosofia seria considerada o saber superior por excelência, por
buscar unidade e conexão entre todos os conhecimentos humanos e em relação à
realidade, e as outras disciplinas do nível superior de ensino estariam
imediatamente abaixo da filosofia, porém, sendo ministradas de maneira
avançada, aprofundada, enfim, verdadeiramente em uma dimensão superior de
ensino e aprendizado, possibilitando, em seu conjunto, uma compreensão mais rigorosa
e num grau de confiabilidade maior a respeito do real como um todo e em cada
uma de suas partes constituintes. Logo, nessas condições, a filosofia ocuparia
uma posição especial no conjunto da cultura e do saber superiores.
Filosofia
como Disciplina Escolar/Acadêmica
A
análise deste tópico exige que seja determinado o que se pretende dizer por
disciplina. O próprio enunciado do tópico em questão já estabelece uma
delimitação: a disciplina aqui referida diz respeito àquela do âmbito
escolar/acadêmico – e não como regra ou disposição rigorosa do espírito para
alguma atividade, ou ainda como obediência a alguma autoridade visando à
manutenção de certa ordem – pois é no sentido escolar/acadêmico que se fala,
nos debates supramencionados, da presença da filosofia tanto no ensino médio
como no superior.
Disciplina,
com o significado aqui abordado, é um ramo do conhecimento, uma matéria de
ensino ou mesmo um conjunto de conhecimentos professados em cada cadeira de uma
instituição escolar. Assim, cabe agora perguntar: é possível que a filosofia
possa ser considerada uma disciplina – conforme esta foi definida aqui? A
filosofia é um ramo do conhecimento, uma matéria de ensino, um conjunto de
conhecimentos que possam ser transmitidos em uma instituição escolar, assim
como ocorre com outras disciplinas? Sendo um ramo do conhecimento, de que tipo
pode ser definido: como ramo das ciências exatas, humanas, naturais, entre
outras, ou não pode ser enquadrada em nenhum dos ramos conhecidos, sendo
especialmente original e singular? Pode ser matéria de ensino, isto é, pode a
filosofia ser ensinada? Se sim, de que maneira? Se for um conjunto de
conhecimentos, qual o seu conteúdo?
Portanto,
afirmar a presença da filosofia como disciplina escolar/acadêmica em qualquer
nível de ensino significa admitir também que ela é um tipo de conhecimento
distinto dos outros e que, por isso, possui determinados conteúdos que podem
ser ensinados em um contexto escolar. Resta saber de que maneira tais conteúdos
poderão ser transmitidos e se, além de se diferenciar das outras disciplinas
quanto aos conteúdos abordados, a filosofia também é distinta quanto ao modo de
ensino desses conteúdos. Mas, é evidente que não há consenso quanto àquilo que
deve ser ensinado em um curso de filosofia, ou seja, quanto aos conteúdos a
serem ministrados, nem acerca dos métodos que precisam ser usados para que se
tenha êxito nesse ensino. Deste modo, antes de concordar com a existência da
filosofia como disciplina no ensino médio é preciso anuir com a possibilidade
de que ela possa estar configurada dessa forma (como disciplina), tendo-se que
estabelecer, em seguida, quais os conteúdos que serão abordados e quais os
métodos que serão utilizados para tal propósito. É a partir dessa problemática
que surge – nos debates citados – a pergunta acerca das diretrizes curriculares
para a disciplina filosofia.
Diretrizes
Curriculares para a Disciplina Filosofia
Assim
como no tópico anterior, primeiro é preciso delimitar do que trata o assunto em
questão, ou seja, é indispensável saber o que é uma diretriz curricular antes
de dar sequencia a esta reflexão.
Diretriz
é uma linha reguladora de um caminho ou estrada, de um plano, um negócio, um
procedimento; é uma diretiva, uma orientação, um guia, um rumo, etc.
Curricular, por sua vez, é relativo a currículo, que significa curso ou
carreira. Geralmente a palavra curricular também é usada para se referir às
matérias constantes de um curso, sendo este o sentido sobre o qual se volta
esta reflexão. Assim, nos moldes propostos nos debates sobre o ensino de
filosofia, as diretrizes curriculares seriam, para esta disciplina, um conjunto
de direcionamentos referentes ao modo de funcionamento, à metodologia de
ensino, aos princípios orientadores, aos objetivos, à estrutura curricular, aos
conteúdos estruturantes e específicos, dentre outros de valor similar.
Porém,
não há acordo quanto à identificação de quais sejam as diretrizes curriculares
mais adequadas à filosofia e ao seu ensino. É possível que haja quem defenda a
não possibilidade de se estabelecer diretrizes curriculares em sentido mais
amplo, coletivo, podendo apenas existir em nível individual, ou seja, cada
professor ou filósofo é que determinaria as diretrizes para a sua prática de
ensinar filosofia. Em outras palavras, estes últimos seriam contrários ao
estabelecimento dessas diretrizes curriculares coletivas e, consequentemente,
também se posicionariam contra o ensino de filosofia num âmbito institucional,
visto que, neste âmbito, o ensino de filosofia está sujeito, quanto ao conteúdo
e à metodologia, a direcionamentos de cunho oficial, aos quais não se pode
deixar de seguir.
Caráter
Oficial das Diretrizes Curriculares para o Ensino de Filosofia
Busca-se, nos debates acerca do ensino de filosofia,
chegar a um consenso sobre quais devem ser o teor e os métodos referentes a
esse ensino, ou seja, deseja-se alcançar um acordo quanto à delimitação das
melhores ou mais adequadas diretrizes curriculares para o magistério no campo
da filosofia. Porém, nesses debates, tem-se como objetivo não só estabelecer
quais sejam tais diretrizes, mas também que elas tenham caráter oficial.
Como
já foi dito, entre filósofos, professores de filosofia, especialistas e
estudantes, não há unanimidade quanto à definição das diretrizes curriculares
para o ensino de filosofia. A realização de muitos debates sobre o assunto não
tem conseguido eliminar as divergências a respeito do mesmo. Há inclusive
aqueles – e são muitos, talvez a maioria – que afirmam não haver possibilidade
de consenso quanto ao tema, não tanto pelo fato de existirem várias opiniões e
propostas sobre a questão debatida, mas por que seria da própria natureza da
filosofia essa indefinição quanto aos seus conteúdos e métodos de ensino, já
que, para defini-los, seria necessário antes dar o conceito de filosofia, conceito este também
sujeito a debates infindáveis sobre qual seja seu teor. No entanto, ao final
das séries de discussões, são estabelecidas certas diretrizes curriculares para
a disciplina, mesmo havendo quem discorde total ou parcialmente do conteúdo
delas. Assim, importa perguntar: se não
há acordo quanto às diretrizes curriculares mais adequadas para o ensino de
filosofia, como normalmente são definidas as diretrizes curriculares dessa
disciplina? Quais os critérios adotados para determinar o encerramento do
debate e que, consequentemente, pode-se redigir e publicar um texto com as
referidas diretrizes? Seja como for, o fato é que muitas diretrizes,
aprovadas em congressos, seminários ou em quaisquer outros encontros que visam
discutir as metodologias e os conteúdos mais apropriados para o ensino de
filosofia, se tornam oficiais, sendo este mesmo o objetivo principal que motiva
a realização de tais encontros, ou seja, ambiciona-se instituir diretrizes
curriculares oficiais para o ensino
de filosofia.
Oficial
é aquilo que está relacionado à autoridade reconhecida, que é anunciado,
ordenado ou proposto por ela; é algo revestido de formalidades, possuidor de
caráter solene e que, por todas essas feições características, também é
obrigatório. Enfim, oficial é o que está ligado, de alguma maneira, ao governo
ou ao estado[3],
ao chamado “poder público”, recebendo apoio ou sendo determinado por este.
Assim,
pode-se dizer que diretrizes curriculares oficiais para a disciplina filosofia
são regulamentações para o ensino
dessa matéria, determinadas por algum órgão ou instituição
estatal/governamental através de um ato solene ou formal e que, por isso,
possuem caráter obrigatório, já que, geralmente, tal ato é considerado como
fruto de um processo democrático, o que legitimaria essas diretrizes.
Porém,
quem são os indivíduos que participam desse chamado “processo democrático” para
definição de diretrizes curriculares para o ensino de filosofia que receberão o
status de oficiais? Toda a população,
todos os interessados na matéria, todos os envolvidos com a disciplina, somente
os ditos “especialistas na área”, ou apenas membros do órgão ou instituição
estatal/governamental responsável pela elaboração dessas diretrizes? Quem dá a
palavra final? É coerente com a atividade filosófica a existência de regras
oficiais para a sua prática, ainda que elaboradas “democraticamente”?
Identificam-se,
portanto, muitos problemas resultantes da intenção e da prática de elaborar
diretrizes oficiais para o ensino de filosofia. Por terem caráter oficial, elas
se impõem sobre tudo o que está sujeito à sua influência, proibindo qualquer
prática, docente ou discente, que contrarie suas determinações. Nenhum conteúdo
ou metodologia pode, então, ser diferente daqueles estipulados nessas
diretrizes. O argumento utilizado para defender a legitimidade do conteúdo e da
aplicação dessas diretrizes é aquele que diz que tais diretrizes são
resultantes de um processo democrático. Mas, como já foi inquirido, importa
saber quem são os indivíduos participantes desse processo. Se toda a população
ou somente todos os interessados, ou mesmo só os envolvidos com a disciplina
participassem dos debates que visam à elaboração dessas diretrizes, colaborando
com ideias e propostas e tendo influencia quanto ao seu conteúdo, poder-se-ia
dizer que houve, de alguma forma, um processo democrático. No entanto, todos
esses grupos de indivíduos sabem o que é coerente com a filosofia? O “desejo da
maioria” – ou “desejo democrático” – legitima qualquer norma quanto à sua
validade para o ensino de filosofia? O mesmo vale para “processos democráticos”
envolvendo especialistas em filosofia ou unicamente membros da burocracia
estatal responsáveis pela elaboração de diretrizes curriculares oficiais para
essa disciplina. Em muitos casos, evidentemente, “especialistas” em uma
disciplina qualquer e burocratas responsáveis pela elaboração de diretrizes
curriculares para essa mesma disciplina são as mesmas pessoas, ou seja, são
“especialistas do governo/estado”.
Todavia,
mesmo que a dita “vontade geral” legitimasse o conteúdo das normas de ensino de
filosofia quanto à adequação daquelas a esta, dever-se-ia perguntar quem é que
decide que se chegou a essa “vontade geral”. Quem identifica a manifestação
dessa vontade no decorrer do debate, manifestação essa que marca o consequente
fim deste? Não seriam os especialistas ou os integrantes do órgão estatal
responsável pela educação aqueles que fariam, de fato, tal identificação? E
essa identificação ou mesmo o conteúdo estabelecido oficialmente por esses
órgãos para o ensino de filosofia não teriam um viés ideológico, ou uma
cosmovisão ou, então, certo conceito de filosofia, justamente por expressarem a
possibilidade de se estabelecer um conteúdo e uma metodologia, ambos oficiais,
para seu ensino, e já que essa oficialidade, segundo seus defensores, é
resultante de procedimentos democráticos e que, por outro lado, muitos
filósofos defenderam ideias antidemocráticas?
CONCLUSÃO
Diante
de tudo o que foi exposto, termina-se este texto do mesmo modo que foi
iniciado, a saber, com perguntas para reflexão: o ensino de filosofia pode estar sujeito à vontade de uma maioria,
ainda que seja uma maioria de “especialistas em filosofia”, sem perder sua
natureza filosófica? Pode ser exercido sob diretrizes curriculares oficiais ou
nos moldes de uma instituição oficial como a escola ou a universidade sem
deixar de ser verdadeiramente filosófico? É possível haver filosofia de fato
quando seu ensino é oferecido pelo estado/governo?
Se as respostas a essas perguntas forem positivas e
se forem admitidas como verdadeiras as afirmações acerca das implicações da
existência de diretrizes curriculares oficiais para o ensino de filosofia,
então, ter-se-ia que admitir também que a filosofia possui natureza
político-ideológica, o que possibilitaria sua harmonização com os interesses
estatais/governamentais e/ou de grupos políticos, variando suas diretrizes
conforme as modas ideológicas e “filosóficas” vigentes. Sendo negativas as
respostas, impor-se-ia a necessidade de admitirmos que nossos métodos
contemporâneos de ensino da filosofia estão, na verdade, distantes de qualquer
prática que possa ser reconhecida como verdadeiramente filosófica, já que as
estruturas dos cursos oficiais de filosofia estão profundamente vinculadas a
instituições governamentais e a organizações políticas. Desse modo, é mister
pensar em outras possibilidades de ensino da filosofia, não sujeitas a normas
oficiais – ao estado/governo, portanto – nem às opiniões das massas ou aos
desejos dos “especialistas”, sempre desejosos de dar a última palavra quando o
assunto é filosofia, embora geralmente eles afirmem que é da essência da
filosofia não possuir uma definição absoluta sobre si mesma, expressando, ao
agirem assim, evidente contradição.
Afinal,
onde buscar inspiração filosófica, pedagógica e metodológica para o ensino da
filosofia? Como conciliar essa inspiração com a experiência real de colocá-la
em prática através do ensino? De fato, não é possível a educação filosófica sem
o conhecimento do que seja Filosofia. Não necessariamente um conhecimento
expresso através de uma proposição ou sentença, mas certamente um saber
intuitivo e existencial, resultante da experiência real de imersão na tradição
filosófica iniciada na Grécia Antiga pelos fundadores da Filosofia. Estes,
ainda que não tenham encontrado as soluções para todos os problemas filosóficos
e, mesmo que, nas soluções que apresentaram, tenham cometido erros, sem dúvida
sabiam o que é Filosofia e como ensiná-la – afinal de contas, são seus
fundadores –, e foi exatamente sua prática pedagógica que possibilitou o início
da expansão da postura e técnica filosóficas – alcançando outras pessoas e
chegando a outros lugares do mundo – e a existência da referida tradição filosófica,
sem as quais não se daria, entre nós, nenhuma importância aos problemas aqui
expostos; talvez nem mesmo se fizesse menção a eles. Por isso, a inspiração e a
influência dos antigos filósofos gregos, buscadas antes de dar o merecido valor
aos filósofos posteriores a eles, impõem-se como condição indispensável para
qualquer estudo realmente sério a respeito da pedagogia filosófica e da
Filosofia enquanto genuína educação.
[1] Isso
não significa que quem diz “sim” sobre algo também esteja dizendo “não” sobre
este mesmo algo, mas, ao contrário, está negando
este “não”; e quem diz “não” está dizendo “sim” para a negação. Além disso,
qualquer afirmação (ou negação) também pode ser entendida como resposta a
alguma pergunta originária implícita.
[2] Muitas
vezes, o próprio autor de alguma pergunta ou de uma afirmação/negação não tem
consciência dos significados implícitos do que diz, não percebe o que está
afirmando ou negando ao fazer seu questionamento ou ao articular uma sentença
afirmativa ou negativa. Isso expressa outro patamar de significado presente em
uma simples pergunta ou sentença, mas de forma oculta, a saber, o significado
relacionado à subjetividade do que fala, se este tem consciência ou não dos
sentidos mais profundos da sentença que articula ou da pergunta que faz. Neste
último caso – quando o questionante não percebe o significado implícito de seu
questionamento – a pergunta expressa uma ignorância maior do que a anunciada
literalmente na questão formulada, ou seja, além de não saber a resposta à sua
pergunta, o questionante também desconhece o fundamento de sua interrogação, o
que está por trás dela. Assim sendo, fica evidente que até mesmo uma simples
pergunta exige prévia reflexão antes de ser formulada - isso se aquele que
pergunta tem verdadeira intenção de compreender a matéria em questão - já que
não se limita a ser uma interrogação somente, mas sempre diz algo, negativa e
afirmativamente. Por outro lado, quando o questionante tem consciência dos
significados mais ocultos de sua pergunta, ou age com honestidade e sinceridade
e deixa claro para seu interlocutor o que pretende com sua questão, expondo, da
maneira mais clara possível, suas convicções e crenças, seus pressupostos, o
solo onde está alicerçado; ou, ao contrário, tem uma atitude de indiferença com
relação aos sentidos mais profundos de sua indagação, indiferença essa no que
se refere a revelá-los ao seu interlocutor, deixando que este venha a
descobri-los por si mesmo se quiser e tiver condições para tal, embora isso não
signifique que, necessariamente, o interrogante em questão esteja interessado
nesse desvendamento por parte de seu interlocutor, já que, em muitos casos, o
que pergunta procura esconder de seu ouvinte os pressupostos sustentadores de
sua interrogação, no intuito de conduzi-lo para dentro dos contornos
conceituais e estruturais de sua cosmovisão ou ideologia, ou seja, para os
limites das ideias contidas em sua pergunta. Ainda nesse mesmo caso, se
porventura o ouvinte – ou interrogado – responda à pergunta sem refletir sobre
seus significados implícitos, estará admitindo, automaticamente, as ideias
contidas de forma subentendida nessa pergunta que, por isso mesmo, estabelece
os limites e as possibilidades de resposta para o campo restrito de seus
pressupostos, sendo o respondente iludido pela desonestidade intelectual do
questionante que, ao fazer sua pergunta, visa uma aparência de humildade,
imparcialidade e ignorância, mas a verdade é que pretende convencer – ou
simplesmente “vencer’’ o debate – pela dissimulação, dando como verdadeiras
certas pressuposições impostas sutilmente através de uma “inocente” pergunta.
[3] Embora
a norma culta recomende a grafia “Estado”, com “e” maiúscula, o autor prefere
utilizar “estado”, com “e” minúsculo. A mesma postura é adotada pelo Instituto
Ludwig von Mises e pela revista Veja, a qual argumenta que “se povo, sociedade,
indivíduo, pessoa, liberdade, instituições, democracia, justiça são escritas
com minúscula, não há razão para escrever estado com maiúscula”. Este autor
concorda, apesar de haver a justificativa de que o uso de “e” maiúsculo tenha o
objetivo de distinguir a acepção em questão daquela de “condição” ou
“situação”, o que não convence, pois o contexto permite fazer a diferenciação
dos significados, não prejudicando a compreensão. O autor apoia o entendimento,
defendido tanto pelo Instituto Ludwig von Mises quanto por Veja, de que
escrever “estado” é uma contribuição, ainda que mínima, para que seja lançada
por terra a noção anômala de que o estado é um ente superior aos indivíduos.
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