Enquanto o autêntico direito de
propriedade – a propriedade natural de bens físicos – vai dia a dia se
tornando uma quimera, o discutível e fictício direito de propriedade autoral
vai ganhando um status de super-propriedade.
Por Klauber Cristofen Pires
A notícia veiculada pelo jornal O Globo
de que o Ecad notificou
o blog Caligraffiti a pagar direitos autorais simplesmente por
hospedar vídeos do You Tube merece uma reflexão.
Trata-se de um blog particular, que
embora desfrute de uma razoável visitação, não possui fins
lucrativos. De acordo com a matéria, seus donos foram cobrados em R$
352,59 mensais por terem sido enquadrados na prática de “webcasting”
– transmissão de programas originários da própria internet. Há
ainda outras categorias, até mesmo ao cúmulo do absurdo de taxarem
um mero fundo musical.
O Ecad é uma instituição privada com
poderes delegados por lei, o que a coloca em um status equivalente ao
de uma autarquia, e reúne nove associações ligadas à defesa dos
direitos autoriais: Abramus
(Associação Brasileira de Música e Artes), UBC
(União Brasileira de Compositores), Socinpro
(Sociedade Brasileira de Administração e Proteção de Direitos
Intelectuais), Amar
(Associação de Músicos Arranjadores e Regentes), Sbacem
(Sociedade Brasileira de Autores, Compositores e
Escritores de Música), Sicam
(Sociedade Independente de Compositores e Autores Musicais), Sadembra
(Sociedade Administradora Direitos e Execução Musical BR), Assim
(Associação de Intérpretes e Músicos), e Abrac
(Associação Brasileira de Autores, Compositores e Intérpretes).
Como método de funcionamento, o Ecad
efetua a cobrança de valores por ele estipulados de rádios e TV's,
restaurantes, bares, shows e festas, assim como até mesmo em hotéis
e consultórios médicos, valores esses que em tese são
redistribuídos aos compositores e músicos associados conforme um
questionável sistema de proporção por amostragem.
Como já escrevi a respeito, tal método
de funcionamento destoa um bom tanto das práticas comuns esperáveis
em um livre mercado, porque desconhece o valor do preço e não
remunera os artistas de forma objetiva. Direito de propriedade
pressupõe preço: o preço do cantor A é diferente do preço do
cantor B. Direito de propriedade pressupõe um elo direto entre o
dono e a coisa: logo, o cantor A deveria receber (o seu preço) pela
música A. No entanto, cada artista recebe um valor estipulado pelo
órgão, de acordo com uma estimativa. Não tem sido por outra razão
que abundam queixas de vários dos seus associados.
Tais dificuldades, até certo ponto
previsíveis, conduzem-nos ao questionamento sobre a legitimidade da
propriedade intelectual ou autoral. Considerando que o Ecad tem
cobrado até mesmo de quem instala um rádio ou TV em seu
estabelecimento – mesmo que estes próprios já lhe paguem os
direitos autorais – vamos imaginar um extremo no qual um táxi ou
mesmo um carro particular sintonize um canal de rádio, para agrado
não só do motorista, mas também dos passageiros! Ou, ainda mais,
vamos imaginar as festas particulares, onde são tocados os discos
dos cantores preferidos. Que tal cobrar direitos autorais do sujeito
que assobia uma música dentro de um ônibus lotado?
Há um outro fato bem interessante,
ligado ao direito de propriedade de desenho industrial. Quando estes
tipos derivados de direito de propriedade ainda não eram objeto de
tanto preciosismo, os carros de antigamente, aqueles desenhados à
mão e moldados em argila (clay), eram bastante diferentes uns dos
outros. Mesmo num mercado ridiculamente fechado como era o Brasil,
podíamos constatar grandes diferenças entre os modelos: um Opala
era muito diferente de um Maverick, que era muito diferente de um
Dodge Dart, que era muito diferente de um Brasília. Hoje, as
silhuetas dos automóveis são praticamente indistinguíveis.
Basicamente, um carro atual tem a forma de um ovo deitado. Os caros
pequenos são ovos de galinha, e os SUV, de ganso. Mas, e os sedans?
Mera anomalia genética do ovo: um ovo de duas pontas! Isto tudo,
claro, sem falar dos automóveis piratas chineses, cópias ipsis
literis descaradas de modelos consagrados.
Porém, o que há de mais paradoxal neste
contexto é que, pari passu às cada vez mais extravagantes
exações do Ecad, a fazer dos direitos autorais uma espécie de
super-propriedade, o autêntico direito de propriedade, isto é, o
direito de propriedade de bens físicos, nunca se viu tão diáfano,
e diga-se, não sem uma poderosa contribuição justamente por parte
da classe artística. “A burguesia fede!...A burguesia quer
ficar rica...enquanto houver burguesia, não haverá poesia...”,
cantava o Cazuza, que ainda exclamava: “eu sou burguês, mas eu
sou artista”! Um artista que, bem representativo dos da sua
classe, não se vexaria em tirar um pirulito da boca de uma menininha
que cantasse uma de suas músicas, como cobrança a título de
direito autoral, bem se diga!
Quem tiver criado algo que se enquadre como um produto intelectual, o melhor que tem a fazer para protegê-lo contra a “pirataria”, praticada pelas pessoas que poderiam valorizá-lo, é escondê-lo no fundo de um baú, chaveá-lo e jogar fora a chave. No mundo artístico muita gente foi vítima disto, e hoje amargam o esquecimento. No entanto outros, cujos herdeiros não se deixaram levar pela sanha da propriedade intelectual, continuam vivos como o Elvis, o AbbA e o Agnaldo Timóteo, que resolveu produzir e vender os próprios discos, se mantendo ativo na carreira. Afinal, o que tem valor é o produto na mão do freguês, e não no baú do “proprietário”.
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