domingo, 1 de março de 2015

O vício do raciocínio metonímico consiste em tomar a parte pelo todo, ou o instrumento pela ação, mas enxergando aí uma identidade real em vez de uma  mera figura de linguagem.

O traço estilístico mais constante e saliente nos escritos dos imbecis é a indistinção entre coisas objetivamente diferentes que têm o mesmo nome. Levado pelo potente automatismo da construção verbal separado da percepção, da memória e da imaginação, o sujeito extrai, de premissas referentes a um objeto, conclusões sobre outro objeto completamente diverso designado pela mesma palavra. Isso é o que propriamente se chama “equívoco”: tomar a identidade nominal como identidade real. O estilo característico dos imbecis é um arquitetura de equívocos.

Desfazer um equívoco não é difícil. O problema com o imbecil é que ele não sabe que o é, nem imagina, portanto, que deveria deixar de sê-lo; e os equívocos que comete são tantos e tão grosseiros que não é possível desfazê-los sem tornar evidente que o desempenho da sua inteligência está abaixo do normal – um dano à sua querida auto-imagem contra o qual ele se defenderá com todas as suas forças. A imbecilidade, como o segredo esotérico, protege-se a si mesma.

As pessoas normais podem superar seus erros porque apreciam a inteligência superior e desejam aprender com ela, ao passo que o imbecil genuíno não percebe superioridade nenhuma ou, quando a percebe, deseja achincalhá-la ou exorcizá-la para libertar-se de toda obrigação de melhorar.

O imbecil a que aqui me refiro não é o mesmo que o “imbecil coletivo” do qual falei outrora. Este, conforme o defini na ocasião, era “uma comunidade de pessoas de inteligência normal ou superior que se reúnem com o propósito de imbecilizar-se umas às outras”. Decorrida uma geração, o imbecil de agora já é o filho ou produto acabado do imbecil coletivo: não precisa imbecilizar-se porque imbecilizado está. Não tendo participado nem superficialmente dos afazeres da alta cultura como o seu antepassado e mentor, não procura sequer macaquear o exercício da inteligência, porque o desconhece e nem imagina em que possa consistir semelhante coisa.

Um exemplo irrisório, mas por isso mesmo típico, veio-me de um rapaz que, diante da minha asserção de que a caça esportiva é hoje o meio mais eficaz de manter o equilíbrio entre as várias populações animais num dado território, proclamou indignado que, nos EUA, os caçadores extinguiram, no século XIX, não sei quantas espécies de bichos.

A ira do cidadão contra o símbolo “caça” o impedia de ver que por trás desse nome se ocultavam duas atividades não só diferentes, mas antagônicas. Os homens que mataram lobos, ursos, raposas e bisões em quantidade descomunal e obscena, no período da ocupação do Oeste americano, eram eminentemente comerciantes de peles, que esfolavam os animais abatidos e saíam mais que depressa em busca de mais peles, deixando a carne apodrecendo sob a chuva e sob o sol. Essa atividade, cujo análogo residual persiste na África sob a forma do comércio ilegal de marfim malgrado toda a repressão governamental, está rigorosamente excluída da caça esportiva tal como se pratica hoje no Ocidente. Aqui o caçador, ao abater um veado, um alce, um urso, está sobretudo em busca de algo que possa abastecer a sua geladeira, a de seus amigos ou a de alguma instituição de caridade, considerando a pele (ou os chifres, se for o caso) como um bônus ou troféu que atesta a sua qualificação no exercício dessa tarefa. Isso é assim não apenas por uma convenção unânime entre os caçadores, mas pela força das leis. Leis que não foram instituídas contra os caçadores, mas por eles mesmos e pelas organizações que os representam, e aliás por uma razão muito simples: o controle dos efeitos objetivos da ação humana sobre o meio natural é inerente a toda busca organizada de alimentos, seja na agricultura ou na caça. Ninguém em seu juízo perfeito, muito menos um caçador esportivo, é louco de destruir as fontes do alimento que procura. Por isso mesmo é que a única exceção à caça como busca de alimentos é a liquidação de predadores que destroem fontes de alimentos. E também por isso é que, em todo o mundo civilizado, as associações de caçadores têm sido, desde os tempos de Theodore Roosevelt, as maiores promotoras do conservacionismo, termo que, junto com a coisa que ele designa, foi uma invenção delas mesmas.

Você pode, se quiser, chamar de “caça” essas duas atividades opostas: a do destruidor de espécies animais e a do caçador conservacionista de hoje em dia, mas não pode, exceto por imbecilidade, aplicar ao segundo as conclusões daquilo  que acha que sabe do primeiro. E, se o faz com eloquência indignada, só acrescenta à inépcia o ridículo da presunção.

A arte imbecil da conclusão equívoca tem ligação profunda e orgânica com outros dois fenômenos de patologia intelectual a que já me referi em artigos anteriores: a verbalização histérica e o pensamento metonímico. A primeira consiste em o sujeito acreditar em algo, não porque o viu ou dele teve ciência, mas porque conseguiu dizê-lo e porque a mera forma gramatical da frase acabada (conquista tão trabalhosa que em geral ele não consegue alcançá-la senão ao preço de solecismos e imprecisões de toda sorte) tem para ele um valor de prova. O pensamento reduz-se, desse modo, à autopersuasão barata, onde a ênfase emocional postiça faz as vezes da convicção profunda e séria.

O vício do raciocínio metonímico consiste em tomar a parte pelo todo, ou o instrumento pela ação, mas enxergando aí uma identidade real em vez de uma  mera figura de linguagem. No exemplo citado, a “caça” é tomada como sinônimo de “matar o animal”, quando, na realidade, o ato de matar é apenas o instrumento, o meio pelo qual se perfazem duas atividades objetivamente diversas e incompatíveis.



Publicado no Diário do Comércio.

Matéria extraída do website do Mídia Sem Máscara

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